O impeachment e o espírito de república das bananas
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O impeachment e o espírito de república das bananas

Desde 1990, 13 presidentes latinos não concluíram seu mandato, sob diversas acusações, inclusive ‘insanidade mental’ -- o que mostra a fragilidade das nossas democracias

em 06/04/2016 • 00h10
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Deixe o Fla-Flu político de lado um pouco. Para essa nossa conversa não importa se você gosta ou desgosta da presidente Dilma Rousseff. Nem se defende o impeachment ou se o classifica como golpe. Paixões postas de lado, o que vale observar é o impacto da crise política brasileira no cenário latino-americano, porque potencializa nossa fragilidade democrática.

O primeiro golpe militar contra um governo popular de esquerda eleito na América Latina vai completar 62 anos em junho. Foi na Guatemala em 1954, quando o presidente Jacobo Arbenz foi deposto, após iniciar uma reforma agrária que desagradou a estadunidense Tropical Fruit, multinacional gigante da época na produção de banana e abacaxi.

Esse golpe é umas das origens da expressão “república das bananas”, como ficaram conhecidos os países latinos de economia primária cuja institucionalidade frágil abriu caminho para rupturas da ordem democrática pela via das armas.

A reforma agrária foi o argumento cabal dez anos depois para a queda do brasileiro João Goulart, em 1964, que não havia sido eleito presidente, mas assumiu o mandato com a renúncia de Jânio Quadros. Vale uma ressalva: a Constituição de 1946 exigia que o vice também fosse eleito pelo voto direito. Jango concorreu para o cargo e ganhou a eleição para vice em 1960, como já havia vencido em 1955 (ele foi vice de Juscelino Kubitschek).

Quase 20 anos depois da queda de Arbenz, em 1973, o chileno Salvador Allende também caiu ao tentar mudar, pela via democrática, a estrutura de Estado em que o capitalismo se impunha pela via oligárquica herdada do tempo colonial.

Esses foram os três principais governos de esquerda a sugerir mudanças estruturais abatidos por golpes militares em meio à Guerra Fria. A ditadura militar ocupou quase todos os espaços na América Latina a partir daí, começando a ceder território na década de 1980. A redemocratização se consolidou desde então, salvo uma ou outra tentativa isolada de golpe militar em países como Paraguai e Venezuela. Todas frustradas na década de 90.

O processo de democratização na América Latina e no Caribe entre 1990 e 2002 foi analisado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em relatório publicado em 2004. Completava-se duas décadas de democracia na região e, entre as muitas conclusões do documento A democracia na América Latina: Rumo a uma democracia de cidadãs e cidadãos, duas são subsídios importantes para entender a crise política que a corrupção e a reação a ela ganha entre os latinos, em especial no Brasil.

1) “Os casos de restrição ao princípio de acesso democrático a cargos públicos não são poucos. Entre 1990 e 2002, em seis dos 18 países considerados houve algum tipo de restrição de peso a esse princípio. A tendência não é positiva, pois os casos passaram de um, em 1990, para três, em 2002.”

Ou seja, de acordo com a ONU, em pelo menos seis países o vencedor das eleições teve dificuldades para assumir o cargo ou para permanecer no posto para o qual foi eleito. Mas na verdade foram sete presidentes depostos ou renunciados.

A série elencada pela ONU começa com o impeachment de Fernando Collor, em 1992, e termina com a renúncia forçada do argentino Fernando de La Rua, em 2001.

Mas pelo meio do caminho ficou o venezuelano Carlos Pérez (1993), deposto por impeachment após ser condenado pela Suprema Corte por enriquecimento ilícito e peculato. Pérez já havia sido presidente nos anos 1970 e responsável por nacionalizar a indústria de petróleo na Venezuela.

O equatoriano Abdalá Bucaran (1997) foi afastado sob o pretexto de “insanidade mental” – embora o que o derrubou foi um rigoroso ajuste fiscal promovido na onda neoliberal dos anos 90.

O paraguaio Raúl Cubas (1999) também ficou pelo caminho, após renunciar em meio a confusão que envolveu a morte um oponente – ele se refugiou no Brasil.

Já o equatoriano Jamil Mahuad (2000), que diz ter renunciado por pressão dos militares, mas que foi acusado de abandonar o posto devido a moratória da dívida do Equador com os EUA. O peruano Fujimori (2000) renunciou após denúncias de corrupção.

2) “A proporção de latino-americanos que estariam dispostos a sacrificar um governo democrático em favor do progresso socioeconômico real é superior a 50%.”

Desde que o relatório da ONU foi publicado, pelo menos outros seis presidentes latinos não encerram seus mandatos: os bolivianos Gonzalo Sánchez de Lozada (2003) e Carlos Mesa (2005); o equatoriano Lucio Gutierrez (2005); o hondurenho Manuel Zelaya (2009); o paraguaio Fernando Lugo (2012); e o guatemalteca Otto Pérez Molina (2015).

Assim como Collor em 92, da série recente de presidentes depostos, Molina foi o único que caiu por envolvimento com corrupção. Ele foi acusado e preso pelo Judiciário da Guatemala por participar de um esquema milionário de suborno para facilitar a entrada de produtos estrangeiros sem o pagamento de impostos.

Todos os outros perderam a presidência de seus países em razão de crises políticas ou econômicas. Na maioria dos casos, com processos de afastamento ou impeachment contestados por organismos internacionais.

Em que pese o fato de os presidentes latinos terem caído em momentos de baixa popularidade, o dado preocupante na América Latina é que a região em diversos momentos rejeitou o regime parlamentarista, no qual o chefe de Estado é eleito de acordo com a escolha democrática de partidos para assumir o poder. Em caso de crise, muda-se a composição de forças partidárias e um novo primeiro-ministro é eleito a partir dessa recomposição.

A própria ONU havia registrado a deficiência institucional das democracias latino-americanas em 2004, quando afirmou haver “tentativas de utilizar formas que não seguem, rigorosamente, as regras constitucionais para afastar do poder os governantes eleitos”.

O que está em marcha no Brasil neste momento é exatamente isso. Apesar de o PT estar metido em corrupção investigada pela Operação Lava Jato, sobre a presidente Dilma não pairam suspeitas comprovadas. Ao contrário, é mérito dela que as investigações da Lava Jato pelo Ministério Público Federal e a Polícia Federal tenham avançado ao ponto de ameaçar apeá-la do poder.

Questionar Dilma nas ruas é legítimo e necessário: ela tomou decisões erradas, disse uma coisa na campanha e fez outra ao vencer. Mas tirá-la do comando do Palácio do Planalto sem que qualquer crime lhe seja imputado será estimular o espírito bananeiro com o qual a América Latina busca resolver suas crises políticas: passando por cima da ordem democrática em busca de salvadores que não existem.

Mais do que isso, do ponto de vista do cidadão, é se recursar assumir o papel de sociedade consciente de seu protagonismo, articulada, participativa, ciosa dos direitos conquistados e capaz instituir governos e determinar suas ações. Assanhar-se para suspender mandatos concedidos pelo voto apenas confirma o contrário do que deveríamos ser.

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