O dilema de Valparaíso
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O dilema de Valparaíso

Cidade chilena vive impasse entre ganhar dinheiro com o porto ou manter sua vista para o Oceano Pacífico

em 31/08/2018 • 19h48
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Vestido com uma calça jeans surrada e camiseta preta de uma banda independente chilena, Álvaro Ignácio Viveros Rivara caminha com tranquilidade pela calçada recém-pintada da Avenida Perú, em Viña del Mar, município vizinho a Valparaíso, cerca de 120 quilômetros de Santiago, no Chile. Ali, diferente da cidade portuária, não existe separação física entre o mar e os habitantes além de um muro de aproximadamente 70 centímetros. É sobre ele que Álvaro costuma sentar para acompanhar o movimento do porto a dez quilômetros de distância.

O olhar nostálgico é de quem já teve uma relação próxima com gruas e contêineres. Formado em Engenharia Civil Oceânica pela Universidade de Valparaíso, Álvaro trabalhou como inspetor técnico no porto por alguns anos. “Pude constatar a dinâmica industrial de Valparaíso: um trânsito marítimo permanente”. Durante meses, ele acompanhou o tráfego de mercadorias que chegavam em navios nos sítios 1, 2 e 3, os principais do Terminal Pacífico Sur (TPS), empresa privada que, desde 2000, detém a concessão de 20 anos para explorar o porto de Valparaíso.

“Daqui, eu posso ver que há uma neblina e os barcos estão ‘à gira’. Significa que eles não podem acessar o ‘cais de abrigo’. Por quê? Porque está com uma faixa de visibilidade muito ruim”, explica Álvaro se referindo ao fato de alguns navios estarem parados em alto mar durante dias. O único evento que foge da programação do porto são as oscilações climáticas. Com exceção do clima, não há espaço para erro: um barco que necessita descarregar 700 contêineres possui seis horas para realizar toda a operação. A cada minuto de atraso, uma multa é cobrada.

“O porto não para nunca. São 24 horas em sete dias da semana o ano inteiro”, diz.

Enquanto é feita a gestão de cargas dos barcos, as tripulações têm permissão para deixar a área portuária e acessar o bairro Puerto, mas a maioria prefere permanecer nas cabines. A agilidade da operação faz com que o processo não demore mais do que algumas horas. No século XIX, ao contrário, a vontade dos marinheiros era sair do porto o mais rápido possível para conhecer a cidade e aproveitar a noite portenha.

O desembarcar dos navios cargueiros era a alegria dos trabalhadores que chegavam cansados de meses de viagens, das exigências do clima e dos caminhos perigosos. A chegada em terra firme era comemorada pelos marinheiros nas ruas da cidade.

O perfil de Valparaíso foi definido a partir de dois fatores principais: o caráter urbano e a atividade portuária. Entre 1810 e 1822, a cidade possuía uma população flutuante de mais de três mil marinheiros nacionais e estrangeiros, transformando-a na segunda maior cidade do Chile. Foi o período de maior avanço tecnológico e populacional, impulsionado também pela chegada de imigrantes europeus.

O porto transformou-se na porta de entrada e saída de mercadorias da zona central do país por meio de rotas que ligavam a Europa à costa do Oceano Pacífico pelo Cabo de Hornos. As atividades portuárias e mercantis fizeram com que Valparaíso ganhasse o título de “Joia do Pacífico”. A cidade ainda viveu a febre do ouro durante a Revolução Industrial, quando cresceram as exportações de mercadorias e os investimentos do estado chileno. Foi então que nasceram os bancos, as companhias navais, as exportadoras, as companhias mercantes, as sociedades industriais e de mineração e o ferrocarril.

 O período de prosperidade econômica foi interrompido pelo terremoto de 1906, que destruiu um dos principais setores portuários, chamado de Almendral. A abertura do Canal do Panamá, em 1914, provocou a diminuição do tráfego marítimo de Valparaíso, tornando ainda mais difícil para a cidade retomar o auge e desenvolvimento que desfrutava até então. A crise econômica de 1929, enfim, cessou a migração de indústrias vindas de Santiago, dando início a um processo de depressão.

“A cidade ficou perdida”, relembra Álvaro.

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Valparaíso não reconquistou nunca mais o status de porto mais importante do Pacífico – e talvez nunca consiga fazê-lo. Nos anos 2000, entretanto, com a promulgação da Lei de Modernização Portuária e a concessão dos portos estatais para empresas privadas, a linha de crescimento voltou a subir. Foi o que Álvaro comprovou em seu trabalho como inspetor técnico.

Parado no cais do porto, ele se certificava que os barcos que traziam cimento ou que continham dois mil contêineres iriam atracar como planejado. “Me dei conta da quantidade de dinheiro que flui aqui. Ninguém pode dizer que falta dinheiro ou que há prejuízo”, reflete. Ele abaixa a cabeça. Faz anotações na prancheta. Vai registrando a chegada de mais e mais barcos com contêineres recheados de comida, cobre e material industrial.

No ano de 2012, a TPS postulou um projeto para expansão do ancoradouro do Terminal 1 de Valparaíso em 120 metros. O objetivo era manter a capacidade operativa do terminal e prorrogar também a concessão em 10 anos. De acordo com o estudo Plan Maestro de Valparaíso, realizado pela empresa, em 2035 o porto enfrentará uma demanda que exigirá outro projeto de expansão: a incorporação de uma infraestrutura de 725 metros ao Terminal 2, no borde costeiro.

“Esta construção geraria o aumento da atividade portuária, que significaria mais dinheiro transitando. Por outro lado, a vista ao mar dos habitantes de Valparaíso seria tapada e isso geraria um impacto muito negativo num bairro que é evidentemente boêmio”, opina o engenheiro.

O tom de voz dele fica mais duro quando fala de sua época como inspetor técnico no porto de Valparaíso. O motivo são as lembranças do estresse e pressão que vivenciou com o aumento da carga de trabalho. Sentado sobre o muro da Avenida Perú, ele coloca os pés no lado do mar e, em silêncio, escuta o barulho das ondas quebrando nas pedras.

A harmonia só é interrompida pelo latido dos cães de rua que aproximam-se vez ou outra para receber o carinho de Álvaro, pelo ruído dos carros que passam pela avenida ou pelo cantarolar do funcionário da prefeitura que varre a calçada. A maneira que o engenheiro admira o mar é a mesma de quem vê a imensidão de azul pela primeira vez. Apesar de definir-se como “portenho de coração”, ele se mudou para Valparaíso há pouco tempo, depois de viver os primeiros 24 anos da sua vida em Santiago.

Após finalizar o ensino médio, Álvaro fez uma prova equivalente ao vestibular no Brasil – a PSU –, e alcançou a pontuação mínima exigida para ingressar no curso de Engenharia Civil Oceânica, na Universidade de Valparaíso (UV). Foi viver na cidade litorânea, onde se apaixonou pelo mar e por uma mulher chamada Paula Rojas – que anos mais tarde seria sua esposa.

Álvaro passou uma vida inteira longe do mar e hoje prefere não passar um dia sem dar uma espiada nas águas calmas do Pacífico e no movimento da baía de Valparaíso. “Eu valorizo a proximidade com o mar e quero passar este sentimento para minha filha”. Álvaro e Paula são pais de uma menina chamada Leonor.

Na graduação, Álvaro teve a oportunidade de trabalhar no porto, cujo conhecimento adquirido transformou-se na sua tese sobre o contraste entre Valparaíso e Viña del Mar e da necessidade de integrar o porto com os habitantes locais.

“Na última década, Valparaíso não soube juntar o processo tecnológico de seu porto com o progresso urbano sociocultural. Existe um tipo de separação não somente física”, explica.

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A separação física a que Álvaro se refere são grades azuis levantadas na Avenida Errázuriz, que cercam o litoral de Valparaíso, que deixaram as pessoas sem acesso ao mar. Não há movimento na avenida, com exceção de um ou outro transeunte que ignora o cheiro de maresia e urina e se atreve a passar por entre as latas de cerveja e folhetos jogados no chão dos becos escuros.

Para espiar a área interna do porto, os habitantes se debruçam sobre a grade e encaixam a cabeça entre os quadrados de metal. Aqueles que têm vontade de molhar os pés na água fria do Pacífico, só conseguem fazê-lo pela Avenida Altamirano, pela praia de San Mateos e pela Muelle Barón“É preciso utilizar a borda costeira que se perdeu em Valparaíso, porque ela gera qualidade de vida e atrativos turísticos”, continua o engenheiro.

A futura expansão de 725 metros do Terminal 2 gerou protestos da comunidade Valparaíso que, diferentemente de qualquer parte do Chile, ainda conserva suas organizações municipais de maneira eficiente. O Corpo de Bombeiros, os Clubes Desportivos Vecinais e as igrejas são exemplos disso. Para Álvaro, é essa gente que não se sente parte do porto.

“É mais comum elas se identificarem com a dureza urbana do porto, o ruído, a fronteira física que não os deixa acessar a beira-mar, do que com os atrativos patrimoniais que ele possui”.

Nos últimos anos, a TPS fechou um contrato de patrocínio o Santiago  Wanderers, principal time de futebol da cidade, numa tentativa de se conectar com os portenhos.

“A dinâmica litoral de Valparaíso pode reinventar até um mercado muito pujante como o turístico”, segue sugerindo Álvaro.

Ainda assim, as pessoas que passam por Errázuriz não presenciaram o mesmo progresso que existe dentro das grades azuis. “Elas têm visto a cidade cada vez mais deteriorada, com mais incêndios e uma qualidade de vida menor”, conta. Para Álvaro, as supostas necessidades dos habitantes portenhos são impostas de Santiago. “Não há uma leitura de sensibilidade das comunidades que habitam Valparaíso, que são as que fazem uso deste lugar”.

Inquieto, Álvaro levanta-se e dá as costas para a baía de Valparaíso. Confere a hora no celular e constata que precisa tomar um ônibus para chegar ao trabalho. “Eu digo, com conhecimento de causa, que em Valparaíso não se descarrega um barco por dia. São 12, 15 barcos nos dias bons e 7 ou 8 nos dias maus. E isso não pode estar chegando diretamente aos cofres do governo central, em Santiago. Em primeiro lugar, Santiago não é Chile. Em segundo lugar, Valparaíso merece ser valorizada pela tradição e pela quantidade de séculos que tem”. Então, ele dá as costas às gruas e guindastes e faz o caminho contrário pela Avenida Perú. Retorna à casa, para a filha e a esposa em Viña del Mar.

‎*O texto e o vídeo fazem parte do Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo de Larissa Gaspar, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O projeto completo pode ser acessado aqui.

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