O corpo de Jandira Magdalena, 27 anos, foi encontrado carbonizado, sem os dentes e sem impressões digitais. Ela havia saído de uma clínica clandestina para fazer um aborto, no Rio de Janeiro, em 2014. Jandira tinha duas filhas.
A mesma idade tem hoje Belén, condenada em abril deste ano pela Justiça de Tucumán, na Argentina, a oito anos de prisão. Chegou ao hospital com hemorragia decorrente de um aborto espontâneo e saiu presa. Alguns médicos não acreditaram na jovem, que estava com 20 semanas de gestação, e decidiram denunciá-la à polícia. A família de Belén e organizações não-governamentais tentam na Justiça reverter a decisão.
No Chile, outra Belén ganhou as páginas dos jornais em 2013: aos 11 anos, ela engravidou depois de ter sido estuprada pelo padrasto. Apesar de protestos pelo país, Belén teve que levar a gravidez adiante, já que o Chile proíbe a interrupção da gestação mesmo em caso de violência sexual.
Os três casos poderiam ser histórias de milhares de mulheres e meninas latino-americanas e apontam para um problema urgente, mas invisível na maioria dos países da região: precisamos falar sobre aborto.
“A criminalização do aborto tem impacto bastante significativo em termos de saúde pública na América Latina. Todos os países com restrições apresentam altos índices de mortalidade materna, além de impactos na saúde reprodutiva das mulheres, por causa do risco de esterilidade e de infecções graves”, diz Rosangela Talib, coordenadora no Brasil da ONG Católicas pelo Direito de Decidir.
De acordo com o Guttmacher Institute (organização norte-americana voltada para direitos sexuais e reprodutivos), 97% das mulheres latino-americanas vivem em países onde o aborto é proibido. Em alguns casos, só não há crime quando a gravidez é decorrente de um estupro ou há risco de morte para a mãe. Chile, Honduras, Nicarágua e El Salvador, na ponta mais extrema, proíbem o procedimento em qualquer situação.
O problema é que leis altamente restritivas não impedem que 6,5 milhões de abortos induzidos sejam realizados por ano na América Latina e Caribe, segundo o instituto. Clandestinos, eles têm um alto custo para os países da região: são a causa de 10% das mortes maternas e da internação de 760 mil mulheres por ano por complicações resultantes de procedimentos inseguros.
São mulheres que chegam ao hospital com infecções, órgãos perfurados e que correm o risco de ficarem estéreis. Outras, como Jandira, nem viram número no sistema de saúde.
Há ainda crianças, como uma paraguaia de 10 anos, 34 quilos e 1,39m de altura, que havia sido violentada pelo padrasto e teve a interrupção da gestação negada pelo governo do seu país. “É muito grave quando as vítimas de estupro são impedidas de ter acesso a um aborto legal. Todas as evidências mostram que a maioria das vítimas de estupro são crianças e adolescentes, que existe uma alta proporção de estupradores que são seus próprios cuidadores (pais, irmãos, tios) e que a maioria das mães adolescentes nunca volta à escola”, diz Susana Chavez, secretária executiva do Clacai (Consorcio Latinoamericano Contra el Aborto Inseguro), com sede no Peru.
Mortes, internações e gravidez na adolescência, no entanto, são consequências restritas a uma parcela das mulheres latinoamericanas. “Aqui no Brasil, por exemplo, as vítimas de complicações pós-aborto são pobres e negras; há, portanto, um recorte de raça e também econômico. Isso porque a mulher que tem um poder aquisitivo mais alto acessa uma clínica clandestina adequada, que não coloca em risco a sua saúde reprodutiva”, diz Talib.
Em março deste ano, a Câmara dos Deputados do Chile aprovou um projeto que permite a interrupção da gravidez em três situações: inviabilidade do feto, risco de morte para a mãe e estupro. O texto ainda precisa ser aprovado pelo Senado para seguir para a sanção da presidente Michelle Bachelet.
Atualmente, vigora a legislação chilena que prevê pena de prisão para a mulher que cometer o aborto e para o profissional que realizá-lo. A pena só é reduzida se a mulher o fizer para “ocultar a sua desonra”.
“Temos poucos avanços no tema do aborto e da autonomia reprodutiva porque há um cenário político conservador na região, que é muito influenciado por uma moral religiosa que enfrenta o debate no campo dos direitos reprodutivos sob a perspectiva do dogma e não dos direitos ou necessidades em saúde”, afirma Débora Diniz, professora da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.
Para a executiva da Clacai, além de normas restritivas, há interpretações que penalizam também as mulheres que estão dentro da lei. Exemplo disso é o caso, denunciado pela ONG Artemis em abril deste ano, de uma jovem de Goiás grávida após um estupro. Ao procurar a Delegacia da Mulher e o Hospital Materno Infantil, em Goiânia, foi constrangida e teve o procedimento negado pelas autoridades locais. No hospital, ela chegou a ser questionada mais de uma vez se o estuprador não era seu namorado e se não tinha religião. A interrupção só foi realizada em São Paulo, no Hospital Pérola Byington (referência no procedimento), acionado pela ONG.
Um estudo realizado por Alberto Pereira Madeiro e Debora Diniz mostra que interpretações distorcidas da lei, como essa, não são uma exceção: no Brasil, 14% dos serviços cadastrados no sistema de aborto legal exigem boletim de ocorrência e 8% só o fazem com ordem judicial.
No entanto, nenhum dos documentos é obrigatório para comprovar que houve um estupro, de acordo com as normas do Ministério da Saúde.
“Considero que a principal razão de leis e interpretações restritivas contra o aborto está associada à desigualdade de gênero que existe na região, além da imposição de instituições religiosas, cujo interesse está mais em influenciar na política do que na consciência das pessoas”, afirma Chavez.
“O Estado é laico. Não é possível que políticas sejam baseadas em valores religiosos, elas têm que atender a todas as populações”, diz a representante do Católicas. “A gente utiliza uma conceituação da própria Igreja Católica, que é a do livre arbítrio, para defender o direito ao aborto. Entendemos que essa é uma situação moral difícil e que, quando não há uma unanimidade na igreja (porque existem divergências de pensamento internamente) a mulher deve se utilizar da sua própria consciência para fazer a escolha”, diz.
Se a maior parte da América Latina criminaliza a interrupção da gestação, há locais em que o procedimento é legal, como Uruguai, Cuba e na Cidade do México.
“Não há indícios de que a lei penal reduza o número de abortos, como mostram os dados sobre aborto inseguro na região. Tampouco é possível afirmar com segurança que a descriminalização tenha impacto no número de abortos realizados em um país, mas o que é, sim, possível afirmar é que a implementação do aborto legal reduz riscos e é uma ação de proteção à saúde e vida das mulheres”, diz a professora da UnB.
No Uruguai, por exemplo, nos primeiros meses após a legalização (entre dezembro de 2012 e maio de 2013) nenhuma morte por aborto foi registrada. O país associa o sistema de aborto legal a programas de educação sexual e reprodutiva e de acesso a métodos contraceptivos.
FOTO: MARCHA DAS VADIAS (ALAN DE SOUZA)