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Sociedade

Cristina, Bachelet, Dilma e o velho machismo latino

Três presidentes sob ataque misóginos: é ‘durona’ quando tem personalidade forte e ‘fraca’ quando é conciliadora; o desafio de ser mulher e respeitada no universo político

em 17/06/2016 • 01h30
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Elas assumiram a posição mais importante em seus países, mas não sem passar por julgamentos e críticas típicos de países latino-americanos machistas. No Chile, Michelle Bachelet já foi avaliada na política como “feminina demais”. Na Argentina, muitos questionaram se Cristina Kirchner conseguiria governar após a morte do marido, o ex-presidente Nerstor Kirchner. No Brasil, Dilma Rousseff ganhou a imagem de “mulher histérica” em alguns meios de comunicação durante a discussão do seu processo de impeachment.

Não se trata de avaliar se os governos dessas presidentes foram bons ou ruins. O fato é que as três foram, por serem mulheres, questionadas por sua competência e viraram alvo de comentários machistas: “muito gorda”, “muito magra”, “essa roupa não caiu muito bem”, “governa como um homem”, “não tem pulso firme”.

“Em uma sociedade violentamente patriarcal como a nossa, pouco importa o que uma mulher líder faz: sendo uma figura pública, importa mais o que ela veste, como é seu corpo, como caminha, como fala. Quantas vezes lemos comentário sobre o peso, as roupas ou a aparência de nossos representantes masculinos? Nunca ou muito raramente, já que isso simplesmente não é considerado relevante”, diz Patrícia Duarte Rangel, pesquisadora da USP (Universidade de São Paulo) vinculada ao projeto “50 anos de feminismo: novos paradigmas, desafios futuros − Argentina, Brasil e Chile”.

‘Quantas vezes lemos comentário sobre o peso, as roupas ou a aparência de nossos representantes masculinos?’

A professora Loreto Rebolledo, do Centro de Estudos do Gênero da Universidade do Chile, diz que sempre houve comentários sobre as roupas e o peso da presidente Bachelet, apesar do seu percurso político. “Na primeira eleição, foi construída uma imagem de Bachelet como a filha do general [Alberto Bachelet, que morreu em 1974 após ser torturado durante a ditadura militar], que esteve presa, que foi exilada, e que foi capaz de se levantar diante de tudo que havia passado. Mas, na hora de ser avaliada, era julgada de uma maneira muito dura, desde parâmetros machistas. Bachelet é uma pessoa alegre, que gosta de dançar, mas também é motivo para ser criticada: ‘é muito festeira’, ‘bebe muito’”, diz.

Em situações ainda mais graves, essas presidentes viraram alvo de violentas ofensas. Dora Barrancos, socióloga e pesquisadora do Instituto de Estudos de Gêneros da Universidade de Buenos Aires, conta que havia um grafite que dizia: ‘Cristina, no te vayas com Chaves, ándate con Chuda’. Ela explica: “A interpretação salta à vista: tratava-se de indicar a destituição de uma prostituta. Conchuda é uma palavra que insinua essa noção [e ándate pode ser interpretado como ‘vá embora’]. Tal é o nível de agressividade que tem sido alvo a presidente”, diz

Algumas ofensas muitas vezes são violentas e têm cunho sexual: um grafite na Argentina fazia um jogo de palavras que terminava por chamar Cristina de prostituta - e de sugerir sua deposição

Dilma chegou a ser retratada em posições sexuais em charges e imagens divulgadas na internet. Em muitos protestos, foi xingada de “puta”, “vaca”, “arrombada” e “vadia”. Para Rangel, esse tratamento oferecido à presidente “é machismo, é misoginia”, que segundo ela são “expressões incompatíveis com uma democracia consolidada e com uma sociedade justa”.

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Rangel lembra que Cristina Fernández foi considerada impopular por ser uma figura forte, com um estilo de governar considerado “masculino”. Do mesmo modo, Dilma foi associada a estereótipos de “dura”, “rabugenta” e pouco carismática, que iam contra a ideia de uma postura feminina considerada “adequada”. Por outro lado, Bachelet está vinculada a uma gestão mais colaborativa, de consenso, características tradicionalmente ditas “femininas” e, por isso, muitas vezes foi apontada como uma líder fraca.

Se a presidente tem uma personalidade forte, é chamada de ‘dura’ e ‘rabugenta’; se é conciliadora, é considerada uma líder fraca

“Isso indica que existe uma ampla gama de estilos de liderança entre presidentas, e que nem todos evocam uma abordagem ‘feminina’. Contudo, é interessante notar que o ‘perfil masculino’ de Dilma e Cristina acarretou muitas críticas, sempre associadas à inflexibilidade, teimosia, incapacidade de acolher sugestões e críticas”, diz a pesquisadora da USP.

Bachelet foi diversas vezes associada à figura materna, tanto quando adotou políticas “assistencialistas demais”, segundo críticos, como quando houve uma denúncia de tráfico de influência envolvendo seu filho e sua nora. “Ela nunca condenou de maneira aberta o filho, aí muitos dizem que se comportou mais como mãe do que como presidente”, diz Rebolleto.

“Aceitando ou rejeitando o papel tradicional feminino na política, as grandes líderes sempre serão julgadas pelo único motivo de não serem desejadas no universo da política institucional, já que são mulheres”, afirma Rangel (confira levantamento feito pela Calle2 sobre o número de mulheres que comandam ministérios na América Latina).

As presidentes também enfrentaram dificuldades em suas relações com outros poderes e com os próprios partidos de suas bases de apoio pelo fato de serem mulheres, avaliam as pesquisadoras.

“Não há dúvida de que reservas misóginas caracterizaram os vínculos entre uma presidente mulher e as representações no Congresso, ainda que existam mais de 30% de mulheres no Parlamento [argentino]”, afirma Barrancos.

No Brasil, a presidente Dilma enfrentou, por diversos fatores, um processo de deterioração das suas relações com Legislativo, que culminou na abertura de um processo de impeachment. “Por um lado, isso se deve ao fato de a presente legislatura ser a mais conservadora desde 1964. Por outro lado, podemos observar que os legisladores tendem a não respeitar a autoridade das mulheres, mesmo quando se trata da própria presidenta da República”, diz Rangel.

‘Os legisladores tendem a não respeitar a autoridade das mulheres, mesmo quando se trata da presidenta da República’

Rebolledo diz que Bachelet sempre foi vista com desconfiança pelos partidos da coalizão, que questionavam a sua capacidade de tomar decisões. “Se achassem que poderiam ganhar com um homem em 2013, não a teriam colocado novamente na disputa”, afirma.

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Se os obstáculos para as governantes mulheres ainda vão além das relações puramente políticas, a professora chilena explica que há sim impactos positivos de tê-las em um cargo de presidência, mas que muitas mudanças ainda são necessárias nos três países em questão.

“Acho que as conquistas [de ter presidentes mulheres] são mais simbólicas do que reais”, afirma a pesquisadora chilena, argumentando que ainda é baixo o número de mulheres no Parlamento, nas diretorias de empresas e em altos cargos acadêmicos. “Dilma, Bachelet e Cristina são mulheres graduadas, ilustradas, mas o que acontece com as mulheres dos setores populares? Seguem no mesmo lugar em que estavam antes”.

E continua: “A primeira vez que Bachelet ganhou as eleições presidenciais, mulheres de todos os setores sociais − pobres, trabalhadoras, estudantes − saíram com uma faixa presidencial no peito… ou seja, elas diziam ‘é possível’. Por isso, eu creio que simbolicamente é muito importante, o que não quer dizer que por ter uma presidente mulher esteja tudo conquistado”.

‎FOTO (2014): blog do planalto

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