Cenas de uma imprensa parcial e manipuladora
Análise

Cenas de uma imprensa parcial e manipuladora

Não é novidade que a imprensa brasileira seja parcial - o assunto ganhou destaque inclusive em publicações estrangeiras; mas podemos dizer que a mídia é manipuladora?

em 13/05/2016 • 12h00
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Quando participou de um debate no Senado, no dia 28 de abril, Janaína Paschoal reconheceu que recebeu R$ 45 mil do PSDB para elaborar parecer que daria origem ao pedido de impeachment da presidente eleita Dilma Rousseff. Paschoal, que virou motivo de chacota nas redes sociais por seu temperamento histriônico, confessou o pagamento em horário nobre na TV − retransmitido para milhões de brasileiros. No dia seguinte, os jornais Folha de S.Paulo e Estadão não dedicaram uma linha sequer ao assunto.

Não é novidade que a imprensa brasileira é parcial com uma forte tendência anti-PT. Nos últimos meses, os principais jornais do país deixaram claro, em seus editoriais, seu posicionamento pró-impeachment ou favorável à renúncia da presidente eleita Dilma Rousseff. Estudo feito pela jornalista Cileide Alves revela que, nos primeiros quatro meses deste ano, Estadão publicou 83 editoriais contrários à Dilma, à Lula ou ao PT; O Globo se posicionou com o mesmo viés político em 29 editoriais e a Folha (a única que não apoiou claramente o impeachment, mas a renúncia), em 23.

Também não é novidade que a mídia brasileira é um oligopólio dominado por poucas famílias, muitas delas de direita. Neste ano, o Brasil caiu cinco posições no ranking de liberdade de imprensa, ficando em 104º lugar, de acordo com a ONG Repórteres sem Fronteiras. “A propriedade dos meios continua muito concentrada, especialmente nas mãos de grandes famílias industriais que frequentemente são próximas à classe política”, diz o estudo.

O debate, porém, deve ser aprofundado. A parcialidade do posicionamento editorial contamina a cobertura dos fatos e eventos? A parcialidade pode ser entendida como uma tentativa de manipulação?

Para João Feres, coordenador do Manchetômetro, projeto que monitora o viés de cobertura dos principais veículos brasileiros, o problema não é o posicionamento editorial – mas o impacto que esse posicionamento tem na cobertura noticiosa dos fatos.

“A grande mídia brasileira tem uma atitude antipetista que vem de longa data. É uma imprensa anti-esquerda, mas especialmente anti-PT. E ela continua assim. Não me incomodo com posicionamento editorial, o que me incomoda é a desonestidade da cobertura, pois falta equilíbrio e pluralidade”, analisa.

Ele ressalta que essa desonestidade da cobertura está, muitas vezes, nos detalhes. “Quando algum político do PT é investigado ou está relacionado a alguma notícia não positiva, os jornais citam nominalmente o partido nas manchetes e nos títulos. Ao contrário, quando é um escândalo de corrupção envolvendo outro partido, apenas o nome do político aparece nos títulos”, exemplifica.

Outro exemplo citado por Feres são as omissões – ou seja, o que o jornal escolhe publicar e, consequentemente, não publicar. Um dos exemplos é o silêncio da Folha e do Estadão diante do fato de que umas das autoras do pedido de impeachment tenha sido paga pelo PSDB. “Não é exagero dizer que a imprensa brasileira é manipuladora”.

O sociólogo e jornalista Perseu Abramo, morto em 1996, escreveu um importante livro sobre o assunto. Em “Significado político da manipulação na grande imprensa”, o pesquisador, que foi professor e conheceu os bastidores da grande imprensa paulista, categoriza quatro padrões de manipulação da imprensa; um deles é justamente o “padrão pela ocultação”.

“É o padrão que se refere à ausência e à presença dos fatos reais na produção da imprensa. Não se trata, evidentemente, de fruto do desconhecimento, e nem mesmo de mera omissão diante do real. É, ao contrário, um deliberado silêncio militante sobre determinados fatos da realidade”, escreve Perseu Abramo.

Os outros três padrões de manipulação, segundo Abramo, seriam: o padrão da fragmentação dos fatos, da inversão e da indução (leia mais sobre a análise de Abramo aqui).

A ocultação talvez seja o padrão mais facilmente detectado – e o mais praticado. Além da omissão já citada da Folha, a Rede Globo não transmitiu o discurso de Lula no dia 18 de março (argumentando falta de segurança) e a revista IstoÉ deu um furo nacional com a delação do ex-senador do PT Delcídio do Amaral mas, na reportagem, não há sequer menção ao PSDB; a revista mencionaria o senador tucano Aécio Neves uma semana após o grande furo, em uma reportagem interna. Importante destacar que foi com base nesta mesma delação que a PGR (Procuradoria-Geral da República) pediu investigação a Aécio (leia mais no quadro abaixo).

Porém, em alguns episódios, a manipulação é tão explícita e descarada que parece afrontar a inteligência do telespectador. Um dia antes da votação do impeachment na Câmara dos Deputados (16 de abril), a Globonews inseria comentaristas e repórteres ao vivo justamente quando um deputado pró-governo subia à tribuna – impedindo, portanto, que seu telespectador escutasse argumentos contrários ao impeachment. Esse padrão de edição durou todo o dia – e nos remete ao famoso e vergonhoso caso da edição, em 1989, do debate Collor x Lula. Parece que a emissora não aprendeu com seus erros do passado.

Questionada pela Calle2, a Rede Globo não se pronunciou. No entanto, provocado por um crítico texto de David Miranda, publicado no The Guardian, o presidente do conselho editorial da Globo, João Roberto Marinho, escreveu uma carta-resposta ao jornal.

“Precisamente para evitar qualquer acusação de incitar manifestações de massa – como o Sr. Miranda agora nos acusa – o Grupo Globo cobriu os protestos sem nunca anunciar ou dar parecer sobre eles em seus canais de notícias antes de acontecerem. Quando o processo de impeachment começou na Câmara “Baixa” do Congresso, alocamos igual tempo e espaço para a defesa e acusação”, diz Marinho, outra vez em uma clara afronta à inteligência do telespectador. A réplica de Miranda à carta de Marinho vale a pena ser lida.

Também incomodada com a parcialidade da grande imprensa, a jornalista e mestra em História Cileide Alves fez um detalhado estudo sobre o posicionamento editorial dos três principais jornais do país em três distintos momentos históricos – golpe de 1964, impeachment de Collor (1992) e o impeachment de Dilma.

Em artigo publicado no Observatório da Imprensa, Cileide lembra o apoio da grande imprensa ao golpe de 1964, e destaca trechos de editoriais que são de revirar o estômago.

Depois do Ato Institucional nº 1, em 9 de abril de 1964 – que alterou a Constituição e determinou, entre outras coisas, a eleição do presidente pela via indireta, o Estadão anunciou o sucesso dos militares como a “esmagadora vitória alcançada pela democracia liberal contra os totalitários extremistas.”

A conclusão da pesquisa é estarrecedora: a imprensa brasileira voltou a se posicionar de forma clara e militante como o fez em 1964.

“É um retrocesso”, diz Alves à Calle2. Em 1992, durante o impeachment do Collor, os veículos foram cautelosos e tiveram um importante papel investigativo. Mas voltaram a deixar a investigação para, hoje, serem meros reprodutores de vazamentos. “A mídia ficou militante. Foi a Veja que inaugurou isso. A posição editorial interfere nas reportagens e na cobertura. O que mais me incomoda é que eles fingem que são plurais, mas são tão pouco plurais como nos editoriais”.

Alves tira outra conclusão interessante em seu estudo: “A atuação da imprensa em 2016 em nada lembra a de 1992. Diferentemente, há vários elementos que a aproxima da de 1964. O contexto internacional mudou. Não há mais o fantasma do comunismo da Guerra Fria. A disputa ideológica agora acontece nas Américas, com os governos esquerdistas e populistas na Venezuela, Equador, Bolívia e Argentina. Daí surgiram os novos “perigos” a assombrar os setores conservadores da sociedade brasileira. Trocam-se as palavras comunismo e totalitarismo de 64 e por lulopetismo e bolivarianismo. Formou-se, assim, o novo quadro ideológico que novamente uniu jornais, empresários, parte da população e políticos contra esta ameaça moderna representada no governo de Dilma Rousseff.”

Ou seja, na avaliação de Alves, o grande novo inimigo é o ‘lulopetismo’ e o ‘bolivarianismo’. “Mas, o que é o bolivarianismo? A própria imprensa não explica. O que o Brasil tem a ver com a Venezuela?”, questiona a jornalista.

Para estes termos, muitas vezes abstratos e sem significado objetivo, Feres, do Manchetômetro, tem uma explicação: são termos meramente pejorativos, que visam desclassificar o “outro lado”.

Como toda boa jornalista, Cileide Alves é crítica: da mesma maneira que afirma não ler a Veja e não ver a Globonews (“porque me incomoda”), ela não alimenta a audiência dos militantes blogues de esquerda. E destaca: que nesta guerra contra o “lulopetismo”, o Lula também tem sua culpa no cartório, já que inflamou essa ‘disputa’ com a imprensa e alimentou veículos ‘ideologizados’ ao patrocinar sites de esquerda.

Para Manuel Carlos Chaparro, professor colaborador da USP, o problema não é tanto a parcialidade da imprensa, mas a falta de independência financeira.

Neste aspecto, um levantamento feito pelo jornalista Fernando Rodrigues ilumina rincões do debate. Em 2015, o governo Dilma cortou R$ 591,5 milhões de gastos com publicidade oficial, a maior redução desde o ano 2000. O valor caiu de R$ 2,45 bilhões em 2014 para R$ 1,86 bilhão em 2015 (redução de 24%). Os maiores afetados foram os jornais (com redução de 42,2% entre 2014 e 2015), revistas (-44,2%) e televisão (-25%).

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CINCO CENAS DE UMA IMPRENSA PARCIAL*

1. Folha e Globonews demoram 15 dias para informar que a equipe de Temer é investigada pela Lava-Jato

Michel Temer começou a se articular para montar o seu ministério no dia 18 de abril, logo após a votação da Câmara dos Deputados. Os principais ministros de Temer são investigados pela operação Lava-Jato (ou citados em delações). A imprensa, porém, demorou a revelar o passado não ilibado desses políticos. No domingo 24 de abril, O Globo publicou um detalhado levantamento sobre as suspeitas que caem sobre os ministros de Temer – e também as suspeitas sobre o próprio Temer. A Folha e a Globonews se calaram durante 15 dias.

Apenas no dia 3 de maio (e depois de um e-mail da Calle2 à ombudsman da Folha questionando a omissão), o jornal publicou uma arte sobre o assunto – estranho porque não havia nenhuma matéria relacionada à esta arte (e o quadro não foi publicado no on-line, apenas no impresso). Não coincidentemente, foi também neste mesmo dia que a Globo rompeu o silêncio e que o jornalista Gerson Camarotti entrevista Temer questionando-o sobre o fato de sua equipe estar na mira da Lava-Jato.

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2. Folha omite que PSDB pagou R$ 45 mil para a autora do impeachment

No dia seguinte às declarações de Janaína Paschoal, Folha e Estadão ignoram que ela tenha recebido R$ 45 mil do PSDB para fazer o parecer do impeachment (o Estadão, porém, citou no sexto parágrafo de uma matéria do dia 19 de setembro do ano passado com o título “Largo de São Francisco vive batalha jurídica”). A Folha cita o fato apenas na cobertura ao vivo do debate, mas retira a informação nas matérias da Folha.com. O Globo comenta o recebimento do pagamento e também o site de notícias R7. Questionada pela Calle2, a Folha não se manifestou sobre a omissão.

3. Globonews insere comentaristas ao vivo justamente na hora que deputados contrários ao impeachment assumem a tribuna

No sábado antes da votação do impeachment (dia 16 de abril), quando deputados tinham alguns minutos para se pronunciarem sobre o impedimento da presidente, a Globonews retransmite o debate da TV Câmara, porém, insere repórteres e comentaristas ao vivo no exato momento da fala de um parlamentar pró-governo.

 4. Em furo nacional, IstoÉ omite acusações de Delcídio do Amaral sobre PSDB

Com base na delação do ex-senador Delcídio do Amaral (sem partido), a PGR (Procuradoria-Geral da República) pediu ao STF para investigar o senador Aécio Neves (PSDB). A IstoÉ, que deu um furo de reportagem no dia 3 de março e conseguiu acesso à delação mesmo quando ela estava sob sigilo, não cita em qualquer momento o PSDB ou Aécio Neves. Apenas uma semana depois, na edição do dia 9 de março, a revista citaria Aécio; ainda assim, no quarto parágrafo de uma reportagem interna, com o título “Os outros citados” (que explora também as suspeitas sobre políticos do PMDB).

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5. Globo não transmite discurso de Lula em manifestação

Esse episódio foi bem comentado nas redes sociais. Na sexta-feira 18 de março, o presidente Lula discursou para uma avenida Paulista lotada, e a Globo não transmitiu, argumentando que eram motivos de segurança, pois não haviam encontrado um lugar adequado para colocar a câmera.

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* Calle2 fez um levantamento de casos mais relevantes dos últimos dois meses. Optamos por não analisar a revista Veja (por excesso de obviedade)

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