Todo dia a gente faz tudo sempre igual. Engolimos as notícias indigestas e saímos por aí praguejando que talvez a única saída seja reiniciar o país, começando tudo do zero. Criticamos o prefeito, xingamos o deputado, pedimos a saída do presidente. Sentimos revolta, impotência, estarrecimento. E quando achamos que nada mais vai nos surpreender, uma nova denúncia coloca essa certeza abaixo. Quanto mais sabemos sobre a rotina política, mais distância queremos dela.
Mesmo assim, vamos deixar esse cansaço de lado e fazer um exercício: como você agiria se fosse prefeito de uma cidade qualquer e tivesse que tomar decisões diariamente?
E se você fosse um vereador tendo que defender as posições do partido a respeito de uma causa de grande impacto na vida das pessoas? Ou um juiz, com o futuro de alguém acusado de um crime bárbaro nas mãos? Difícil, né?
Pois esta é uma das propostas do “Jogo da Política”, um jogo de tabuleiro dividido em três módulos independentes, que simulam o funcionamento de cada um dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). A metodologia foi desenvolvida para jovens de 14 a 24 anos (foi inclusive criada com a ajuda deles), mas qualquer um pode jogar, conhecendo política ou não. Foi o meu caso. Mesmo sem conhecimento político aprofundado, participei da jogatina de lançamento, realizada em um local bem propício: o plenário da Câmara dos Vereadores de São Paulo.
A prática contou com cerca de 40 pessoas, entre jovens estudantes, professores, empreendedores, representantes de movimentos sociais e ativistas, além de assessores parlamentares. Os 55 vereadores da Casa foram convidados, mas somente cinco se comprometeram a participar: Sâmia Bomfim (PSOL), Soninha Francine (PPS), Janaína Lima (NOVO), Rute Costa (PSD) e José Police Neto (PSD). Na hora, porém, apenas Soninha apareceu, com o jogo já em andamento. Os outros enviaram seus assessores.
A jogatina
Para a demonstração, os organizadores decidiram pelo módulo Executivo, mais curto e didático. A regra era mesmo simples: cada mesa recebeu 29 cartas, cada uma com uma área diferente, e precisava dividir o orçamento entre elas. Na primeira rodada, o objetivo foi aproximar-se da divisão real; na segunda, imaginar a divisão ideal. Para representar o dinheiro, adotamos o clássico Material Dourado, utilizado no ensino de matemática.
Ao ler as cartas, percebi que não fazia ideia do que tratavam algumas delas. O choque, entretanto, veio com a pergunta do tutor Pedro Markun, do LabHacker (um grupo criado dentro da Câmara do Deputados para desenvolver projetos inovadores em cidadania):
'Alguém tem ideia de qual é o orçamento anual da cidade de São Paulo hoje?'. Passado o silêncio inicial, vieram os chutes: 'R$ 12 bilhões?', disse um. 'R$ 20 bilhões?', chutou outro. 'Na casa dos bilhões, certeza!', concluiu mais um.
Eu chutei algo próximo a R$ 15 bilhões, estimativa aleatória que cheguei por saber que a cidade tem, hoje, 12 milhões de habitantes.
Ledo engano. O dinheiro previsto para todos os gastos de São Paulo em 2017 está estimado em incríveis R$ 54.694.563.143,00. Apenas uma pessoa acertou a casa dos bilhões, mas logo admitiu que sabia a resposta. Com o valor total revelado, estabeleceu-se que cada peça única do Material Dourado representaria 0,1% do orçamento (cerca de R$ 54,7 mi), enquanto uma sequência de 10 peças valeria 1% (R$ 546,9 mi) e um bloco de 100 peças, 10% (R$ 5,4 bi).

Joguei com um grupo bem diverso, formado por pessoas de diferentes idades e experiências: dois economistas, uma ativista, uma estudante e uma assessora parlamentar. Aos poucos, alguns deles demonstraram ter algum conhecimento sobre leis orçamentárias, o que, na prática, só serviu para balizar os chutes. No fundo, ninguém ali tinha muita certeza de nada.
Dada a largada, os primeiros blocos do meu time foram, de cara, para Saúde e Educação. Sabíamos que eram áreas com grande investimento, apesar da precariedade dos serviços, mas logo nos questionamos se aqueles valores não eram grandes demais. Decidimos então que colocaríamos o desejado e faríamos uma revisão posterior caso o cobertor ficasse muito curto para outras áreas.
Ao final da primeira rodada, minha turma havia colocado aproximadamente 60% de todo o dinheiro em cinco áreas: Saúde, Educação, Encargos Especiais, Transporte e Previdência Social.
Os outros grupos também investiram pesado nas funções mais conhecidas, mas alguns grupos, por desconhecimento, não atentaram para áreas subjetivas como Encargos Especiais, onde estão, por exemplo, as dívidas públicas. Cortar ou subavaliar os valores daquela função obrigaria a cidade a dar calote, algo que, felizmente, conseguimos evitar.
Já na segunda rodada, o grupo se engajou com a proposta de criar uma cidade dos sonhos e algumas divergências surgiram. Havia quem defendesse aumento da verba para transporte e quem quisesse dar mais dinheiro para áreas esquecidas (como meio ambiente), mas acabamos concordando em um grande e único ponto: se era para sonhar, que fosse com um projeto integrado, que melhorasse a qualidade de vida e gerasse oportunidades às pessoas.
Dessa forma, zeramos as áreas de Defesa Nacional e Relações Exteriores e cortamos mais da metade da Comunicação, para conseguir dinheiro. Então, investimos pesado em Gestão Ambiental, que dobrou de tamanho, e Trabalho, cuja verba cresceu acima de 50%. Além disso, aumentamos os valores de Educação, Urbanismo, Saneamento e Transporte, com a ideia de que, combinados, estes investimentos ampliassem os empregos, a cidadania e a dignidade dos trabalhadores. Apesar da impotência de não poder mexer em certas áreas, sentimos na pele como é possível fazer uma cidade diferente. Basta querer.
A criação
A ideia de criar um jogo para ensinar política aos jovens nasceu em 2014, quando o grupo da pesquisa “Sonho Brasileiro da Política” descobriu que 64% deles gostariam de aprender sobre o assunto na escola. Com esse dado em mãos, o grupo foi atrás da Énois, uma agência-escola de jornalismo para jovens, e do LabHacker, e propôs a criação de um projeto de educação política para atender essa demanda.
Desde então, foram dois anos de criação, desenvolvimento e testes até a jogatina de lançamento na Câmara. “O jogo surgiu com a ideia de estimular a educação política, sem censura. Fomos desenvolvendo a metodologia a partir de protótipos, aplicados em escolas públicas e particulares. As jogatinas iniciais foram feitas com 60 jovens, que ajudaram a aperfeiçoar a caixa. Fizemos também a capacitação de professores, a fim de criar multiplicadores do jogo”, conta Lucas Alves, da Énois Conteúdo.
Nem mesmo as claras diferenças socioeconômicas entre as particulares Bandeirantes e Madre Cabrini e as estaduais Amélia Kerr e Diadema afetaram a boa recepção do jogo. “O interesse sempre foi o mesmo, todos ficaram muito ligados na ideia. Eu mesmo conheci o jogo nas jogatinas e me lembro de tirar uma carta de um partido e agir como se estivesse atuando. Foi a experiência mais maluca que tive”, relembra ele, que também atuou como moderador.
Com esta experiência, Lucas recomenda que os jogadores tenham a mente aberta ao jogar.
'Quanto menos você conhecer política, melhor vai ser a experiência. Porque você passa a assimilar os processos como se fosse a primeira vez. Já vi amigos meus jogando e se transformando. Certa vez, dois deles tentaram me comprar para que eu aprovasse uma medida! O Jogo da Política é isso: você percebe a dinâmica e age como se estivesse naquela posição real', conta um dos criadores do jogo.
Além do Executivo, que joguei no dia do lançamento, a caixa tem outros dois módulos: o Legislativo, em que você assume o lugar de um vereador e tem que defender a posição de seu partido diante de uma comissão; e o Judiciário, em que você assume uma das partes envolvidas em um julgamento (juiz, jurado, advogado, imprensa, etc.), atuando conforme seu papel.
O impacto
Soninha Francine (PPS), única vereadora a aparecer na jogatina de lançamento, conta que ficou muito satisfeita em ver cidadãos “invadindo” a Câmara dos Vereadores para aprender sobre política. “É muito alentador. Por incrível que pareça, este é um lugar descolado dos problemas reais da cidade”, admite.
Além de ter feito parte de um dos grupos, a vereadora aproveitou a ocasião para ensinar um pouco mais sobre o assunto. Ao final da prática, foi até o computador ligado ao telão do Plenário, baixou o arquivo do orçamento total do município da internet e explicou como encontrar algumas das informações vistas no jogo, demonstrando como as informações são abertas e estão disponíveis, mas são pouco acessíveis ou claras para a população.
Para Soninha, o jogo também pode ajudar a aumentar o interesse das pessoas no assunto. “Não tem como as pessoas se interessarem por política sem conhecer e se envolver de fato”.
Para este repórter, a lição que ficou daquelas três horas jogando a política é que, antes de tudo, precisamos entender as regras, quem são os personagens envolvidos e qual a dinâmica do jogo. Só assim deixaremos a inocência de lado para assumir uma postura ativa, mudando o rumo das coisas. Neste sentido, o “Jogo da Política” é uma ferramenta fundamental para iniciar jovens e adultos nessa grande arte que decide o destino de tantas vidas.
Como ter acesso ao jogo?
Os criadores do “Jogo da Política” pretendem disponibilizar em breve os manuais e materiais do jogo na internet, gratuitamente. Por enquanto, apenas algumas unidades das belas caixas impressas que aparecem nas fotos, produzidas em edição limitada (apenas 100), estão sendo vendidas através do e-mail contato@enoisconteudo.com.br. Além disso, o grupo também planeja oferecer novas oficinas de capacitação para professores e interessados em atuar como tutor das jogatinas. Saiba mais em http://jogodapolitica.labhacker.org.br.