Há duas semanas, o Paraguai mergulhou em uma grave crise institucional. A reeleição presidencial, proibida pela Constituição do país desde 1992, foi aprovada pelo Congresso, permitindo que Horácio Cartes (eleito em 2013) se candidate novamente no ano que vem.
A manobra foi conduzida por senadores governistas, que organizaram uma reunião paralela ao plenário e aprovaram uma emenda à Constituição. Congressistas da oposição, ligados ao ex-presidente Fernando Lugo, também participaram do encontro. Ele e Cartes são os principais nomes para concorrer ao cargo máximo do Paraguai nas eleições do ano que vem.
A crise atingiu seu ápice no sábado (1º): manifestantes contrários à medida incendiaram o prédio do Congresso, no centro de Assunção. Dezenas de pessoas ficaram feridas, entre elas o presidente do Senado, o liberal Roberto Acevedo, e uma morreu durante o confronto com policiais.
Para a maioria dos especialistas, o problema da reeleição na América Latina tem relação com o caráter personalista da política na região. “Parece que a política latino-americana se centra em indivíduos que têm uma capacidade abrangente sobre o país e as instituições, e que sem eles o país e as instituições vão ruir”, analisou o especialista em estudos latinos Manuel Alcántara, para o jornal alemão Deutsche Welle.
'Esse é o maior problema da reeleição na América Latina, porque impede o surgimento de novos líderes. Em 1998, no Brasil, se o Fernando Henrique Cardoso não fosse candidato, facilmente ganhariam ou José Serra ou Tasso Jereissati para presidente. A mesma coisa com o Lula, em 2006. Se temos o FHC e o Lula como representantes do PSDB e do PT hoje é por causa desse mecanismo', avalia o professor de Ética e Política da USP e ex-ministro da Educação, Renato Janine Ribeiro.
Nas duas últimas décadas, pelo menos oito países da região alteraram suas Constituições para permitir a reeleição, beneficiando o presidente que estava no poder – e abrindo espaço para que alguns líderes políticos se mantivessem no comando do país por mais de uma década.
Foi assim com Carlos Menem, na Argentina, em 1994, e com Rafael Correa, no Equador, em 2008. A seguir, Calle2 mostra oito casos em que as regras foram mudadas durante o jogo político – muitos deles com manobras pouco transparentes e com denúncias de compras de votos.
Argentina (1994)
Em 1993, quatro anos depois de ser eleito, o presidente argentino Carlos Menem convocou um referendo popular para legitimar uma reforma na Constituição. Entre outras coisas, ela previa que o mandato presidencial fosse reduzido em um ano, mas permitisse uma reeleição. Em abril de 1994, a população elegeu 305 constituintes que modificaram 43 artigos da Constituição, entre eles a permissão da reeleição.
Apesar da oposição de vários congressistas, entre eles o então deputado Fernando de la Rúa, que depois seria presidente (1999-2001), Menem foi reeleito em 1995. Em 1999, ele ainda tentaria convocar outro referendo para permitir uma terceira reeleição, sem sucesso.
Brasil (1998)
Em junho do ano passado, o ex-deputado federal Pedro Corrêa disse, em depoimento à Lava-Jato, que o período final do governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1997, foi um dos “momentos mais espúrios” do Congresso, quando presenciou um “mercado” de compra de votos. Segundo Corrêa, cerca de 50 deputados tiveram seus votos comprados por FHC para aprovarem a reeleição.
Anos antes, o então senador Ronivon Santiago (PFL-AC), foi pego em uma gravação publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, dizendo que, tinha recebido R$ 200 mil para votar em favor do projeto.
Em janeiro de 1997, a Câmara aprovou a emenda que permitia a reeleição de Fernando Henrique com uma votação esmagadora: 336 votos a 17, além de 6 abstenções. No Senado, a mudança foi aprovada em junho.
O presidente da Câmara à época era o atual governante do Brasil, Michel Temer, que curiosamente advoga agora contra a ideia. A reeleição no Brasil havia sido proibida na Constituição de 1988 como reconhecimento de que a sociedade brasileira possuía diversas forças políticas distintas possíveis de representação política.
Colômbia (2004)
Em 2004, época em que a Constituição colombiana proibia reeleição direta para qualquer cargo majoritário, o então presidente Alvaro Uribe (eleito em 2002) começou a se articular para aprovar a sua própria reeleição, enviando ao Congresso uma proposta de mudança da Carta Magna.
Na época, a imprensa publicou denúncias de compras de votos dos parlamentares, que aprovaram a proposta por 112 votos a 32, permitindo apenas uma única reeleição, apesar dos protestos de ex-presidentes, movimentos sociais e de parte do judiciário.
Em 2006, Uribe disputou e venceu sua segunda eleição presidencial. Ele ainda ajudaria a eleger seu ex-ministro da Justiça, Juan Manuel Santos, em 2010, que também se aproveitou do benefício da reeleição e conquistou sua permanência no cargo no pleito de 2014.
Equador (2008)
Em 2014, o presidente Rafael Correa criou polêmica na imprensa equatoriana ao defender uma emenda constitucional que modificaria o critério de continuidade do mandato presidencial. Durante um evento em Quito, ele disse que era a favor da reeleição indefinida para cargos cujos funcionários eram eleitos por voto popular. Não era a primeira vez que ele argumentava em favor da permanência no poder.
Eleito em 2006 depois de uma campanha violenta e que propunha uma reforma constitucional, ele conseguiu mudar a Carta Magna em 2008. Um dos artigos da nova Constituição mudava o dispositivo de reeleição de um mandato único de cinco anos para um menor, de quatro, com possibilidade de reeleição. Correa, obviamente, tirou vantagem da nova lei: em 2013 foi reeleito presidente, onde ficará até a meados deste ano.
Venezuela (2009)
O então presidente Hugo Chávez convocou um referendo em 2009 para permitir a reeleição ilimitada presidencial. A emenda constitucional foi aprovada no referendo com 54,36% dos votos.
A eleição definiu que qualquer pessoa já no poder poderia disputar uma reeleição indeterminadamente. Ele disputou seu terceiro mandato em 2012 e morreu um ano depois, após 14 anos como chefe máximo do Executivo.
Nicarágua (2014)
O atual presidente Daniel Ortega foi eleito pela primeira vez em 2006 e reeleito em 2011 – a Constituição permitia apenas uma reeleição para o Executivo. Porém, em janeiro de 2014, pouco antes de terminar o seu segundo (e último mandato), o parlamento – majoritariamente favorável a seu governo – aprovou reeleição indefinida para a presidência.
Ortega, que deveria sair do cargo em 2016, lançou-se imediatamente como candidato ao pleito seguinte. Ganhou com cerca de 70% dos votos. “A população já percebeu que está sendo instalada uma ditadura na Nicarágua”, contou à Calle2 Javier Menocal, coordenador do curso de Filosofia e Ética da Universidad Centroamericana, de Manágua.
Bolívia (2015)
Em setembro de 2015, o Congresso boliviano reformou parcialmente a Constituição do país para permitir a reeleição do presidente Evo Morales (no poder desde 2006). Faltava apenas a ratificação da população por meio de um referendo.
Surgiu então Gabriela Zapata, empresária que acusou o presidente de esconder um filho do casal. A história foi contada pela Calle2 em duas reportagens (acesse-as clicando aqui e aqui). Morales viu cair por terra seus planos. O resultado do plebiscito, em fevereiro de 2016, foi a vitória do “não” ao presidente, com 52%.
Desde o início deste ano, Evo vem dizendo que quer disputar as eleições de 2019. Porém, para concorrer, ele precisará ou invalidar o plebiscito ou buscar uma nova mudança na Constituição.
“É o fracasso da democracia. Como é possível que não tenha surgido um único líder na Bolívia para substituir o Evo?”, questiona Janine Ribeiro.
Honduras (2016)
Em 2009, o então presidente hondurenho Manuel Zelaya, eleito em 2005, acabou deposto do cargo por militares após insistir na realização de um plebiscito popular que mudaria a Constituição. A oposição apontava que ele queria se reeleger para mais um mandato, o que era proibido pela Carta Magna.
Zelaya iniciou sua tentativa de mudar a lei em março de 2009, seis meses antes das eleições. Deputados, a Corte Suprema e o Exército declararam o plebiscito ilegal e, diante da insistência de Zelaya em realizá-lo, terminaram por depô-lo do cargo.
Sete anos depois dessa manobra, que terminou fracassada (já que a reeleição continuou proibida no país), o Congresso hondurenho aprovou emenda constitucional, proposta pelos senadores aliados ao governo, que permite a reeleição do atual presidente Juan Orlando Hernández. Será a primeira eleição da história de Honduras em que um presidente no cargo estará na disputa.