‘AL deve decidir se impeachment é jurídico ou político’
Análise

‘AL deve decidir se impeachment é jurídico ou político’

Especialista em impeachments na América Latina, Aníbal Pérez-Liñán, diz que a sociedade precisa decidir se impedimento é um procedimento judicial (que demanda provas) ou meramente político

em 04/10/2016 • 11h27
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Um dos maiores estudiosos dos processos de impeachment que vêm pontuando a política latino-americana nos últimos anos suspeita que o impedimento continuará sendo empregado para derrubar presidentes pouco populares na região, a exemplo da recente destituição de Dilma Rousseff no Brasil. Para o argentino Aníbal Pérez-Liñán, professor de Ciências Políticas na Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, o mecanismo tornou-se bastante cômodo para as elites do continente rearranjarem o cenário institucional conforme os seus próprios interesses.

E se na maior parte das vezes a arena para a batalha (e o fiel da balança) é o Congresso, não se deve ignorar a crescente força de outros atores, como o Judiciário e as figuras presentes na linha sucessória. Ambos se destacaram no caso brasileiro, notadamente personalizados no juiz Sergio Moro, que, com a sua Operação Lava-Jato chegou a grampear e a publicar conversas telefônicas reservadas da presidenta num momento de extrema fragilidade para a petista, e no então vice-presidente Michel Temer, que conspirou abertamente para a queda de sua cabeça de chapa. Outro vice que apoiou a deposição do presidente em serviço foi o paraguaio Federico Franco, em 2012. Apesar disso, Pérez-Liñán não defende a supressão do cargo de vice-presidente, como no Chile: “Quem quer que esteja na linha de sucessão sempre terá algum motivo para conspirar”.

Autor do livro Presidential impeachment and the new political instability in Latin America (Cambridge University Press, 2007), em que avalia os processos de impeachment latino-americanos, Pérez-Liñán sustenta que os sistemas presidencialistas da região ainda precisam decidir se o impedimento é um processo “quase judicial”, e que, portanto, requer provas robustas contra o acusado, ou se está baseado simplesmente na vontade da maioria parlamentar. Por e-mail, o acadêmico, que não posiciona o Brasil entre as três democracias mais estáveis da América Latina, concedeu à Calle2 a entrevista a seguir.

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Em seu livro, o senhor afirma que o começo dos anos 1990 foram uma época cheia de esperanças para a América Latina, já que o continente experimentava o declínio dos regimes autoritários das décadas anteriores e a emergência de “grandes reformas econômicas”. Entretanto, mais de vinte anos depois, para muitos latino-americanos a sensação é de que alguma coisa deu errado. Há dez anos, países como o Brasil e a Argentina eram tidos como exemplos de economias emergentes e democracias consolidadas. Hoje, o Brasil atura um governo impopular e a Argentina mergulha na recessão. O que houve desde aquele promissor passado recente e até que ponto a política institucional é responsável por esta piora?

É verdade que os últimos quinze anos representaram, em certo grau, uma oportunidade perdida. Entre 2003 e 2013, a América Latina aproveitou um boom favorável dos preços internacionais que lembra um período semelhante de grande prosperidade no final do século 19. O crescimento do século 21 coincidiu com a chegada da esquerda ao poder em boa parte da região, o que criou uma oportunidade única e nunca vista para lidar com os problemas de pobreza e desigualdade. Mas esse crescimento (como qualquer crescimento) chegou ao fim, e muitos países foram pegos de surpresa. Ao longo do período próspero, muitos governos à esquerda fizeram uma leitura incorreta da situação. Acreditavam que poderiam fazer mais pelos pobres simplesmente porque tinham uma moral superior à da direita, e não porque as condições externas eram favoráveis. Dessa forma, eles nunca se precaveram para o fim do ciclo, e, agora, a consequência é que os pobres sofrem.

Desde 1990, Dilma Rousseff é a oitava ocupante da presidência de um país a sofrer impeachment na América Latina. Os casos mais recentes aconteceram em 2012, no Paraguai, e em 2015, na Guatemala. É exagerado afirmar que processos políticos se tornaram uma particularidade e um expediente comum na política do continente?

Não, não é um exagero. Depois do impeachment [do presidente brasileiro Fernando] Collor, as elites latino-americanas descobriram que o Congresso é a arena na qual os grandes conflitos podem ser processados e que as coalizões parlamentares oferecem uma estrutura (mais ou menos) constitucional para a queda de um presidente com pouca popularidade.

O Brasil, o Equador e o Paraguai são os países latino-americanos com a maior quantidade de presidentes impedidos das últimas três décadas. O que explica isso? Esses países compartilham algum tipo de característica política ou social que dá maior esteio para o mecanismo do impeachment presidencial?

No Equador e no Paraguai, uma elite muito dividida utilizou a prerrogativa do impeachment ou a declaração da incapacidade presidencial como instrumentos puramente políticos, quase como um voto de desconfiança no sistema parlamentar. No Brasil, o uso político do impeachment também se evidencia (particularmente no caso de Dilma), mas o sistema institucional é mais forte. O judiciário e a polícia ocupam um lugar real nas investigações, e a sociedade é mais crítica da manipulação política do impeachment. No Paraguai, o presidente Lugo foi impedido em apenas 48 horas. A presidente Rousseff, no Brasil, foi impedida em nove meses. Embora os desfechos pareçam ser iguais, essa diferença não é trivial.

'No Equador e no Paraguai, uma elite muito dividida utilizou a prerrogativa do impeachment ou a declaração da incapacidade presidencial como instrumentos puramente políticos, quase como um voto de desconfiança no sistema parlamentar. No Brasil, o uso político do impeachment também se evidencia, mas o sistema institucional é mais forte.'

‌A economia fraca e uma taxa ruim de popularidade podem ser suficientes para derrubar um presidente em qualquer lugar do continente hoje em dia?

Elas não são “suficientes”, porque não garantem a queda de um presidente. Contudo, põem qualquer presidente em uma situação bastante arriscada. Elas constituem fatores de risco e os modelos estatísticos demonstram que presidentes têm mais chances de serem removidos do cargo nessas circunstâncias.

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Desde Fernando Collor, a corrupção é o principal argumento dos que lutam por processos de impeachment de presidentes latino-americanos. Carlos Menem, na Argentina, e Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, enfrentaram sérias acusações de corrupção em seus governos enquanto ocupavam o cargo. Porém, nenhum processo de impeachment contra eles prosperou. Como eles conseguiram preservar-se no poder?

Bem, assim como a recessão econômica e a baixa popularidade elevam o risco de impeachment, um período de crescimento e a alta popularidade protegem os presidentes de ataques no Congresso. Menem e Cardoso acabaram com a hiperinflação. Lula era carismático e presidiu ao longo de um período de grande prosperidade. Já a Collor e Dilma faltava esse tipo de capital político.

'Assim como a recessão econômica e a baixa popularidade elevam o risco de impeachment, um período de crescimento e a alta popularidade protegem os presidentes de ataques no Congresso.'

 

Qual é o papel da imprensa no resultado de processos de impeachment latino-americanos?

A imprensa é crucial, porque um jornalismo investigativo cada vez mais profissionalizado desempenha um papel importante em descobrir escândalos, que oferecem bases para um processo de impedimento. Watergate [caso de corrupção nos Estados Unidos descoberto e publicado pelo jornal The Washington Post e que resultou na deposição do presidente Richard Nixon] foi o modelo disso nos anos 1970. O escândalo PC Farias [no Brasil] foi o modelo disso na América Latina.

 

As recentes deposições de Fernando Lugo, no Paraguai, e Dilma Rousseff, no Brasil, trazem em comum a proeminência, de uma maneira ou de outra, do poder judiciário no desenrolar dos processos de impedimento. Isso caracteriza um novo padrão de alterações políticas forçadas na região?

A Justiça está se tornando cada vez mais importante em toda a América Latina, mas as condições para a independência do poder judiciário são bem discrepantes. O Brasil possui um judiciário bem forte e independente, ao passo que isso não se aplica para a maioria dos países latino-americanos.

 

O senhor enxerga os processos de impeachment contemporâneos como “sucessores” ou “herdeiros” dos golpes militares que pipocaram no continente em boa parte do século 20? É correto ver os processos de impedimento como menos traumáticos para a democracia do que os golpes militares?

Algumas das condições que engatilharam os golpes militares no passado – recessão econômica, instabilidade social – são as mesmas que engatilham os golpes de hoje, mas com o fim da Guerra Fria a intervenção militar se tornou menos provável. Creio que é um sério equívoco declarar que impeachments equivalem a golpes. As consequências para a sociedade, e para os presidentes retirados do poder, são bastante diferentes [em um e outro caso]. Se compararmos o destino de Salvador Allende [presidente chileno morto durante o golpe armado para destituí-lo em 1973] com o destino de Dilma Rousseff, declarar que impeachment equivale a um golpe soa quase imoral.

 

Governos que sofrem impeachment no continente latino-americano carregam algo em comum, como o fato de serem mais ou menos à esquerda no espectro político?

Os processos de impeachment afetaram presidentes à direita e à esquerda. A maioria dos presidentes destituídos por meio do impedimento eram neoliberais. Agora acabamos de perceber que, quando presidentes à esquerda são impopulares, também estão sujeitos ao impeachment.

 

E quanto aos governos que os substituem? Eles possuem características parecidas, de um modo geral? São mais conservadores do que os que os precederam?

Não necessariamente. Tudo depende da natureza do status quo representado pelo presidente [deposto]. Se ele está à direita, caso de Gonzalo Sánchez de Lozada, na Bolívia, em 2003, o vice-presidente pode guinar à esquerda para apaziguar a opinião pública. Se o presidente está à esquerda, como Fernando Lugo no Paraguai, há quatro anos, o vice pode se mover para a direita. A fim de estabilizar a situação, os vice-presidentes se distanciam do presidente caído, mas a estratégia será diferente e dependerá do contexto.

 

É comum que vice-presidentes conspirem para a queda dos presidentes na América Latina, como Michel Temer fez com Dilma Rousseff?

Eu não diria que é comum. Porém, sempre existe um potencial para o conflito entre o presidente e o vice-presidente, especialmente quando eles pertencem a partidos distintos, ou quando o partido no poder está muito dividido. No Paraguai, por exemplo, o vice-presidente Federico Franco apoiou o impeachment de Fernando Lugo. Franco pertencia ao Partido Liberal, o principal aliado na coalizão parlamentar de Lugo. Sem dúvidas isso se assemelha ao papel de Michel Temer no Brasil. Contudo, eliminar o cargo de vice-presidente não resolve esse problema, porque quem quer que esteja na linha de sucessão sempre terá algum motivo para conspirar. Em Honduras, onde a figura do vice não existe, o presidente da Assembleia Legislativa, Roberto Micheletti, conspirou contra o presidente Manuel Zelaya em 2009.

'Sempre existe um potencial para o conflito entre o presidente e o vice-presidente, especialmente quando eles pertencem a partidos distintos.'

‍Na avaliação do senhor, quais países latino-americanos contam com os regimes democráticos mais consolidados hoje em dia?

Uruguai, Costa Rica e Chile, nesta ordem. O Uruguai e a Costa Rica têm uma longa tradição de política democrática, respeito pela lei e sociedades relativamente igualitárias. O Chile também possui uma tradição democrática [o regime ditatorial de 17 anos encabeçado por Augusto Pinochet terminou em 1990], mas há uma crescente lacuna entre a sociedade chilena e os partidos políticos chilenos. E eu não vejo uma reconciliação no curto prazo. Eu diria que o Brasil, apesar da crise atual, está na segunda camada de países de democracia sólida da América Latina, só atrás dos que mencionei primeiro.

 

O senhor prevê mais processos de impeachment no continente em um futuro próximo? Em caso afirmativo, onde exatamente?

Não creio que nenhum presidente latino-americano corra risco imediato de sofrer impeachment agora, mas estou convicto de que o exemplo brasileiro foi percebido por políticos de todo o hemisfério e de que os impeachments continuarão.

 

Na avaliação do senhor, o regime presidencialista enfrenta uma ameaça na região? Sua crise pode levar a alguma coisa como o parlamentarismo?

A adoção do parlamentarismo é muito improvável na América Latina. Mas as sociedades precisam decidir se o impeachment presidencial se tornou um procedimento quase judicial, e que requer evidências bastante sólidas contra o presidente, ou se é um procedimento político sustentado meramente pela vontade da maioria do Congresso. Neste último caso, seria um passo no sentido do parlamentarismo.

'As sociedades precisam decidir se o impeachment presidencial se tornou um procedimento quase judicial, e que requer evidências bastante sólidas contra o presidente, ou se é um procedimento político sustentado meramente pela vontade da maioria do Congresso.'

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