Por que os guaranis-kaiowá continuam morrendo no MS?
Sociedade

Por que os Guarani Kaiowá continuam morrendo?

Disputa entre ruralistas e indígenas se arrasta em clima de guerra; alta produtividade das terras da região convive com povos em condições de campos de refugiados

em 14/07/2016 • 10h45
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Já era noite quando um grupo de atiradores entrou na última segunda-feira (11) na fazenda ocupada pelos kaiowá em Caarapó, no sul de Mato Grosso do Sul. Aproveitaram a escuridão para chegar com carros e armas no local. Três índios ficaram feridos, dois adolescentes e um adulto, segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio). Os três foram atendidos e não correm risco de morte. A ameaça é um sinal claro da tensão que vive a região, que tem disputas de terras entre índios e produtores rurais, e também um lembrete do luto: há um mês um índio foi morto no mesmo local.

Clodiode Aquileu Rodrigues de Souza, 26 anos, enfrentou sem armas, de peito aberto, os inimigos do seu povo. Naquela manhã, um grupo de homens armados chegou na fazenda ocupada pelos kaiowá em caminhonetes e tratores. Queriam tirar à força os índios que tinham entrado dias antes na área privada. Não conseguiram, mas balearam o agente de saúde indígena, que deixou um filho que ainda não tinha completado um ano e a jovem esposa.

“Eu estava em outro lugar, numa reunião de professores a 7 km de distância do lugar onde foi o tiroteio. Recebemos uma ligação e corremos para lá. Quando cheguei, tinha bombeiro, ambulância, era um cenário de guerra, uma mini-guerra, o pessoal tinha sido baleado e a gente não podia entrar”, diz Nelson Avila da Silva, 50, kaiowá estudante de biologia na UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados).

“Eu nunca tinha visto uma situação como aquela, o pessoal estava na fazenda quando eles chegaram com umas 50 caminhonetes, F4000, Hilux, trator agrícola. Tinha um em cima dessa carregadeira atirando, usava uma parte do trator como escudo para vir avançando pra cima de nós”, diz.

Clodiode era filho do vice-cacique da aldeia, tinha sangue de líder e achava que conseguiria parar sem bala o confronto que se arrasta há anos na região. Não conseguiu.

Morreu e engrossou o número de vítimas da disputa entre kaiowás e fazendeiros em Mato Grosso do Sul. O tiroteio começou por volta das 10h daquele 14 de junho e deixou outras cinco pessoas feridas – uma delas tinha 12 anos.

Uma história de violências

Em MS existem cerca de 30 mil kaiowá, distribuídos em reservas (regularizadas ou não), acampamentos ao longo de estradas e em fazendas ocupadas. As condições da população variam de acordo com a localização, o tamanho e o status de demarcação da terra em que estão, mas de maneira geral o acesso à saúde, à segurança e à educação são piores entre os indígenas. Nessas comunidades há altos índices de suicídio e homicídio, bem como já foram noticiados casos de desnutrição severa de crianças kaiowá. Há, portanto, um descaso do poder público que se soma aos conflitos por terra na região.

“Em MS, o que nós temos é a permanência de um quadro de violência sistêmica, em que os deslocados internos se equiparam, pelos índices de prestação de serviços e de vulnerabilidade, aos campos de refugiados”, diz o procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida.

“Temos um quadro grande de violência, de desorganização social, a prestação de serviços públicos, como educação, segurança e saúde, é deficiente, há um índice gravíssimo de suicídios, e não há como dissociar esse quadro do processo histórico que fez com que ele fosse criado”, afirma.

O processo que deu início a esse complexo conjunto de negações e de violações de direitos começou no século 19, com o fim da Guerra do Paraguai e a instalação da Companhia Matte Larangeira, no sul do então Estado de Mato Grosso. De acordo com Neimar Machado de Sousa, professor de história indígena da Faculdade Intercultural Indígena da UFGD, esse período foi marcado pela ocupação por miliares de terras tradicionalmente indígenas e pela utilização dos kaiowá nos ervais da companhia. “Eles foram retirados do convívio familiar e de suas terras para trabalhar, foram explorados pelo sistema de peonagem, que causava o endividamento dos índios, que viviam em um sistema de semiescravidão”, diz.

O segundo momento de retirada dos kaiowá de suas terras foi a criação, em 1910, do SPI (Serviço de Proteção ao Índio). “O SPI era ligado ao Ministério da Agricultura e seu objetivo era transformar os indígenas em trabalhadores rurais. Foi quando o processo de confinamento se tornou mais grave, agrupando em pequenas áreas etnias diferentes e famílias que não se relacionavam, e está é a raiz de muitos conflitos internos e da violência que você vê até hoje”, afirma o professor.

Com os anos, essas áreas ocupadas por fazendeiros, que receberam ou não do Estado a posse legal das terras, transformaram a região em polo agrícola. Hoje, o sul de MS é a mais produtiva do Estado, com destaque para o cultivo de cana-de-açúcar, soja e milho.

O resultado é um abismo formado pelo valor das terras e do que elas produzem, de um lado, e, de outro, pelas condições sociais e altos índices de violência nas comunidades indígenas. Adicione a esta panela de pressão, a demora do Estado na solução dos conflitos que se arrastam por anos, e teremos o que é o conflito em Mato Grosso do Sul.

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foto por: Mídia Ninja
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A espera pela terra demarcada

Em maio deste ano, a Funai (Fundação Nacional do Índio) publicou o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Dourados Amambaipeguá I, que abrange áreas nas cidades de Amambai, Caarapó e Laguna Carapã, no sul do Mato Grosso do Sul, totalizando 55.590 hectares.

Nessa área, estudos antropológicos apontam a existência de quatro “tekohas” (aldeias): Javorai Kue, Pindo Roky, Urukuty e Laguna Joha. “O termo ‘tekoha’ não é necessariamente um espaço físico, é também espiritual, social e religioso. Dentro da cosmologia guarani não é a terra que pertence a eles, eles é que pertencem à terra. O tekoha também é um tempo, presente, passado e futuro. Ou seja, qualquer doença ou conflito interno tende a ser atribuída a uma subjetividade, como se as doenças físicas e espirituais acontecessem porque eles estão fora do seu lugar e do seu tempo. Há um desequilíbrio causado pela remoção das suas terras”, diz o historiador da UFGD.

O ato, assinado às vésperas do afastamento da presidente Dilma Rousseff, foi considerado o estopim para a ocupação de fazendas na região de Caarapó, onde Clodiode foi assinado no dia 14 de junho. O procedimento foi resultado de um termo assinado entre a Funai e o MPF (Ministério Público Federal) em 12 de novembro de 2007, ou seja, demorou quase nove anos. A próxima etapa do processo de demarcação ainda pode demorar muitos anos, já que depende do reconhecimento do Ministério da Justiça e da assinatura do presidente da República.

Enquanto isso não acontece, índios se sentem movidos a retomar as terras ocupadas, enquanto fazendeiros têm se armado para retirá-los de suas fazendas. No dia 17 de junho, o MPF em Mato Grosso do Sul ajuizou duas denúncias contra doze pessoas acusadas de formação de milícia privada, constrangimento ilegal, incêndio, sequestro e disparo de arma de fogo contra grupos indígenas na região sul de MS.

“No caso das milícias formadas por produtores rurais, que se aglomeram num processo nocivo e promovem de forma forçada a retirada de índios de suas propriedades com o uso de armas, nós estamos investigando a responsabilidade de todos aqueles identificados como mandantes, financiadores e executores”, afirma a procurador.

A suspeita é que as armas sejam trazidas de forma ilegal do Paraguai, que faz fronteira com a região.

Há ainda produtores que contratam empresas de segurança contra as comunidades kaiowá. Isso foi o que o MPF descobriu após a morte do cacique Nísio Gomes, em 18 de novembro de 2011. “Estamos investigando empresas que estão sendo utilizadas de forma irregular e que oferecem serviços que não são compatíveis, como serviços de pistolagem e jagunçagem”, diz Almeida.

A tensão continua

A Polícia Federal em Dourados disse que apura os ataques à comunidade kaiowá em Caarapó. Sobre o caso da morte de Clodiode, a PF instaurou um inquérito para apurar os fatos, que até o momento foram ouvidas testemunhas, realizados exames periciais e buscas na região. Ninguém ainda foi preso pelos crimes.

Segundo a PF, no mesmo dia do assassinato, indígenas agrediram fisicamente e restringiram a liberdade de locomoção de policiais militares e bombeiros. Veículos também foram queimados e armas foram tomadas dos policiais pelos kaiowá.

“Depois disso, ficamos a noite inteira de plantão, fechamos estradas, porque a gente tinha medo que eles voltassem”, diz Silva. Após uma reunião com a Força Nacional, o MPF e a prefeitura, eles decidiram reabrir novamente as estradas. Também ficou combinado que os índios não iriam ocupar novas áreas nos próximos 60 dias.

Em nota, a Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Sistema Famasul) disse que lamenta a morte de Clodiode, os índios feridos e as agressões sofridas por PMs no dia 14 de julho.

“Estes fatos registram mais uma vez o impasse da questão fundiária em Mato Grosso do Sul, que dura décadas, e a necessidade de uma solução efetiva por parte do Governo Federal. É necessária uma atuação direta do Poder Público para fornecer uma solução definitiva ao conflito, que atingiu níveis de insuportabilidade e insegurança jurídica. A situação instalada na região sul do Estado causa grande preocupação à Federação, que tem se esforçado, ao longo dos anos, na proposta de viabilizar uma alternativa para este triste cenário entre produtores rurais e a população indígena”.

Logo após o conflito do dia 14, a Funai disse que “está tomando todas as providências para a mobilização das autoridades de segurança, com o objetivo não apenas de coibir a ação dos grupos organizados que têm, sistematicamente, utilizado de violência injustificada contra os povos indígenas do Mato Grosso do Sul, mas, principalmente, de punir os responsáveis pela morte e lesão aos indígenas de Caarapó”.

No último dia 6 de julho, um grupo de indígenas foi retirado de uma fazenda ocupada em Dourados, o que reascendeu os mais afoitos por novas retomadas. Outro fato que gerou críticas da comunidade kaiowá foi a indicação do general Sebastião Robero Peternelli para a presidência da Funai, que foi descartada dias depois pelo governo interino. Uma das primeiras declarações do presidente Michel Temer foi a de que iria rever os processos desapropriações e demarcações de terras indígenas e destinadas à reforma agrária.

“O clima ainda está tenso, eles estão fazendo ronda nas fazendas, seguindo a gente. Se a Justiça não estiver do nosso lado, vamos quebrar o congelamento [o acordo para não haver novas retomadas]. Como índio, eu não quero mais ver meu povo sofrer. Não queremos derramamento de sangue, como foi a morte do Clodiode”, diz Silva.

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Leia este artigo em espanhol no site Pressenza
‎Foto (capa): Mídia Ninja

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