Foi sem querer querendo que, em agosto de 1984, o seriado mexicano “El Chavo del Ocho” (por aqui, apenas “Chaves”) aterrissou na TV brasileira e se tornou um fenômeno de público, audiência e longevidade. Assim como o próprio Silvio Santos, “Chaves” é um coringa do SBT, alavancando o Ibope do canal em diversos horários e chegando a registrar, ainda hoje, picos de 9 pontos no Ibope aos finais de semana. Agora, é a vez de as aventuras da turma da vila e do anti-herói “Chapolin” serem exibidas na TV fechada: desde 21 de maio, as duas séries comandadas por Roberto Gómez Bolaños são exibidas no Multishow, do grupo Globo.
A exibição de “Chaves” por mais um canal mostra o vigor da série que já faz sucesso por mais de três décadas no Brasil. Esse êxito é dividido entre nossos vizinhos, já que a série foi exibida em todos os países da América Latina, com exceção de Cuba. As trapalhadas do menino pobre da vila chegaram ainda mais longe, com transmissões em nações como China, Japão, Coreia do Sul, Tailândia, Marrocos e Grécia. Foi dublado, ao todo, em mais de 50 idiomas.
Por aqui, o êxito do seriado é explicado pela identificação do brasileiro com as situações vividas na série, a maneira de ser do latino, de encarar a sociedade e as relações entre as pessoas. “Essa empatia vem de vermos sempre algo de alguém que a gente conhece. É uma vila onde tem o dono (Sr. Barriga), que é o rico, tem o filho do dono (Nhonho), que é filhinho de papai, tem a Dona Florinda, que é classe média, com o filho (Quico) metido a riquinho, que tem uma relação com o pobre (Chaves). Tem também o Seu Madruga, que é um batalhador, que está sempre procurando trabalho”, enumera Carlos Seidl, dublador do Seu Madruga.
Ele acredita que esse cenário representa não só o brasileiro, mas todo o povo latino-americano, que tenta se virar como pode e está sempre correndo atrás para pagar suas dívidas, porém nem sempre consegue. “Seu Madruga faz tudo com certa dignidade, procurando passar para a filha bons exemplos, noções de educação e de coisas que ele mesmo não tem”, analisa.
Na visão do doutorando em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi João Paulo Hergesel, que estuda a programação do SBT em sua tese, o Brasil muitas vezes se esquece de que é um país latino. “Nos anos 1980, o SBT foi fortemente acusado de propor uma ‘mexicanização’ da televisão brasileira, enquanto a Globo insistia em uma grade centrada na sociedade nacional. O fato foi que, com a chegada das novelas mexicanas, a audiência do SBT subiu, e a Globo precisou rever seus conceitos, permitindo o retorno do melodrama e do popularesco em suas produções. Isso porque o brasileiro tende a compartilhar a cultura de seus vizinhos”, observa. Com “Chaves”, a situação é semelhante: “Os conflitos, as alegrias e os fatos históricos, sociais, políticos e culturais vivenciados no México têm similaridades com os vivenciados no nosso país. Ambas são nações em desenvolvimento”.
De acordo com Hergesel, uma das funções do audiovisual é justamente refletir essas realidades. “Em ‘Chaves’, vemos o retrato da pobreza, da orfandade, do analfabetismo, da desestrutura familiar, do bullying. E, embora sejam feitas piadas em cima dessas situações, Bolaños se propõe a construir reflexões sobre o que ocorre em seu país. Há também algumas passagens com moral, como o episódio em que Chaves é expulso da vila taxado de ladrão, mas depois o verdadeiro bandido (Sr. Furtado) é descoberto; outro em que Seu Madruga tem sua dívida perdoada após ser ameaçado de despejo, e aquele em que Dona Florinda convida Chaves para sua ceia de Natal.
O doutorando acredita que o ponto forte da série para atrair crianças e adultos é o vínculo afetivo que ela cria com o telespectador. “A maioria do povo brasileiro, com sua vida simples, vê-se representada na vila simplória, com os variados tipos de vizinhos: seja a mulher encrenqueira, o homem ocioso, a menina travessa ou o garoto invejoso. O roteiro, com seus trocadilhos ingênuos e às vezes infantis, colabora para a relação de proximidade, fazendo-nos perceber a graça nos detalhes do cotidiano”, afirma. Segundo Hergesel, diferentemente de outras sitcoms e de megaproduções da Netflix, por exemplo, “Chaves” conquista pelo simples.
Os seriados de Bolaños provocam tanto fascínio que já viraram objeto de vários outros estudos acadêmicos. Um deles, apresentado em 2008 na Universidade Federal de Goiás (UFG), é a dissertação de mestrado “A saga do herói mendigo: O riso e a neopicaresca no programa ‘Chaves’”, de Ludimila Stival Cardoso. O resultado do trabalho está no livro “É que me escapuliu – O riso da gentalha”, publicado em 2010. A autora analisa dez episódios, falas e personagens do seriado. Segundo ela, alguns aspectos ajudam a explicar o êxito de “Chaves”, como a ingenuidade, o humor fundamentado em tramas cotidianas e simples, e a teatralidade. “Nem todos esses elementos somados, porém, são capazes de justificar o sucesso desse humorístico, devendo-se vê-lo como um produto cultural da América Latina, que vai além de questões técnicas e que, por isso, consegue manter-se há tantos anos [no ar], conquistando sempre novos públicos”, explica.
“Friends” mexicano. O jornalista e autor do livro “Almanaque dos Seriados” (lançado em 2008 pela Ediouro), Paulo Gustavo Pereira, compara “Chaves” à série norte-americana “Friends”, que encerrou sua décima temporada em 2004, mas ainda faz sucesso e continua arrancando gargalhadas dos telespectadores. ‘Chaves’ não tem sacanagem nem violência, é ingênuo, pastelão. A criança assimila o seriado facilmente, e o adulto o (re)vê porque a memória afetiva fala mais alto”, aponta. Para ele, a chave de todo esse fenômeno está também na dublagem. “É uma tremenda adaptação do texto e das piadas. Vemos e ouvimos ‘Chaves’ como se fosse em português, não em espanhol”, diz Pereira, que apresenta o programa “Loucos por Séries” na Vivo TV e pretende publicar ainda este ano um livro sobre os hábitos de consumo de séries do brasileiro.
O jornalista e superfã Paulo Pacheco concorda que “Chaves” e “Chapolin” têm algo que fascina o público e que as séries supermodernas não possuem. “Nem eu sei qual é a fórmula do sucesso, mas a simplicidade nas piadas, nas roupas e nos cenários cativou a mim e a todos os fãs. ‘Chaves’ é tão simples que o que sobressai é a graça, o humor, a piada, a história que é contada. Por isso, acho que fez tanto sucesso no Brasil e em toda a América Latina”, enfatiza.
Pelas suas contas, Pacheco já viu cerca de 500 episódios de “Chaves” e “Chapolin”. “Mas com certeza ainda há inéditos, pois muitos não foram comprados pelo SBT nos anos 1980 e, por isso, não haviam sido dublados. E muitos capítulos a Televisa nem exporta mais”, afirma. O megafã, que já passou férias em Acapulco com a namorada, no mesmo hotel (Emporio) onde foi gravado um dos episódios mais célebres do seriado, diz que já viu “El Chavo del Ocho” em espanhol e que demorou a se acostumar. “Alguns capítulos têm piadas regionais e palavras cujo significado eu não sabia, mas com o tempo passei a gostar também. É que a nossa dublagem é muito perfeita, né?”, avalia.
A dublagem e a adaptação da série para a nossa língua são justamente alguns dos maiores trunfos de seu sucesso estrondoso e duradouro. Carlos Seidl considera que o charme e o grande diferencial de “Chaves” foram a adaptação para as nossas situações, sem fugir muito da maneira de falar original.
“É uma mescla da forma castelhana de dizer as coisas com o nosso sotaque, a nossa cara, o nosso jeito de colocar as palavras. A tradução valoriza o produto. E também há muitas semelhanças entre nós, brasileiros, e a realidade latino-americana em geral, tanto de personalidade quanto de vivências. ‘Chaves’ tem um lado emocional, de solidariedade, algumas lições que ‘pegam’ particularmente o espectador”, avalia o Seu Madruga brasileiro.
Segundo a diretora de programação e conteúdo digital do Multishow, Tatiana Costa, o canal sabe da importância que as vozes oficiais têm para os fãs. “Elas são icônicas e dão vida aos personagens.”. O canal promete exibir, em ordem cronológica, mais de 500 episódios de “Chaves” e “Chapolin” adquiridos diretamente da rede mexicana Televisa, que produziu os seriados nos anos 1970. Cem desses capítulos são divulgados como inéditos na TV brasileira e, por isso, precisaram ser dublados pela primeira vez.
Com exceção dos dubladores já falecidos, como Marcelo Gastaldi – imortalizado como Chaves e o Polegar Vermelho –, os profissionais que comandaram a série nos anos 1980 foram convocados novamente para mais essa missão. Entre os dubladores que continuam emprestando suas vozes agora, estão: Carlos Seidl (Seu Madruga), Nelson Machado (Quico), Marta Volpiani (Dona Florinda e Pópis), Gustavo Berriel (Seu Barriga e Nhonho), Sandra Mara e Cecília Lemes (alternam-se como Chiquinha). Chaves e Chapolin serão interpretados por Daniel Müller, que assume esse papel desde 2012.
A exibição no canal a cabo é diária, na faixa das 23h, e há também horários alternativos: de segunda a sexta, às 13h e às 18h30, e aos sábados, às 13h. Os telespectadores podem assistir, ainda, pela plataforma digital Multishow Play. O ator Édgar Vivar (Seu Barriga), de 73 anos, veio ao Brasil por conta do lançamento e foi convidado a apresentar uma edição do programa “TVZ ao Vivo” para divulgar a novidade. “Eu amo o Brasil, é a minha segunda casa! E é ainda melhor poder voltar ao país com um motivo tão especial. São muitas gerações nos acompanhando ao longo destes anos, de bisavós às crianças. Não sei o segredo do sucesso, mas o que posso dizer é que fizemos tudo com muito esforço, muito trabalho e, principalmente, com muito amor. Nos divertíamos muito em cena, foi uma época inesquecível”, disse ele ao Multishow, lembrando também dos colegas já falecidos, como Bolaños e Rubén Aguirre (Professor Girafales). “Até hoje me emociono muito quando vejo meus amigos, que, mesmo não estando mais entre nós, permanecem tão vivos dentro das casas das pessoas todos os dias”, completou.
A diretora de programação do Multishow acrescenta que os dois seriados fazem parte do nosso inconsciente coletivo e que ambos apareceram como “referências” em várias pesquisas de conteúdo feitas pela emissora. “A franquia tem mais de 40 anos e é um case de sucesso, a força dessa marca é inquestionável. No SBT, “Chaves” continua dentro do “Bom Dia e Cia”, de segunda a sexta, a partir das 10h30; aos sábados, às 6h, e aos domingos, às 9h. Para fazer frente ao canal de Silvio Santos, a exibição do Multishow será do primeiro ao último episódio, na ordem em que foram gravados, permitindo ao público acompanhar a evolução dos personagens e das histórias. Além disso, os assinantes terão a opção de ver “Chaves” e “Chapolin” com áudio em espanhol e conferir os bordões originais.
Curiosidades:
– Segundo a revista “Forbes”, 111 milhões de espectadores chegaram a assistir diariamente aos programas de Roberto Bolaños.
– Em 1977, 80 mil pessoas se reuniram em um estádio de futebol no Chile para ver o elenco de “Chaves”.
– Um dos únicos episódios em que o elenco de “Chaves” está completo é o de Acapulco.
– Bolaños tinha 42 anos quando interpretou Chaves pela primeira vez. Além disso, media 1,62 m de altura e sofreu muito bullying por causa disso.
– Bolaños foi contratado exclusivo da Televisa por 46 anos.
– A série se chamava “El Chavo del Ocho” porque era exibida pelo Canal 8. Depois, quando passou a ser transmitida por um canal mais popular, Bolaños inventou que o personagem morava no apartamento 8.
– Chaves chegou à vila aos 4 anos de idade.
– O barril é apenas um esconderijo secreto; Chaves nunca dormiu lá.
– Dizem que Chaves dividia o apartamento com uma velhinha. Mas nem ela, nem o apartamento jamais apareceram no seriado.
– Bolaños pensou em dar um final trágico para Chaves, que morreria atropelado. Porém, sua filha psicóloga alertou que essa não seria uma ideia bem aceita pelos fãs.
– Bolaños nunca precisou de ponto eletrônico ou de alguém para soprar suas falas nas gravações.
– Bolaños viveu 27 anos com Florinda Meza (Dona Florinda) antes de se casar com ela, em 2004.
– Carlos Villagrán (Quico) teve um caso com Florinda durante as gravações de “Chaves”. Bolaños demitiu o colega de elenco do programa e Seu Madruga saiu depois, em solidariedade. Villagrán e Bolaños viraram inimigos e nunca mais se falaram. Bolaños tentou impedir que o ex-colega interpretasse Quico, personagem que Villagrán transformou em Kiko para continuar trabalhando.
– O último episódio em que Quico apareceu foi em 1978. Seu verdadeiro nome era Frederico.
– Antes de integrar o elenco do seriado, Carlos Villagrán trabalhava como jornalista.
– Édgar Vivar, o Senhor Barriga, formou-se em medicina, mas só exerceu a profissão por dois anos.
– Rubén Aguirre (Professor Girafales) contava que o famoso bordão “Tá tá tá tá tá” foi inspirado em um professor seu, que falava isso quando ficava bravo.
– Alguns dos bordões de Seu Madruga, como “Só não te dou outra porque…” e “O que que foi, que que foi, que que há?!”, eram frases que o ator Ramon Valdés falava na vida real.
– Ramon Valdés usava suas próprias roupas para gravar e devia aluguel de verdade. “Não foi uma vez, foram várias. Antes de ser famoso, meu pai trabalhava como motorista de trailer, vendia comida na rua. Vivíamos em um apartamento e de repente ele falava: ‘Vamos para a casa da sua avó’. Porque o dono do apartamento, diferentemente do Sr. Barriga, não perdoava [a dívida]”, contou Esteban Valdés, filho de Ramón, a Danilo Gentili no programa “The Noite”, no dia 9 de maio deste ano.
– Era a própria mãe de María Antonieta de las Nieves quem fazia os vestidos de Chiquinha.
– A Bruxa do 71 foi uma das mulheres mais lindas do México na juventude. Ela foi guerrilheira contra a ditadura de Franco, na Espanha, e deixou o país europeu para viver em território mexicano.
– O Homem-Abelha, de “Os Simpsons”, foi inspirado no Chapolin Colorado.
– Antes de virar Chapolin Colorado, o nome do personagem era para ser Chapolin Justiceiro.
– Chiquinha não aparece em alguns episódios porque, em 1974, a atriz María Antonieta de las Nieves engravidou. A desculpa usada na série foi a de que a personagem havia se mudado para a casa de umas tias no interior.
– A cidade de Tangamandapio, sempre citada pelo carteiro Jaiminho (Raúl Padilla), existe de verdade. É um município pequeno, com cerca de dez mil habitantes, localizado no estado mexicano de Michoacán. Desde 2012, há no local uma estátua em homenagem a Jaiminho.
– “El Chavo” quer dizer “o menino”. Outros personagens receberam apelidos na dublagem brasileira. Chiquinha é diminutivo de Francisca, e nas primeiras versões em português ela era chamada de Francisquinha.
Alguns bordões em português e seus originais em espanhol:
Chaves
“Isso, isso, isso!”
“¡Eso, eso, eso!”
“Eu não queria mesmo.”
“Al cabo que ni queria.”
“Tá bom, mas não irrite!”
“¡Bueno, pero no te enojes!”
Quico
“Cale-se, cale-se, cale-se, você me deixa louco!”
“¡Aaay, ya cállate, cállate, cállate que me desespeeeras!”
Chiquinha
“O que você tem de burro, tem de burro!”
“¡Lo que tienes de bruto, lo tienes de bruto!”
Professor Girafales
“Vim lhe trazer este humilde presente!”
“¡Vine a traerle este pequeño obsequio!”
Dona Florinda
“Vamos, tesouro, não se misture com essa gentalha!”
“¡Vámonos, tesoro, no te juntes con esa chusma!”
Senhor Barriga
“Tinha que ser o Chaves de novo!”
“¡Tenía que ser el Chavo del Ocho!”
Chapolin
“Sigam-me os bons!”
“¡Síganme los buenos!”
“Palma, palma, palma, não priemos cânico!” (o correto seria “não criemos pânico”)
“Que no panda el cúnico!” (o correto seria “¡Que no cunda el pánico!”)
*Colaborou Caio do Valle Souza