Três histórias que você não conhece sobre Che Guevara
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Três histórias curiosas sobre Che Guevara

Morte do guerrilheiro argentino que ficou famoso pelo triunfo da Revolução Cubana completou 49 anos no último domingo

em 10/10/2016 • 10h59
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“O silêncio se enlutou quando morria nas montanhas o fogo ilustre de Guevara”, escreveu o poeta chileno Pablo Neruda, em 1969, por ocasião do segundo aniversário da morte do guerrilheiro Ernesto “Che” Guevara, na selva boliviana, em outubro de 1967. Ele tinha 39 anos de idade, duas revoluções – uma triunfante e uma frustrada – e um sonho que o fez retornar à América do Sul naquele ano: empreender a emancipação do seu país, a Argentina, por meio da luta armada.

Uma das interpretações da vida dele dizem que o caminho havia começado no ano anterior, quando chegou ao território boliviano para, assim como havia feito em Cuba com Fidel Castro, mobilizar os camponeses locais pela missão revolucionária. Acreditava que, promovendo a revolução num país agrário e pobre como a Bolívia, a vitória em sua terra natal, vizinha e mais desenvolvida, seria inevitável. Morreu sem êxito.

Che, no entanto, se tornou uma das existências mais controversas da história do continente e, por consequência do mundo: em seus significados se juntam as várias formas de amor e de ódio, de crença e de descrença, de verdade e de mentira ou de qualquer outra oposição possível entre extremos.

Esse caráter ficou claro em 2007, quando o cineasta brasileiro Douglas Duarte lançou o documentário Personal Che em parceria com a diretora colombiana Adriana Mariño. O filme mostra os diversos “usos” que o mundo faz da imagem do guerrilheiro: de santo cristão a revolucionário da extrema-direita (assista ao documentário no final desta reportagem). No dia em que se completam exatos 49 anos da morte de Che, Douglas ajudou a Calle2 a listar três histórias do revolucionário que são pouco conhecidas dos seus admiradores e também dos seus inimigos:

1. A foto de Alberto Korda

Na calle Obispo, em Havana, a principal rota de compras para estrangeiros da capital cubana, não há um souvenir que não tenha uma versão do rosto de Che Guevara: canecas, relógios de parede, chaveiros, roupas de cachorro, chapéus, pôsteres e os óbvios quadros em diferentes cores e formatos, além das camisetas também coloridas. Todas usam a mesma imagem do guerrilheiro argentino: a que ele aparece olhando para um horizonte qualquer, solitário, num fundo sem nuvens, vestindo uma boina e uma jaqueta de vinil verde, usada por pilotos da Força Aérea cubana.

O editor fotográfico brasileiro Fernando Rabelo sugeriu, há alguns anos, que ela é a foto mais reproduzida da história.

A fotografia, no entanto, demorou anos para sair de uma das gavetas do seu dono, o fotógrafo cubano Alberto Korda, que a clicou durante um velório coletivo às vítimas da explosão do navio belga La Coubre, em março de 1960, no porto de Havana. Che estava acompanhado de Fidel Castro e o filósofo francês Jean Paul-Sartre.

'Disparei duas vezes por reflexo. Uma horizontal e uma vertical. Quando cheguei ao estúdio, fiz algumas cópias da versão horizontal para o gabinete revolucionário e a enquadrei para deixar na minha parede', diz Korda em depoimento publicado no livro Cuba por Korda.

Antes de enquadrar para si mesmo, Korda precisou tirar da foto o perfil de um homem que estava próximo a Che no momento do clique. Depois do quadro e das cópias, a versão original foi para o armário do fotógrafo. “Dormitou durante anos na gaveta. Saiu de lá apenas para ilustrar uma matéria no Granma, jornal oficial do regime”, conta Douglas Duarte. Anos depois, o editor esquerdista italiano Giacommo Feltrinelli encontrou uma das cópias e resolveu utilizá-la para ilustrar cartazes de protesto pagos ao movimento estudantil da Itália, em 1968. A partir de então, por motivos que talvez jamais possam ser explicados, adquiriu os vários símbolos que conhecemos hoje.

Uma das versões mais famosas da imagem é a feita pelo artista cubano Enrique Ávila, usando apenas o contorno do rosto de Che, que emoldura a fachada do Ministério do Interior de Cuba, na Plaza de la Revolución, em Havana.

‍2. Os mitos da morte

Nem a data, nem as circunstâncias, nem o destino dos assassinos e dos restos mortais de Che Guevara foram dados com precisão por alguém em algum momento da história. Diversos biógrafos do guerrilheiro argentino passaram décadas debatendo detalhes da morte dele, e a falta de informações e registros sempre foi um obstáculo ao conhecimento exato do que ocorreu na selva boliviana naquele outubro de 1967.

O que se sabe de alguma forma é que Che foi executado na vila de La Higuera, há 300 quilômetros da capital que leva o mesmo nome do departamento: Santa Cruz de La Sierra. A primeira versão, contada e acreditada por seus inimigos e detratores, foi a de que ele morreu durante troca de tiros com as forças armadas da Bolívia e da CIA.

Assim, embora os registros oficiais relatem o dia 9 de outubro como o de sua morte, os cubanos instituíram o dia 8 como o do Guerrilheiro Heroico, considerando que, nesta data, ele foi capturado. A segunda versão, presente na maioria das biografias atuais, conta que Che foi executado por um soldado do exército boliviano após um dia de sua prisão, escolhido ao acaso, Mario Terán Salazar, que hoje vive recluso em Santa Cruz.

“Com o corpo sujo e ensanguentado, Che levado amarrado no trem de pouso de um helicóptero para Vallegrande, a cidade maior mais próxima. Vendo o estado do cadáver, cujos olhos se abriram devido ao vento do caminho, as enfermeiras decidiram lavá-lo, penteá-lo, aparar sua barba e vesti-lo com um pijama listrado do hospital. Vendo a cena e pensando nas fotos que correriam o mundo, um militar boliviano ordenou que o vestissem com uma calça militar e uma jaqueta – nenhuma das duas pertencia a ele. Embora não houvesse censura oficial, as fotos são ainda pouco conhecidas em Cuba”, relata Duarte.

Até 1997, a única parte do corpo de Che cujo paradeiro era conhecido eram suas mãos, que foram amputadas por dois médicos locais para servir como prova de sua morte ao mundo.

O governo boliviano tentou enviá-las em uma lata de formol aos Estados Unidos, mas um extravio de agentes disfarçados fez com que elas rodassem o mundo, passando por Santiago, Bogotá, Caracas, Paris, Praga e Moscou – numa espécie de peregrinação religiosa – até serem enviadas para Havana.

No final dos anos 1990, o repórter estadunidense Jon Lee Anderson, que estava escrevendo um dos relatos mais completos da vida do guerrilheiro, Che Guevara – Uma biografia, encontrou a sua ossada em uma vala comum na floresta boliviana. Em outubro daquele ano, finalmente, ela chegou a Cuba, onde o governo construiu um imenso mausoléu para abrigá-la na cidade de Santa Clara. “Che é um gigante moral que cresce a cada dia”, disse Fidel Castro em um longo discurso na cerimônia que inaugurou sua tumba cubana.

3. São Che

Quando a imagem de Che já era quase uma entidade religiosa em Cuba, e sua fotografia mirando o horizonte passou a simbolizar a esperança da emancipação latino-americana por meio da revolução de esquerda, as comparações cristãs passaram a ser quase inevitáveis. Tornaram-se perfeitas quando, frente ao seu rosto firme e suas frases contraditórias e bonitas – como “hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamas” –, alguém percebeu que as fotografias do seu cadáver barbudo, seus cabelos longos escorridos e seus olhos abertos rodeado por curiosos era a comparação que faltava: Che era o Jesus Cristo que a América Latina queria ter para si.

A abstração religiosa se tornou mais palpável em 2007, quando Douglas Duarte lançou Personal Che e mostrou que, no local onde foi assassinado, o guerrilheiro é considerado, de fato, uma entidade cristã.

“Até hoje, no interior da Bolívia, há quem credite Guevara com poderes sobrenaturais. Há altares com fotos dele morto ao lado de crucifixos e imagens da Virgem de Urkupiña (uma das padroeiras nacional). É um santo bastante versátil, já tendo recebido preces devido a ônibus pifados, cabras perdidas, provas de escola, doenças e viagens ilegais à Europa. Os mais devotos acreditam que Che não andava armado e levava um livro mágico e que, recitadas as palavras corretas, se transformava em uma mosca”, conta ele. O filme está disponível abaixo.

Confira a íntegra do documentário 'Personal Che', dirigido por Douglas Duarte em parceria com a diretora colombiana Adriana Mariño.

FOTO: ROBERTO LUSSO/SHUTTERSTOCK

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