Na tarde de 1º de janeiro de 2009, cento e poucos jovens se aglomeravam em frente a uma barreira de policiais em uma estreita rua de Santiago de Cuba, levantando os punhos e gritando repetidamente, em uníssono: !Raúl, el pueblo quiere verte! A pequena multidão queria avançar em direção à praça mais central da cidade, onde em poucas horas se realizaria o ato comemorativo do cinquentenário da Revolução Cubana. Mas apenas os seletos portadores de convites previamente distribuídos podiam assistir ao evento na praça, o que era garantido pela presença de policiais e agentes de segurança em cada esquina de um raio de cinco quarteirões ao redor da praça. Horas depois, assisti da janela do meu quarto de hotel à chegada de uma sequência de ônibus dos quais desciam inúmeros militares uniformizados que participariam do ato – uma cena de dar calafrios em qualquer um que, como eu, passou parte da infância em uma ditadura militar. A grande ironia era que os jovens que tanto queriam ver o presidente de Cuba e se diziam el pueblo não eram cubanos, mas tinham vindo de diversos outros pontos da América Latina para essas festividades.
Os poucos cubanos que andavam por ali àquela hora olhavam atônitos para aquele protesto espontâneo, surpresos com a insistência daqueles latino-americanos em assistir a um tipo de evento maçante a que eles, cubanos, estavam acostumados a ir apenas por obrigação e aos quais estavam incessantemente expostos na mídia nacional. Vários riam da situação e se burlavam da ingenuidade dos estrangeiros. Mesmo os poucos cubanos que celebravam a efeméride sabiam muito bem que a maioria de seus compatriotas não tinha qualquer entusiasmo pela comemoração, muito menos pelo governo e seu projeto político – o que aliás explica a grande preocupação com a segurança do evento.
Essa situação é plenamente compreensível para qualquer pessoa que tenha vivido em Cuba nas últimas décadas, falado aberta e longamente com habitantes da ilha e a conhecido além das zonas turísticas e dos poucos hospitais de ponta e centros de pesquisa a que são levados convidados oficiais.
Cada vez mais, são cubanos idosos os que ainda têm alguma simpatia ou entusiasmo pelo sistema, enquanto que os demais o veem geralmente como um regime explorador que impõe sacrifícios à população e que insiste em um discurso de poder vazio e repetitivo.
A seguinte cena exemplifica essa situação. Uma senhora de 63 anos, ardorosa defensora do governo, me contava em sua varanda como o ímpeto revolucionário dos cubanos só fizera diminuir desde os anos 1970, e como os jovens não querem participar de trabalhos voluntários, desfiles patrióticos e organizações de apoio ao governo. Seu sobrinho de 27 anos, que até então se limitava a ouvir nossa conversa, interveio enfadado: claro que no, esas cosas no resuelven nada, e começou a tecer uma série de críticas ao governo, como tipicamente fazem cubanos jovens e de meia-idade. Que essa divisão política geracional é ubíqua em Cuba é no que mais parecem concordar pessoas de todas as idades. Mas há também uma crescente desilusão política mesmo entre os mais velhos, ainda que eles tendam a reconhecer isso apenas depois de adquirir certo grau de intimidade com seus interlocutores.
Uma vez, quando já éramos amigos há meses, um octagenário me confessou que se desfiliara do Partido Comunista de Cuba depois de uma série de desilusões com o governo, inclusive com a redução de sua aposentadoria a um valor que não o permitia sobreviver e o forçava a trabalhar ilegalmente como porteiro de um prédio. Às lágrimas, me disse que não tinha ajudado a fazer uma revolução para apoiar um sistema hipócrita de exploração, e me mostrou pela primeira vez a cicatriz de uma bala que levou nas costas quando combatia na Sierra Maestra.
Enquanto isso, grande parte da esquerda latino-americana prefere ver a liderança e o regime cubanos como a personificação e a materialização de lutas emancipatórias e ideais socialistas. A cena que abre este artigo sintetiza o contraste entre a falta de apoio dos cubanos a seu governo e o apego entusiasta da esquerda estrangeira à fantasia do socialismo cubano. Tendo realizado trabalho de campo antropológico em Cuba por mais de 15 anos, presenciei alguns casos patéticos de tal apego.
Uma turista brasileira em Cuba me relatou certa vez que o bebê da família em cuja casa ela alugara um quarto nunca chorava. Isso mostrava, segundo ela, que o sistema de bem-estar social da ilha era tão fenomenal que as crianças ali nem sequer choravam, porque não lhes faltava nada! Não lhe ocorreu que aquele bebê talvez padecesse de algum problema de saúde. Quando voltei de minha primeira viagem a Cuba e comentei as dificuldades e desigualdades causadas por uma economia dolarizada, um amigo próximo me acusou de estar mentindo, pois “Fidel Castro nunca permitiria o uso do dólar em Cuba”! Esse amigo nunca tinha sequer pisado em Cuba, mas sua afirmação revelava o desespero de quem não queria ter um sonho roubado por uma informação que pode ser encontrada em qualquer site de viagens. Mais consciente de suas limitações foi uma amiga argentina, que, ao me ouvir falar sobre minhas decepções com o governo cubano, me pediu: pará, no quiero saber más, necesito creer en algo, y lo único en que aún creo es en el socialismo cubano.
No fundo, essas atitudes refletem uma tendência profunda no exterior a ver em Cuba um mero símbolo político de resistência – e não um país de verdade.
As opiniões, os direitos, os desejos, o bem-estar dos 11 milhões de pessoas de carne e osso que vivem em Cuba parecem não importar muito. Essas pessoas são vistas como os eleitos para pagar diariamente pelo luxo latino-americano de continuar acreditando que uma certa utopia deu certo.
Essa redução do país a um símbolo às vezes toma formas extremas que deixam visível o desconhecimento profundo da ilha entre aqueles que falam como autoridades sobre o tema.
Quando o Papa Francisco I visitou a cidade cubana de Holguín ano passado, Frei Betto disse ao Estado de São Paulo (22/09/2015) que, dada a proximidade da cidade da Base Naval de Guantánamo, essa escolha simbolizava o apoio do Papa à devolução a Cuba do enclave estadunidense. Considerando que essa base naval está cercada por uma província cubana de nome Guantánamo, que está a poucos quilômetros da capital homônima dessa província, que Holguín é capital de outra província, e que nos 210 km entre Holguín e a base de Guantánamo se ergue a segunda maior cidade de Cuba (também visitada pelo Papa), conclui-se que o conhecimento geográfico do teólogo brasileiro sobre a ilha não chega ao nível elementar. Calculando distâncias proporcionais no Brasil, sua afirmação seria algo como ler a visita de alguém a Goiânia como demonstração de apoio às ciclovias de São Paulo, ou enxergar em uma ida a Belém uma homenagem a Canudos.
O retrato de Cuba que o mesmo teólogo pintou em entrevista recente à Calle2 (leia aqui a entrevista completa) – com uma população que apoia o socialismo e que tem um atendimento médico de primeira qualidade – é tão ou mais delirante que sua interpretação da visita do Papa a Holguín.
Não é fácil resumir as razões pelas quais o governo cubano é hoje tão impopular na ilha. Não vou discutir aqui problemas óbvios como o autoritarismo, a repressão aos opositores, a inexistência de uma imprensa não-governamental, a massacrante propaganda que permeia a vida cotidiana de todos, a obrigação de participar de atos em defesa do governo etc. Quanto a esses fatos tão conhecidos, apenas gostaria de levantar uma questão: por que latino-americanos que lutaram contra ditaduras em seus países toleram e defendem que cubanos sejam submetidos a tamanha repressão e autoritarismo?
A esquerda latino-americana age e fala como se os cubanos não merecessem ou necessitassem o que os demais reivindicamos como direitos fundamentais. Defender a democracia em seu próprio país e defender a falta dela para os vizinhos deprecia e desumaniza milhões de pessoas.
Alguns dirão que, enquanto outros países tinham ditaduras de direita, Cuba tem um sistema de esquerda que dá dignidade a seus cidadãos. Por isso me concentro aqui em três aspectos da realidade cubana que mostram a falência do regime em relação a seus próprios ideais.
Primeiramente, saúde pública. Quase todos os cubanos que conheço criticam a ironia de viver em uma potencia médica – que tem o segundo maior número de médicos per capita do mundo e centros de ponta em certas especialidades – e estar submetidos a um sistema de saúde altamente precarizado, onde já não existem os médicos de la familia dos anos 1980, onde faltam medicamentos e equipamentos básicos, onde os hospitais não têm condições sanitárias essenciais. Um dos grandes problemas é que milhares de médicos cubanos trabalham nos quatro cantos do mundo, gerando um déficit no atendimento básico na ilha. Essa prática – essencial para os cofres estatais, pois o governo recebe muito mais do que os médicos pelos serviços prestados – se expandiu ao ponto de que nas clínicas de bairro e em muitos hospitais a população local é atendida por jovens estudantes de medicina, que começam a medicar no segundo ano de faculdade e têm a reputação de dar diagnósticos equivocados.
Quando me queimei em um acidente em Havana, meus amigos da área de saúde me rogaram que eu não aceitasse ir para nenhum hospital que não fosse o Hermanos Ameijeiras, o único onde eu não pegaria uma infeccção hospitalar grave. E, lá chegando, não me surpreendeu que a entrada no hospital fosse estritamente controlada devido à imensa procura pelo local. É também revelador que sempre fui impedido de tirar fotografias até dos espaços exteriores de grandes hospitais. Parece que documentar esses lugares, tão arruinados como outros edifícios do país, desacreditaria um dos grandes mitos sobre a ilha caribenha. Isso não quer dizer que os famosos centros de excelência cubanos não existam (embora sejam notoriamente de difícil acesso para um cubano sem boas conexões). Apenas mostra que existe uma faceta menos bonita da saúde pública cubana, com cenas semelhantes às dos hospitais públicos brasileiros – mas que lá, por razões óbvias, não são televisionadas.
Uma das outras grandes bandeiras e supostos sucessos do regime cubano, a soberania nacional, é também uma de suas grandes ilusões. A crise sem precedentes que o país enfrentou nos anos 1990 – quando, segundo dados oficiais, 40.000 cubanos perderam a visão por falta de vitaminas – deixou claro que o relativo conforto que existira na ilha até então se baseava na gigantesca subvenção recebida da União Soviética. Nos anos 80, por exemplo, uma das maiores fontes de renda da ilha era a reexportação de petróleo soviético, comprado por Cuba por preços altamente subsidiados. Esse mesmo tipo de apoio impediu a prometida diversificação da economia cubana, que por décadas se concentrou, seguindo a mais tradicional divisão internacional do trabalho, na exportação de açúcar para o bloco soviético a preços muito acima dos de mercado.
Hoje em dia, a maior fonte de renda do governo cubano são as remessas de cubanos que vivem no exterior – seja como migrantes, seja como profissionais enviados pelo governo. Como diz um conhecido refrão, para vivir en Cuba hay que tener fe – familia en el exterior, ou alguém no exterior que envie dinheiro para necesidades básicas. Os vilipendiados cubano-americanos são, assim, um dos sustentáculos econômicos da ilha, pois sem eles o governo não poderia sequer vender os produtos que oferece a preços exorbitantes nas lojas dolarizadas (que têm o pomposo mas sincero nome oficial de tiendas de recaudación de divisas). Isso não deveria surpreender a ninguém. Afinal, quando o governo cubano culpa o embargo norte-americano por suas mazelas econômicas – uma desculpa amplamente ridicularizada pelos cubanos –, ele não apenas implicitamente reconhece que sua propalada soberania é uma ficção, como também a proclama impossível. Se acreditássemos, como diz a propaganda oficial, que o embargo (em si mesmo, é claro, condenável) é um genocídio, reconheceríamos que não se pode afrontar o poder estadunidense sem sacrificar o povo cubano. Ou seja, o argumento contraditório do embargo é uma declaração de derrota.
A terceira grande ambição da Revolução Cubana que quero mencionar é a de criar aquilo que Che Guevara chamou de el hombre nuevo: um ser altruísta, dedicado ao bem comum, dotado de uma moral superior. Como ouvi tantas vezes de cubanos entristecidos, o que se produziu foi o oposto: a generalização do roubo e da desonestidade. Uma ampla bibliografia sobre o leste europeu mostra que, devido à escassez de produtos de consumo e aos esforços do Estado de controlar todos os recursos, o roubo é elemento estrutural de todos os sistemas de socialismo real. Isso ajuda a explicar por que, quando o Estado pinta algum grande edifício em Havana, casas e apartamentos ao redor começam magicamente a ser pintados com a mesma tinta. Explica também o drama de um cubano que me contou envergonhado que se acostumara tanto a roubar do trabalho em Cuba que, agora que tem uma vida confortável na Inglaterra, ele não consegue deixar de roubar comida no restaurante onde trabalha. Em Cuba o problema estrutural do socialismo real é agravado pelos salários irrisórios que são pagos aos trabalhadores, numa brutal extração de mais-valia que daria inveja a qualquer empresário latino-americano.
Um professor, por exemplo, me explicou indignado que, apesar de seus estudos avançados, gastava todo seu salário mensal no transporte público para o trabalho, e que sobrevivia graças à venda clandestina de bebidas que um parente roubava de um hotel de luxo. Isso gerava nele, me disse, un asco de mí mismo. Essa corrosão da dignidade e do auto-valor das pessoas é um dos efeitos mais devastadores do socialismo cubano, que mostra como a realidade que muitos querem ver como um sonho é um pesadelo para os que a vivem. Defender o governo cubano contradiz o que a esquerda sempre teve de mais promissor e libertador. Acreditar nessa ilha da fantasia vai contra a luta por um mundo mais livre e mais justo.