O movimento feminista nunca morreu, mas é fato que ele andou adormecido nas décadas de 1980 e 1990 na América Latina. Nesse período, os países discutiram leis e implementaram políticas (ainda tímidas, é verdade) com o objetivo de reduzir a desigualdade e a violência de gênero na região. Na última década, no entanto, ficou evidente que ainda há um longo caminho a seguir e que parte da pauta feminista do século XX continua muito atual. Além disso, essa retomada da luta por direitos tornou-se mais importante na medida em que a América Latina vivencia hoje um aumento dos discursos conservadores e religiosos nos espaços políticos.
Segundo a Cepal (Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe), em relatório publicado em outubro, todos os dias morrem, em média, 12 mulheres na região – pelo simples fato de serem mulheres.
Se antes elas queimaram sutiãs para chocar a sociedade machista, o novo ingrediente para a ebulição de atos, campanhas e movimentos é a internet e, a partir dela, as feministas do século XXI ganharam nos últimos anos as redes e as ruas das maiores cidades da América Latina.
“Além de ser uma ferramenta de comunicação sem custos e sem fronteiras, as redes sociais mantêm uma mobilização latente entre as manifestações. A rede não de desfaz inteiramente depois de um ato”, diz Ingrid Cyfer, professora de teoria política do curso de ciências sociais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Nesse despertar feminista, uma das ferramentas mais eficientes têm sido as hashtags, usadas para convocar protestos e visibilizar as violências que fazem parte do cotidiano das latino-americanas. O ciberativismo só se transforma em protesto nas ruas quando um crime ou a agenda política impulsionam essa transposição. “Somente as causas capazes de gerar volume suficiente de engajamento chegarão fortalecidas às ruas, e essa capacidade está relacionada menos à justiça ou injustiça da causa em questão, e mais à sua receptividade em cada contexto político, histórico, social e cultural”, afirma a professora.
Além de contar com a internet e o momento político, esses novos movimentos são mais horizontais e heterogêneos, reunindo mulheres diversas em torno de um objetivo central e abrindo o debate para demandas específicas. “É um feminismo que começa a se anunciar como feminismos, como capaz de abarcar dentro de si visões de mundo e estilos de vida diversos. O compromisso com a liberdade e a emancipação soa mais autêntico nesse contexto. Além disso, a própria agenda do feminismo vem se ampliando. As feministas são também ativistas ambientais, estão nas lutas anti-racistas, contra as injustiças geopolíticas etc.”, diz a professora.
Esse novo formato, explica Cyfer, ajuda na proliferação da agenda feminista. “Ao lançar luz nos ‘novos’ temas do feminismo, os temas ‘antigos’ tornaram-se também visíveis, pois todos eles remetem a aspectos entrelaçados das injustiças estruturais de gênero”.
Um dos exemplos mais recentes desse novo feminismo latino-americano é a campanha Ni Una Menos, que ganhou visibilidade na Argentina no mês passado e ecoou em outras cidades da região. O movimento não está sozinho e acompanha uma onda de protestos que transbordaram das redes sociais para visibilizar e criticar o machismo na América Latina. A Calle2 lista a seguir alguns desses grupos que saíram às ruas nos últimos anos:
#NiUnaMenos na Argentina
A multidão de mulheres de preto que parou Buenos Aires contra a violência de gênero e o feminicídio no dia 25 de outubro repercutiu em jornais de vários países do mundo. A convocatória foi realizada pelas redes sociais com uso das hashtags #NiUnaMenos, #VivaNosQueremos e #MiercolesNegro, e ocorreu após o brutal assassinato e estupro da adolescente Lucía Pérez, de 16 anos. As argentinas decidiram então parar por uma hora e reuniram-se no Obelisco, no centro de Buenos Aires. A campanha ganhou eco e chegou a outras partes da América Latina, e atos também foram realizados em países como Chile, Brasil e Uruguai.
“O aumento da brutalidade dos feminicídios junto com a repressão policial ao movimento de mulheres nos obrigaram a uma reação imediata. Por isso, em cinco dias organizamos uma greve nacional de mulheres e convocamos todo o continente a uma mobilização. A magnitude dos protestos deve ser lida a partir da novidade da greve nacional, bem como pela gravidade dos fatos que originou os protestos. A onda de misoginia orquestrada pela restauração conservadora latino-americana, mas também mundial, encontra resistência de milhões de mulheres que a sentem em sua própria carne”, afirma Cecília Palmeiro, uma das representantes do Ni Uma Menos.
O coletivo de mesmo nome da campanha já havia mobilizado feministas universitárias, de partidos políticos e organizações da sociedade civil em outros momentos. “A primeira marcha Ni Uma Menos juntou 250 mil pessoas, a segunda, cerca de 150 mil pessoas e a terceira teve mais ou menos 200 mil. Trata-se de um movimento que se conecta e que se agita através da internet, mas que vive nas ruas”, diz Palmeiro.
“Primavera Feminista” no Brasil
Foi em 2015 que os meios de comunicação começaram a usar o termo “Primavera Feminista” para definir os atos nas ruas e as mobilizações nas redes sociais contra a cultura do estupro, o machismo e a desigualdade de gênero no Brasil. O movimento foi ganhando visibilidade aos poucos, como na campanha #EuNãoMereçoSerEstuprada de 2014, e foi para as ruas com mais força em outubro de 2015, quando as mulheres reagiram às mensagens de teor sexual a respeito da menina Valentina, participante do programa MarterChef Júnior, que invadiram a internet naquele ano. A resposta foi uma enxurrada de depoimentos que usavam a hashtag #MeuPrimeiroAbuso sobre casos de abuso sexual e até de estupro na infância e pré-adolescência.
“O #meuprimeiroabuso e #nãomereçoserestuprada expuseram uma das facetas mais perversas do sexismo: a responsabilização da vítima pela violência sexual. Além disso, essas campanhas criaram também uma rede de solidariedade em torno do combate a esses preconceitos, uma rede que é acionável com mais facilidade em novas campanhas de combate à cultura do estupro”, afirma a professora da Unifesp.
No mesmo mês do, a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei nº 5069, de autoria do então deputado e presidente da Casa Eduardo Cunha, que dificulta a realização do aborto nos casos já previstos em lei. Foi o suficiente para que atos fossem realizados pelo país contra o projeto e contra o machismo. Em São Paulo, 15 mil mulheres protestaram na avenida Paulista.
#NiUnaMenos no Peru
Antes da greve que parou a Argentina neste ano, as mulheres do Peru já tinham tomado as ruas para protestar contra a violência de gênero. Em julho, duas decisões judiciais favoráveis a homens que haviam espancado suas companheiras ganharam a imprensa do país. Os dois não foram condenados à prisão, o que causou grande indignação e mobilizou ativistas, artistas, estudantes e políticos pedindo o fim da violência. O grande ato realizado dia 13 de agosto foi liderado por mulheres que sobreviveram após sofrer brutais agressões dos ex-maridos. Segundo o Ministério da Mulher, entre 2009 e junho de 2016, houve 921 tentativas e 812 feminicídios no Peru.
#24A no México
No dia 24 de abril deste ano, mulheres mexicanas saíram às ruas em mais de 40 cidades contra a violência de gênero e o feminicídio no país. O que começou com um pequeno evento no Facebook organizado por amigas, em pouco tempo transformou-se em uma grande mobilização nacional, que contou com o uso das hastags #24A e #VivasNosQueremos e reuniu desde organizações tradicionais até feministas autônomas. Na véspera dos atos, houve também uma onda de relatos de violência no Twitter registrados na campanha #MiPrimerAcoso. Vestidas de lilás, elas saíram em marcha para tentar colocar na agenda pública o debate sobre violência de gênero. O principal protesto começou na frente do Palácio Municipal de Ecatepec, o município mais perigoso para ser mulher no México, e terminou em Victoria Alada, na Cidade do México.
Pela despenalização do aborto no Chile
Um dos poucos países do mundo em que o aborto é proibido em qualquer situação, o Chile é palco das “Marchas por el Aborto Libre, Seguro y Gratuito” desde 2013. Os atos engrossaram nos últimos anos o debate em torno do projeto apresentado em janeiro de 2015 pela presidente Michelle Bachelet, que prevê a despenalização da interrupção da gestação em três situações: risco de morte para a mãe, inviabilidade fetal e estupro. Nas redes, o movimento é marcados pelas hashtags #AbortoLibre e #Aborto3Causales. O tema, no entanto, gerou forte reação contrária tanto nas redes sociais quanto nas ruas. Após ser aprovado pela Câmara dos Deputados, o projeto atualmente é discutido no Senado.