‘Governo Temer não tem futuro’, diz Nobel da Paz 1
Análise

‘Governo Temer não tem futuro’, diz Nobel da Paz

Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel em 1980, acredita que a América Latina poderá ficar dividida com governo Temer; ele prevê ainda tempos difíceis para o presidente interino

em 23/05/2016 • 13h30
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Dois toques para que, do outro lado da linha, um Nobel da Paz atenda. Aos 84 anos, o argentino Adolfo Pérez Esquivel, agraciado com o prêmio em 1980, é defensor dos Direitos Humanos e voz importante no processo de integração dos países da América Latina, principalmente porque preside o Conselho Honorário da Paz e Justiça. Criado em 1974, o órgão tem como objetivo lutar pelo respeito à vida e pelos direitos humanos.

À Calle2, o professor, arquiteto e ativista usa longas pausas para encontrar as palavras que expliquem a atual conjuntura política vivida na região. Esquivel esteve no Brasil no dia 28 de abril e, dentro das Câmara dos Deputados, entoou de maneira significativa o coro do golpe. Dias depois, esteve com Dilma Rousseff, para apoiá-la.

Quase um mês depois, já em Buenos Aires, onde vive, Esquivel é enfático ao condenar as medidas adotadas por Michel Temer nos primeiros dias como presidente do Brasil e aposta que “o governo Temer não tem futuro”.

“Não vejo o Temer em uma situação de governabilidade, a não ser que recorra a posições autoritárias e repressivas. Se ele implementar toda a política que tem apresentado, deixando de lado as políticas sociais, logicamente isso vai gerar uma relação conflituosa com o povo brasileiro. Vai ser um momento difícil não só para o Brasil, mas para toda América Latina.”

Nesta entrevista, concedida antes da revelação feita pela Folha de S.Paulo de que Romero Jucá, ministro do Planejamento de Temer, estrutura um pacto para frear as investigações da operação Lava Jato, Esquivel também disse acreditar que a América Latina ficará “dividida”.

José Serra, novo ministro de Relações Exteriores, afirmou que Estados Unidos, Japão e União Europeia deverão se consolidar como parceiros próximos do Brasil nesse momento, além da Argentina, na América do Sul. Esse posicionamento pode desestimular o crescimento da região, visto que o Brasil é o país mais forte economicamente?

Não, acho que não. O que estão planejando aí foi o mesmo planejado por Macri [Mauricio Macri, presidente da Argentina].  Isso é o Tratado do Pacífico com a União Europeia. O que eles estão fazendo é marginalizar o resto da América Latina.  Ao invés de buscar a integração regional, volta outra vez a recolonização do Brasil, da Argentina e do continente latino-americano. Isso não é viável nas condições atuais, e Temer vai aplicar mesma política neoliberal que está sendo utilizada na Argentina, com um alto índice de desemprego, de pobreza, baixa inclusão social e privatizações das empresas do Estado. Esse é o programa do Temer. [No ano passado, onze países com saída para o Pacífico (Japão, Canadá, Chile, Austrália, Brunei, Malásia, Nova Zelândia, México, Peru, Cingapura e Vietnã), mais o Estados Unidos, assinaram o Tratado de Associação Transpacífico, acordo de livre comércio.]

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Venezuela, Nicarágua, El Salvador, Bolívia, Equador e Cuba manifestaram-se contra o golpe. Argentina, Colômbia e México não se pronunciaram. Isso pode gerar um rompimento na América Latina? Qual o papel dos Estados Unidos nessa possível separação?

Não sei se um rompimento, mas, logicamente, não faz bem à democracia da América Latina que países aceitem um golpe de Estado assim. Samper [Ernesto Samper, Secretário-geral na Unasul, União das Nações Sul-Americanas] já se pronunciou sobre isso também, preocupado com esse golpe de Estado. A América Latina vai ficar dividida. Houve um ataque muito forte aos países mais progressistas do continente. Podemos lembrar rapidamente: na Bolívia, contra Evo Morales; no Equador, contra Rafael Correa; na Venezuela, contra Maduro, e agora contra Dilma, no Brasil. Pelas notícias que chegaram aqui, Temer trabalhou como informante norte-americano, então sua tendência de governo passa por isso, não por uma integração regional.

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Você vê influência dos Estados Unidos nos problemas recentes da América Latina?

Sim. Creio que o próximo objetivo dos Estados Unidos seja a Venezuela. Também vão tentar dar um golpe institucional, o que chamamos de “golpes brandos’’. A oposição venezuelana tem maioria parlamentar, então é bem possível que estejam manobrando para ver de que maneira podem tirar Maduro do poder.

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Michel Temer acabou com o Ministério da Cultura. O que essa medida revela sobre o posicionamento do governo?

Governos neoliberais privilegiam o capital financeiro em detrimento à vida, à educação, à cultura e ao bem-estar do povo. O objetivo dessas políticas são economicistas, não sociais.

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Na saúde, o ministro Ricardo barros sinalizou com a diminuição do SUS, dizendo que quanto mais plano de saúde, melhor. Como isso interfere nos direitos básicos de cada cidadão?

A saúde é um direito do povo. Todos os governos devem respeitá-lo. Não se pode privilegiar alguém por ter mais dinheiro. Aqui na Argentina estamos passando por algo parecido. Também há restrições do governo em relação a políticas de saúde. Aqui começaram as greves em hospitais por causa da deterioração que está acontecendo no campo da saúde.

Se um governo, e no caso do Brasil, um governo ilegítimo, começa a restringir a saúde da população e fazer cortes economicistas, isso vai gerar um aumento dos conflitos sociais, que já estão acontecendo na Argentina.

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O novo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, afirmou que vê nos conflitos sociais ações parecidas com a de guerrilheiros. Para o senhor, que lutou ativamente por direitos sociais, durante a ditadura, o que isso significa?

Isso são políticas repressivas. Os movimentos sociais têm o direito de se manifestar. Democracia significa direitos iguais para todos e todas. Ele não pode marginalizar e reprimir os movimentos sociais. O importante para o Brasil, nesse momento, é o que povo se una e reclame seus direitos. Reclame para que o país volte para um sistema democrático e não a um golpe de estado. Isso vai colocar em evidência de que lado está cada um.


Você acredita que a mobilização internacional contra o golpe e pressão populacional nas ruas podem desestabilizar o governo de Temer?

O governo Temer não tem futuro. Não vejo o Temer em uma situação de governabilidade, a não ser que recorra a posições autoritárias e repressivas. Se ele implementar toda a política que tem apresentado, com privatizações das empresas estatais, deixando de lado as políticas sociais, logicamente isso vai gerar uma relação conflituosa com o povo brasileiro. Vai ser um momento difícil não só para o Brasil, mas para toda América Latina.

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Como você vê a relação da imprensa com o governo Temer?
Nenhuma imprensa é imparcial, e logicamente que muito da campanha contra Lula, Dilma e as políticas sociais foi montada pela imprensa. Aqui aconteceu a mesma coisa com Clarín, La Prensa, La Nación e outros meios massivos de comunicação. Eles fazem suas campanhas, suas políticas para apoiar seus candidatos. Temos que ter cuidado com essa manipulação dos meios de comunicação.

Nessa semana, o ensaísta norte-americano Noam Chomsky também se posicionou contra o golpe, defendendo a presidente Dilma Rousseff. Você também já se posicionou contrário ao ambiente vivido no Brasil. Qual a importância de vozes reconhecidas mundialmente na luta pela democracia na América Latina?

Creio que nós temos a obrigação de nos manifestar em defesa da democracia e da vida dos nossos povos. Fazemos isso com o Brasil ou com qualquer país da América Latina e do mundo.

Temos que elevar a voz e não nos calar, porque se nos calamos, terminamos sendo cúmplices. Acredito que o povo brasileiro vai lutar e recuperar seus direitos que, hoje, eles perderam.

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Qual o caminho para os governos progressistas na América Latina? Como o povo está inserido nesses novos governos neoliberais?

O povo não pode ficar à margem desse processo. Temer vai governar sem o apoio do povo. Isso é real. Votaram nele para vice-presidente, não para presidente. E as pessoas não querem políticas neoliberais. O que está acontecendo é uma imposição dessas políticas na América Latina. Por trás de tudo isso, está os Estados Unidos, que não quer perder a hegemonia dos bens e recursos na América Latina. Isso é a “recolonização” da América Latina. Isso está nos levando a uma situação de dependência, e não de soberania.

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FOTO: JOSÉ CRUZ / AGÊNCIA BRASIL

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