Por que a direita ‘saiu do armário’?
Análise

Por que a direita ‘saiu do armário’?

Entrevistamos dois estudiosos para entender o fenômeno no Brasil e no mundo; crise de representatividade política, polarização e ‘ódio ao outro’ são parte da explicação

em 15/02/2017 • 12h15
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A posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos talvez seja o melhor símbolo da guinada política em curso no Ocidente. Trump personifica não apenas o desgaste do modelo da democracia representativa, mas a força de um sentimento punitivista que insiste em ver no ‘outro’ a fonte dos males sociais − e que precisa, então, ser combatido. A mesma perspectiva encontramos ao sul do muro que Trump pretende finalizar, na fronteira com o México.

Trata-se de um avanço conservador, acoplado à insatisfação com a política tradicional, que vem plantando agendas neoliberais na Argentina e no Brasil e que pressiona governos mais ou menos progressistas no Chile, no Uruguai e na Venezuela. Fruto do mesmo processo, está a eleição de personagens propagandeados e absorvidos como ‘apolíticos’ −  como o presidente argentino, Mauricio Macri, o prefeito de São Paulo, João Doria, e o alcaide do Rio, Marcelo Crivella.

Ao mesmo tempo, a esquerda, diminuída, patina na elaboração de respostas programáticas de maior consenso, incapaz que tem sido de entrar em sintonia com os anseios populares. Este é o panorama da atualidade esboçado, a pedido da Calle2, por acadêmicos especializados em política: a cientista social da Universidade Federal de São Paulo Esther Solano e o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, da Universidade Federal de Minas Gerais.

Para ambos, o terreno da direita e da extrema-direita tem se expandido em decorrência da crise econômica, da religião e da própria expansão dos direitos das minorias nos últimos anos. Por sua vez, o poder da internet como disseminadora ideológica não deve ser desprezado. A seguir, os melhores trechos das análises elaboradas pelos dois estudiosos:

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O AVANÇO DA DIREITA

Esther Solano: Estamos assistindo ao aumento de uma extrema-direita a nível global. Acho que temos aí duas ou três questões fundamentais. A primeira é a crise da democracia representativa: os partidos políticos tradicionais já não representam mais, ou seja, está todo o mundo muito frustrado, muito descontente com a política, e isso dá espaço tanto para movimentos novos de esquerda, como o Podemos, na Espanha, quanto para movimentos novos de direita e ultradireita.

O que a direita e a ultradireita fazem muito bem é canalizar e potencializar o sentimento de raiva contra o sistema político, contra a democracia representativa, contra a globalização, contra os imigrantes, contra o ‘inimigo’, seja ele quem for. E joga bem também com o discurso que diz ‘Eu não sou político, sou empresário’.

As ondas conservadoras surgem quando a esquerda, de alguma forma, está num período de decadência ou enfraquecida. No Brasil, com a decadência do projeto petista, deixa-se um espaço político e social maior para grupos de direita. Por outra parte, a direita surge mais conservadora, reacionária e punitiva justamente como reação aos avanços sociais conquistados pela esquerda.

Rodrigo Patto Sá Motta: O aumento da força política da direita é incontestável, em todos os quadrantes do mundo. O fenômeno é complexo, mas tem como pontos essenciais a crise econômica, o aumento nos fluxos migratórios e a maré montante do conservadorismo religioso. Há estudos na Europa que mostram correlação entre o aumento do desemprego e a adoção de reformas liberais (que reduzem a proteção social) com o incremento da popularidade da extrema-direita.

Os países em que o radicalismo direitista cresce mais são os que mais cortaram benefícios sociais.

Na Europa e nos Estados Unidos, o aumento da presença de imigrantes tem também potencializado a direita radical. Tradicionalmente, a sensibilidade da extrema-direita (nacionalistas e fascistas) sempre foi aguçada contra o estrangeiro, o ‘outro’. A atual recusa ao estrangeiro é agravada pela ausência de emprego e pela redução de recursos públicos, que são cada vez mais disputados. Em quadro de bonança econômica e pleno emprego, o preconceito seria menor.

O principal impulso da direita no Brasil é diferente da Europa. Aqui o motor principal é o anticomunismo, ou, mais precisamente, o antiesquerdismo (e o antipetismo), que tem raízes ao mesmo tempo sociais e religiosas. Enquanto a economia crescia e havia sensação de bem-estar, os discursos de direita tiveram dificuldade para atingir público mais amplo, inclusive porque a grande mídia não lhes prestava maior atenção. Mas, a partir de 2013, com a desagregação econômica e política do projeto petista, a campanha de direita aumentou de intensidade e ofereceu grande contribuição ao processo de impeachment.

POLARIZAÇÃO POLÍTICA

Esther Solano: Questões de ordem religiosa e moral se introduzem na política, sobretudo em momentos de crise, justamente como fontes de polarização. O Brasil é um caso típico disso: o aborto, a maioridade penal, os temas femininos, a família, a população LGBT. São questões morais que se introduzem na política por meio de alguns atores, como as bancadas evangélica e da bala.

Ao moralizar a política, acaba-se discutindo menos questões econômicas e internacionais e mais questões de ordem moral. Não se trata o aborto como um problema de saúde pública, mas do ponto de vista da moral.

Rodrigo Patto Sá Motta: A crise recente provocou a potencialização de valores conservadores que já estavam presentes em muitas pessoas, mas que os manifestavam pouco ou em escala moderada. A recente polarização levou à radicalização de posições, com pessoas verbalizando ideias conservadoras que em outro momento teriam constrangimento de expressar. Em época anterior, muitas pessoas tinham vergonha de assumir-se como direitistas; hoje, muitos resolveram fazê-lo de maneira ostensiva. Como afirmei em uma palestra, a direita ‘saiu do armário’. Não há problema nisso, as pessoas têm direito à opinião política. O que precisam aprender é aceitar a opinião diferente, tolerar o outro, pois o pluralismo é a base de uma sociedade democrática.

Tomemos como exemplo o tema da ascensão social das pessoas mais pobres e negras. Muitas pessoas que se consideram brancas e de classe média começaram a sentir incômodo com a mudança de patamar social de grupos antes excluídos, que preferiam vê-los mantidos nos ‘seus lugares’.

O fato de pobres e negros começarem a ter mais visibilidade social incomodou e potencializou sentimentos conservadores previamente existentes.

E as mudanças foram atribuídas aos governos de esquerda, o que em parte é verdade, gerando um alinhamento à direita.

O PAPEL DAS REDES SOCIAIS

Esther Solano: As redes sociais eram tidas como plataformas de democratização. O Manuel Castells [sociólogo espanhol] falava que a rede social e a internet iam fomentar a democracia, por serem uma plataforma mais horizontal, participativa etc. Mas o que nós vemos é que a internet também pode atuar como um gueto ideológico − e isso muito claramente no Facebook, em virtude dos seus algoritmos, que atua como uma bolha ideológica, onde não se conversa com quem pensa diferente. Isso não favorece a democracia, mas um pensamento unitário, fechado e autoritário. Por outra parte, o anonimato da internet também favorece o discurso de ódio. A internet tem essa duplicidade, eu diria até um paradoxo: ela serve como plataforma de organização de movimentos democráticos, participativos, mas serve também para potencializar notícias inverídicas, falsas, não confirmadas, além de discursos de ódio e os guetos ideológicos.

Rodrigo Patto Sá Motta: As redes sociais não são a origem da guinada direitista, mas certamente contribuíram para disseminar os valores e ideias desses grupos. Como toda forma de mídia, a internet pode ser usada por diferentes projetos políticos. Mas, nos últimos anos, diversos grupos de direita montaram estruturas eficazes de comunicação via redes sociais.

As redes sociais são instrumento perfeito para a propaganda, pois facilitam a disseminação rápida e barata de imagens simples, muitas vezes mobilizando mais a emoção do que a razão.

A eficácia desses discursos depende da boa disposição do público receptor, ou seja, muitas pessoas já estavam inclinadas negativamente em relação à esquerda, pelo desgaste dos governos petistas ou por discordarem de suas ações. A propaganda de direita semeou em terreno fértil. Porém, há que lembrar também o papel da mídia tradicional, pois muitas das pessoas que hoje veem no PT o demônio e a origem de todos os males não têm acesso à internet.

PROGNÓSTICO PARA O FUTURO IMEDIATO

Esther Solano: O meu prognóstico é que os grupos políticos conservadores, punitivos, evangélicos vão aumentar o seu poder. A esquerda não só está fragilizada do ponto de vista partidário como também do ponto de vista da organização simbólica social – ela perdeu boa parte da sua capacidade de criar um consenso social, de ter uma força transformadora no Brasil. Ela tem que se reorganizar.

Claro que uma onda conservadora pode ser sucedida por uma onda progressista. Definitivamente, em política, jogamos muito com essa ideia de dialética de ação e reação. Quando você tem um avanço social muito importante sempre haverá pessoas ameaçadas por ele e uma onda regressiva reacionária. Agora, quando você tem um período que historicamente vai ser conservador, punitivo e reacionário, imagino que as esquerdas –  locais, regionais e internacionais – vão começar a se reorganizar. O problema, agora, é talvez esse de que a democracia representativa está em crise.

Enfrentamos um problema de grandes dimensões, e não estamos falando de esquerda e direita, e sim do sistema. Ou seja, não é tanto mudar do ciclo da direita para o da esquerda, do conservadorismo para o progressismo, e vice-versa: o sistema está em colapso.

A questão é como as forças político-partidárias democráticas vão conseguir resgatar a democracia representativa, porque, senão, as opções que podem aparecer, autoritárias e antidemocráticas, são bem perigosas.

Rodrigo Patto Sá Motta: É possível sim o retorno da esquerda ao poder em futuro próximo, a depender do maior sucesso ou insucesso dos governos de direita. As políticas liberais causam muitas vítimas e uma massa de descontentes, que podem inclinar-se pela esquerda em busca de alternativa melhor. Atualmente, as forças de esquerda estão em recuo e fragilizadas, mas em algum momento vão se reorganizar e retomar o poder.

No caso do Brasil, o prognóstico político é ruim, com os partidos esfacelados, os eleitores descrentes e uma radicalização de opiniões que é preocupante, pois muitas pessoas sem formação política resolveram tornar-se cidadãos ativos agora, e não sabem respeitar as regras de uma democracia pluralista, que implica conviver com opiniões diferentes.

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