América Latina não é prioridade para os EUA neste momento
Análise

América Latina não é prioridade para EUA

Para Jon Lee Anderson, autor da biografia do Che Guevara, tensões com a Rússia, ISIS e guerra na Síria são questões mais importantes para o próximo presidente

em 25/10/2016 • 09h00
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Nos últimos quinze dias, o jornalista estadunidense Jon Lee Anderson, da prestigiada revista The New Yorker, esteve em três continentes diferentes. Ainda no começo de outubro, saiu dos Estados Unidos rumo à Cartagena, cidade histórica colombiana, para acompanhar as cerimônias de comemoração do acordo de paz do Estado com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), entrevistar o presidente do país, Juan Manuel Santos, e acompanhar o plebiscito que legitimaria o tratado – algo que não aconteceu.

Dias após o referendo, desembarcou no Brasil (São Paulo e Rio de Janeiro) para uma série de palestras e debates sobre jornalismo e seu trabalho como biógrafo de personagens latino-americanos históricos, como o líder da Revolução Cubana, Fidel Castro, o finado presidente venezuelano, Hugo Chávez, além do médico e guerrilheiro argentino Ernesto “Che” Guevara, cuja biografia lançada em 1997 – Che – Uma biografia – é chamada de “definitiva” pela literatura internacional e foi eleita como a principal publicação daquele ano pelo jornal The New York Times.

Na semana passada, quando atendeu a reportagem da Calle2, Anderson já estava no interior da Inglaterra, dessa vez para um pequeno período de descanso, sem nunca deixar de trabalhar. Em uma hora de conversa, um dos jornalistas mais importantes do mundo e um dos intelectuais mais reconhecidos sobre os assuntos do continente e da América Latina, avaliou as consequências das eleições estadunidenses para a região, a ascensão da direita e as crises nos países latinos. A seguir, trechos da entrevista.

Em um momento de crises econômicas, sociais e políticas na América Latina, as eleições nos Estados Unidos são aguardadas com apreensão na região, pois devem definir uma nova relação entre o continente e o país. A política para a América Latina deverá mudar com o novo presidente?

Espero que o novo presidente não seja Donald Trump, porque tudo mudaria num sentido de chegarmos à Terceira Guerra Mundial. Seria um cataclismo para o mundo. Considerando que isso não vai acontecer e que Hillary vencerá as eleições, acredito que a mudança se dará mais ou menos a partir do rumo que se manteve durante o governo de Barack Obama. Em alguns aspectos acontecerão mudanças de estilo e substância. Obama trouxe uma postura nova e, ainda que não tenha convencido muita gente, suas ações demonstraram que ele queria estabelecer um novo padrão de comportamento do governo estadunidense em relação à América Latina. Muitos latino-americanos, inclusive de esquerda, se mantiveram cínicos em relação a isso, apontando posturas do início do seu governo, como o golpe de Estado em Honduras, em 2009, por exemplo.

Onde isso se torna mais palpável?

Vemos isso na aproximação com Cuba e na postura sobre o processo de paz na Colômbia, ainda que, em processos mais opacos, como o do Brasil − que pode ser claro para os brasileiros, mas é complexo para quem vê de fora −, e o da Argentina, o governo Obama optou por uma filiação. No caso argentino, os Estados Unidos se aliaram a Maurício Macri, algo que não aconteceu com o governo anterior, de Cristina Kirchner, mas na viagem dele [Obama] à Argentina não deixou de visitar um museu em memória das vítimas da ditadura. Sua postura também se manteve opaca com relação ao México, um país que, para muitos cidadãos estadunidenses, tem uma política criminalizada. Mas isso tem mais a ver com o fato de que os Estados Unidos têm uma política especial com os países fronteiriços.

Em resumo: há um esforço consciente de estabelecer uma política mais igualitária, menos condescendente e menos neocolonial a partir do governo Obama, e acredito que Hillary tem a mesma postura política.

Em geral, veremos críticas e elogios parecidos aos que se vê hoje em relação a Obama. Não vejo razão para grandes mudanças.

O presidente do Equador, Rafael Correa, disse recentemente que a vitória de Trump seria “benéfica” à América Latina em certo sentido, pois produziria um sentimento anti-EUA semelhante ao que havia no período Bush. O cineasta estadunidense Oliver Stone também afirmou há alguns dias que, como secretária de Estado, Hillary manteve uma postura mais intervencionista. Você concorda com esses argumentos?

Não sei de onde sai o argumento do presidente Rafael Correa e, da mesma forma, me surpreende a postura de Oliver Stone. Enquanto você fazia a pergunta me lembrava do fato de que Julian Assange está exilado na embaixada equatoriana em Londres, o que pode ser uma explicação, já que ele filtrou alguns documentos que prejudicaram a campanha de Hillary Clinton com a ajuda, ao que tudo indica, dos serviços de inteligência russos. Não sabemos atualmente quais são as motivações de Assange. Além disso, utilizar o discurso do golpe em Honduras, em 2009, para justificar uma postura intervencionista de Hillary, não é capaz de definir seu comportamento atual. Não consigo entender, finalmente, que alguém em sua sanidade mental deseje ver Trump na Casa Branca.

O pensamento de Correa remete à ideia do “antiamericanismo” como um sentimento positivo, semelhante ao que parece balizar um dos debates em Cuba sobre a aproximação com os Estados Unidos. Como você enxerga esse discurso?

Não entendo como isso se justifica. Os Estados Unidos já têm um legado combatido e discutível na América Latina, de forma que não há lógica para que haja ainda mais antiamericanismo no continente. O Equador seria um país mais soberano com esse sentimento? O Equador é as Filipinas das Américas. Tem mais equatorianos trabalhando no exterior como domésticos do que no próprio país. Tem uma biosfera fundamental da humanidade e permite que chineses furem buracos de petróleo em meio a índios ilhados. Onde está a virtude desse sentimento de antiamericanismo? Apelar a esse sentimento hoje em dia não é razoável, já que existem diversas posturas diferentes de Washington.

Alguns assuntos serão especialmente importantes para o novo governo estadunidense com relação à América Latina. Um deles é a continuidade da aproximação diplomática com o governo cubano. Você acha que é um tema que tem vigor para continuar como programa de Estado?

Sim. Principalmente porque a questão do embargo não está nas mãos do presidente, mas do Congresso. A situação está muito complicada neste momento. Obama deu os primeiros passos dessa aproximação, restaurando as comissões bilaterais, retornando ao diálogo e, digamos, “agitando a embalagem” para que haja exportações, importações de remédios, permissões de inversões industriais e outras medidas que visam potencializar a economia cubana, reconhecendo que ela também tem suas virtudes e seus avanços. Nesse sentido, acredito que a aproximação vai seguir acontecendo de forma gradual, da mesma forma como a oposição a essa iniciativa vai permanecer utilizando os mesmos pontos para criticá-la. Apesar disso, é inevitável que o processo avance. A aproximação entre Cuba e Estados Unidos é benéfica para todo o mundo.

Em caso de vitória de Hillary,  é possível que o embargo à ilha seja debatido com força e questões externas (como as relações com os russos e o Estado Islâmico) serão privilegiadas?

Sim. A aproximação com Cuba não será uma prioridade se comparada com a possibilidade das tensões na Síria, no Iraque e com a Rússia se tornarem um conflito maior. É óbvio que será a grande prioridade para quem chegar à Casa Branca. Essas tensões tentam minar os aliados regionais dos Estados Unidos na Ásia e mais ainda na União Europeia. Vladimir Putin está claramente trabalhando nesse sentido, assim como [Recep] Erdogan.

Há ainda a hecatombe do mundo árabe. Em suma, se todos esses temas não forem bem trabalhados poderemos ver um novo conflito mundial.

Nesse sentido, o embargo a Cuba está em um plano muito menor. O presidente Obama me explicou, porém, que viu a aproximação com os cubanos como uma forma de reduzir as tensões em um mundo onde não havia necessidade de tê-las. Era importante limar essas tensões, e acredito que é exatamente isso que Hillary vai continuar fazendo. É importante que, ao menos nas Américas, onde não há divisões religiosas, sectárias e xenófobas, haja uma maior integração. É por isso que Cuba tem um significado especial: ela ajuda a integrar as Américas em um aspecto maior.

Como os cidadãos dos EUA recebem essa aproximação com Cuba?

A aproximação foi muito bem recebida. As pessoas estão emocionadas e ansiosas com a possibilidade de viajar e conhecer Cuba. Elas apreciam muito as coisas que chegam de Cuba e também admiram os produtos culturais que vêm da ilha, como os esportes e a música. Os estadunidenses sempre foram fascinados com os cubanos. Estive há alguns dias em Nova York e vi como a presença cubana na cidade também é forte: esportistas, bailarinos, grupos musicais, escritores. É um grande “boom” cultural que acredito ser muito positivo para a ilha.

A política de aproximação com Cuba está acontecendo com a aprovação da população?

Sim, inclusive nas comunidades hispana e cubano-americana, que tradicionalmente são conservadoras e reacionárias a abrir qualquer canal com o regime cubano. A maior parte do lobby político nos Estados Unidos era no sentido de impedir qualquer abertura, algo que também mudou. Os velhos − os chamados “dinossauros” − já são poucos, e seus filhos e netos não são tão furiosos com Cuba. Até mesmo os “dinossauros” que restaram mudaram seu ponto de vista e se tornaram pequenos empresários dos restaurantes e pequenos negócios que agora foram abertos na ilha. Muitas das mudanças que vemos em Cuba estão sendo financiadas por Miami, por cubano-americanos que não querem mais castigar Cuba, mas ajudá-la.

A imigração latina também tomou conta do debate presidencial, de certa forma negativa. A ideia dos hispânicos como criminosos, vinda principalmente do discurso de Trump, ainda provoca reações no eleitorado estadunidense?

Francamente, acredito que a questão da imigração ainda não cai bem para a maioria dos estadunidenses. É algo que, ao ser apontado de alguma forma, ainda ressoa. Parece similar ao que Hitler fazia na Alemanha nazista ao assinalar que a raça ariana era pura e que era preciso eliminar as raças que a contaminavam, como os judeus e os negros. Trump, de certa forma, reciclou essa velha fábula chamando os hispânicos de criminosos, dizendo-se protetor da família, etc. É um discurso fascista e racista que, segundo alguns estudos recentes, é aceito por pelo menos 30% dos cidadãos do país, mas acredito que as eleições vão mostrar que uma ampla porcentagem dos eleitores votará na Hillary também contra essa mensagem racista.

A vitória do “não” no acordo de paz entre o Estado colombiano e as Farc, o impeachment de Dilma Rousseff, no Brasil, e a crise no Mercosul são sinais de que a direita se fortaleceu na América Latina?

Não sei se podemos colocar tudo na mesma caixa. Por um lado temos, a nível mundial, a candidatura de Trump, o Brexit, o plebiscito colombiano, ou seja, o surgimento de um novo populismo reacionário que é uma posição a um momento específico do mundo, com recessão econômica, com assédio do terrorismo, com as imigrações sem limites que assustam pessoas nos países que nunca receberam estrangeiros na Europa, com o “fator Iphone”. Portanto, a direita é uma resposta a essas realidades em todas as partes do mundo. A “cultura do clique” faz com que seja possível esta suposta democracia à direita, que é muito reacionária e pode ser facilmente manipulável por políticos astutos, capazes de movimentar as massas com discursos dos quais são vulneráveis.

Mas, por outro lado, não é possível incluir a mudança de poder na Argentina e no Brasil e o colapso do chavismo na Venezuela ao mesmo plano. Existem razões distintas para as crises na América Latina: alguns governos não criaram instituições transparentes, permitiram esquemas de corrupção por trás de discursos populistas e se acomodaram com pessoas contra quem lutaram quando eram menores, caso do próprio PT no Brasil.

O governo Temer é também resultado disso, já que ele era da chapa da presidenta Dilma Rousseff e conspirou com a direita para tirá-la do poder. Foi um “golpe de palácio”. A direita está avançando no mundo todo, mas paralelamente a isso os governos de esquerda da América Latina promoveram suas próprias crises.

Vai ser mais difícil um novo acordo de paz na Colômbia?

Sim, mas o presidente Juan Manuel Santos está mantendo a mesma postura que Obama teve com relação a Cuba: fazer o que puder, escutar os outros, fazer mudanças em suas posições, mas seguindo adiante no processo. Ele me disse isso pessoalmente há alguns dias quando estive na Colômbia para cobrir o tratado de paz. O ex-presidente Álvaro Uribe se colocou em uma posição incômoda, porque agora se tornou o responsável por esse “não” até que se desmobilize a guerrilha. A situação momentânea na Colômbia é de um embate, mas acredito que o presidente vai continuar tentando, nem que para isso tenha que conceder algumas coisas superficiais à direita.

O jornal brasileiro O Globo reproduziu uma opinião sua a respeito dos resultados de plebiscitos, no sentido de que as democracias não deveriam usar esse instrumento para legitimar decisões porque as pessoas fazem suas escolhas políticas baseadas em sentimentos pessoais. Você poderia explicar seu argumento sobre isso?

Eu não disse exatamente isso. Na verdade estava respondendo uma pergunta sobre os referendos e expliquei que, por causa da “cultura do clique”, do Facebook, que é nosso pequeno universo particular, do fator Iphone, que faz com que a gente não leia, não escute e, enfim, não saiba sobre o que está acontecendo no mundo lá fora, as ações dos indivíduos são resultados de seus gostos pessoais. No entanto, essas informações estão ao alcance de políticos e de corporações, de forma que somos facilmente manipuláveis. A cultura do plebiscito é semelhante ao que acontecia em Roma quando o gladiador gritava à multidão: “matamos ou deixamos vivo?”.

Quando você faz uma pergunta sensível à multidão, não é um momento puro de democracia e participação política, porque não se trata de um monte de crianças vivendo juntas em uma ilha sem nenhuma influência exterior, mas de pessoas que foram 'trabalhadas' por políticos, por corporações, por instituições. Elas não chegam 'puras' aos referendos.

Quando digo que é preciso ter cuidado com plebiscitos e referendos, estou dizendo um pouco do mundo em que vivemos hoje. Um mundo em que houve um Brexit, em que houve a recusa da paz na Colômbia, em que pessoas se aglomeram ao redor de uma figura como Donald Trump.

No Brasil há uma discussão sobre se o impeachment da presidenta Dilma Rousseff foi legítimo ou se tratou de um golpe de Estado. Você tem uma posição sobre isso?

Não sei o suficiente para afirmar minha posição. O que me parece é que, sem dúvida, por um lado o PT cometeu erros, ainda que Dilma não aparente ser corrupta. Me pergunto se a suposta manipulação de estatísticas econômicas para vencer a eleição é de uma gravidade tal para tirá-la do cargo. Não me parece legítimo. Ficou ainda mais obscuro quando me dei conta da classe de pessoas que a retirou do poder, como Eduardo Cunha e mesmo Michel Temer, além dos cerca de 40 senadores que são réus na justiça por crimes de corrupção.

Mas o que foi mais estranho a nós, que estávamos de fora, foi perceber que, no dia depois da saída de Dilma, já havia todo um plano de governo pronto. Logo, há todos os indícios que o afastamento de Dilma foi repleto de conversas secretas que, em outras palavras, pode ser chamada de conspiração.

O que houve foi uma espécie de “golpe parlamentar” de uma classe política e talvez até dos militares.

Parece que a figura de Lula era muito estimada nos Estados Unidos, e Dilma tinha o respeito do presidente Obama. Como o impeachment foi visto em seu país?

Quase ninguém entendeu o que houve. Claro que também não foi um assunto tão discutido, porque existem tantas coisas acontecendo no mundo que passou um pouco despercebido. Os jornalistas, em geral, têm uma posição parecida com a minha. Os que não possuem o mesmo ponto de vista são curiosamente os dos meios de comunicação mais conservadores, como o Wall Street Journal.

E a postura do governo?

Foi muito, digamos, salomônica. Os governos têm acordos a cumprir e precisavam seguir dialogando até para que houvesse um Brasil mais estável. Os Estados Unidos apoiaram Dilma e agora estão ao lado de Temer, não sei por quê. Não sei o suficiente. Tenho a impressão de que os últimos momentos da presidência de Obama não têm a mesma força que antes para manter uma postura sobre um assunto de um país distinto. Além disso, receberia muitas críticas por uma intromissão em temas internos do Brasil. Ou seja: o governo estadunidense − e especialmente Obama − está limitado.

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