Um jogo de gigantes
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Um jogo de gigantes

Repórter da Calle2 senta numa cadeira de rodas para... jogar rugby

em 08/12/2015 • 21h20
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– Você não quer fazer uma vivência com a gente? Tem uma cadeira de rodas sobrando.

Para esta pergunta, o tímido e medroso não foi o meu primeiro pensamento. Depois, o corajoso sim foi minha atitude. E dali segui tentando jogar rugby uns quinze minutos. Talvez mais. Talvez menos. O tempo, sentada em uma cadeira de rodas, é diferente.

– Minha bunda não entra na cadeira – eu disse, muito naturalmente, ao tentar me ajeitar nela para começar a jogar. Depois, só depois, parei para pensar que isso não é coisa que uma mocinha diga a um time exclusivamente masculino. Riram. E assim me ajeitei. Me senti em casa.

Os joelhos ficam mais altos que a linha do quadril, e este bem justo à base da cadeira, e as rodas maciças feita de algo como um latão, olhando por trás, têm quase o formato da letra V invertida. E latão bem amassado por conta das pancadas que um jogador dá no outro, ou para roubar a bola, ou para travar a cadeira e não deixar o drible passar.

Esse costuma ser o auge do jogo e o delírio da plateia, um tipo de pancadaria saudável que dá ibope. O som das cadeiras ao trombarem umas nas outras rememoram a cena do carrinho de bate-bate nos parques de diversão da infância só que com mais sangue no zóio.

Na frente, são duas rodinhas, que vão e vêm com muita facilidade e dão agilidade ainda maior para deslizarem na quadra. É necessário saber onde dar a pancada: no meio da roda, você derruba o adversário e ele cai no chão. Cai, cai mesmo, tomba. Mas e aí, como ele levanta? Eles vão se apoiando, apoiando, apoiando, apoiando… às vezes precisam de ajuda, mas nem sempre.

“Meu nome é Fábio Ferreira, tenho 41 anos, sou atleta profissional de Rugby em cadeira de rodas. Fiquei tetraplégico depois que mergulhei de cabeça numa piscina, minha lesão medular é bem alta [perto do pescoço] – mas é incompleta. Por isso eu tenho alguns movimentos nos braços e extensor de punho, já faz 18 anos isso. Hoje tenho uma diferença funcional e uso cadeiras de rodas”.

Uma bola simples, até um pouco que levemente murcha, parece já gasta do futebol. Oficialmente, os times usam uma bola semelhante ao do vôlei e é ela que deve ser jogada para o próximo, com força nos braços. Esta é uma das diferenças que um jogador paraatleta tem do outro: o tipo de força e movimento que têm nas mãos e articulações, de acordo com a lesão que sofreu. Alguns têm um grau mais elevado de dificuldade, outros menos e é assim que se compõe a posição dos jogadores no time, levando em conta o nível de facilidade para o movimento necessário que o esporte exige.

Vamos lá:  os jogadores são classificados de acordo com o seu nível de funcionalidade. Existe uma escala de pontuação para nivelar os atletas de acordo com suas habilidades, começando em 0.5 (atleta mais comprometido) até 3.5 (atleta menos comprometido). Para uma classificação mais justa avalia-se não apenas o diagnóstico da lesão, como também as habilidades específicas de cada atleta. Atletas de defesa têm a classificação funcional de 0.5 até 1.5 e os atacantes de 2.0 até 3.5.

– No meu nível de lesão medular não tem muitas opções de prática de esporte. Percebi que o rugby era a minha cara, além de ser muito dinâmico e estratégico. Você está sempre em movimento e tem que pensar as jogadas de ataque e defesa – conta Fábio.

De acordo com as regras de registros e leis, no papel, os caras são a Associação de Esportes e Cultura Superação, uma sociedade civil sem fins lucrativos com sede em Campinas – sem filiação político-partidária ou religiosa, livre e independente dos órgãos públicos e governamentais.

Na verdade eles são o Rugby em Cadeira de Roda Gigantes. Anota aí: Armando da Silva, Fábio Ferreira, Washington Moura, Adilson Oliveira, Fernando Abud, Wellyton Silva, Alexandre Giuriato, Bruno Damaceno e Zé Raul.

O time treina até duas vezes na semana quando não estão competindo em uma quadra do emprestada pela prefeitura no bairro Cafezinho.

Enquanto os Gigantes se aquecem, os moleques da comunidade param para assistir… nem sempre. Cadeira de roda sobrando… é sinônimo de táaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaacalhe-pau! Um deles sobe nela e sai correndo o mais rápido possível, ao redor da quadra. Zummmmmmmmmmm. Zummmmmm. Uma, duas, três, quatro vezes quanto o braço aguentar colocar a roda para rodar. E de novo. E mais uma vez.

– Tia, como chama esse jogo? – me perguntou um deles.

– Rugby, sabe? Aquele que os jogadores usam uma máscara de ferro na cara para bater e roubar a bola? Então, eles aqui usam a cadeira de roda – expliquei essa minha leiga definição sobre a modalidade.

– Ah, sei, aquele que usa uma bola meio achatada!

Para fazer jus ao suor e poder disputar jogos de grande valia profissional, até mesmo em território internacional, é necessário que o time venha ao mundo nos papéis da vida como uma associação, formatada por um estatuto, com nome, sobrenome e CNPJ. Ufa! Desta forma é possível ser membro da Associação Brasileira de Rugby.

Um dia depois de ‘treinar’, eu sentia dores fortes nos músculos do meu braço. Um pouco também nas ancas que ficaram apertadas durantes algum tempo. Foi nelas que me apoiei enquanto tentava travar o filho da mãe do adversário, com minha cadeira bicuda de defesa que tinha uma trava grande, parecida com a parte do capacete de jogador de futebol americano, sabe? Aquele que protege o beiço.

As cadeiras de roda para esse tipo de esporte são especiais, protegem e deixam o bate-bate menos perigoso. As de ataque permitem muito mais velocidade e possuem uma trava que impede que as cadeiras de defesa as segurem. Já as de defesa possuem um gancho dianteiro para prender o adversário.

Senti o coração vir à mil quando sentei em uma delas. Quando me senti, já estava lá no meio dos Gigantes, me sentindo tão pequena. Depois, um pouco pela canseira, a mil e duzentos, mais ou menos. “Não vai sentir medo hein Ju!”, me disse um deles ao longe.

Saí de lá achando tudo aquilo o máximo e pronta com vontade de escrever algumas linhas. Depois de 24 horas fiquei pensando na minha pequenez vertical de 1,63 metros. No peso real daquela modalidade de esporte. Para mim não foi dor, foi momento, sensação, prazer, vi-vên-cia. Para eles é vi-ver sentado. Se já foi dor, hoje é caminho, já é vitória, medalha, título, brigas, bate boca, egos, amizades, aplausos, treinos, suspiro, imprensa, uniforme, mérito, capacidade, desenvoltura, viagem, risadas. Aquele suor é tanta vida, mas tanta vida, que não cabe aqui dentro.

– Eu tenho muitos camaradas na bitola de fazer fisioterapia cinco dias na semana achando que vai voltar a andar. Não vai! (silêncio de alguns segundos) E dá para viver sentado! Você tem duas escolhas: viver ou morrer. Vai ficar se lamentando porque perdeu a casa, o cachorro, a vida que tinha e tudo o mais? – diz Paulo Santos, presidente do Gigantes.

Ele é do tipo de “cara que não pode fraquejar”, falou assim e me faz pensar em tantos outros fracassos meus pessoais, e de pé.

(Respiro). Meu, de novo.

…Voltando à parte técnica.

Assim como o futebol, ou qualquer outro esporte, também existe um órgão regulamentador para esta modalidade. A Associação Brasileira de Rugby de Cadeira de Rodas é tipo uma “CBF”, explica Paulo, um órgão que regulamenta os times no Brasil, dá as regras, faz vistorias, define e delimita parâmetros. Curiosidades: as quadras onde acontecem os jogos, por regra, devem ter 15m de largura por 28m de comprimento. A partida é dividida em 4 tempos de 8 minutos. Quem ganha? Quem passar da linha do gol com pelo menos duas rodas da cadeira e a bola nas mãos.

– Quando termina o jogo e você vê que todo aquele esforço nos dias de treino valeram a pena e você se consagra campeão é um momento de muito orgulho e sensação de bem-estar, com autoestima elevada – conta Fábio.

Priiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii.

Apita o juiz.

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