Bibliotecas criam ‘nova Honduras’
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Bibliotecas criam ‘nova Honduras’

Projeto transforma crianças em leitoras e muda a vida nas comunidades de um pequeno país que recebe pouca atenção do restante do mundo

em 17/07/2018 • 14h25
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“Me chamo Amanda e já li 633 livros”, afirma a menina, de repente. Ela fixa em mim seus olhos redondos. Não sei o que dizer. É uma garotinha de pele morena e bochechas gorduchas. “Tenho nove anos e estou na quarta série”, prossegue. Continuo em silêncio, estupefato.

A observo com carinho e intrigado: como é possível que uma menina da idade dela tenha lido tantos livros?  Dou-lhe um abraço e a faço sentar junto a mim. Peço que ela repita para todos o número de livros que leu. “Li 633 livros”, reafirma. Todos ficam em silêncio. Um silêncio amável, respeitoso.

Se alguém ainda não acredita, incluindo eu, antes de sentar na pequena cadeira que lhe ofereço ao meu lado, ela pega quatro ou cinco cadernos escolares de uma pequena bolsa. São seus diários de leitura, onde consta, com resumos incluídos, o que gostou e o que não gostou em cada livro que leu. São, de fato, 633 livros.

As outras crianças sorriem alegremente. Estou sentado junto a elas ao redor de uma pequena mesa de leitura da biblioteca escolar do Centro de Educação Básica ‘Teresa Madrid’, que fica na comunidade de Camalote, Campuca, bem ao centro do departamento de Lempira, região ocidental de Honduras.

São dez horas da manhã. Faz um dia cinzento na colina onde fica a biblioteca. Ao longe, se avista um pequeno vale com grandes reservatórios de água destinados à lavoura. Segundo moradores, todos os reservatórios pertencem ao presidente de Honduras, Juan Orlando Hernández.

As crianças não parecem impacientes. Elas ficam esperando que eu fale primeiro, mas não estou ali para dizer, explicar ou lhes “ensinar” nada. Estou ali para escutá-las, para vê-las felizes como são.

Por fim, rompem o silêncio. Ao ouvi-los entendo o porquê de sua imaginação: ainda estão em comunhão com a natureza. E agora, além de tudo, cada um deles leu uma quantidade de livros que ninguém poderia imaginar. A natureza e os livros os tornaram criadores de seu próprio mundo.

São crianças e adolescentes entre cinco e 15 anos que caminham quilômetros para chegar à escola sob qualquer condição e perigo. A maioria é pobre, porém, suas vidas estão se transformando graças ao projeto Bibliotecas Comunitárias desenvolvido pelo Plan International Honduras em 18 comunidades de  dez municípios do departamento de Lempira:  Gracias, Lepaera, La Iguala, Talgua, La Unión, San Rafael, Las Flores, San Manuel Colohete, San Marcos Caiquín e La Campa.

Cada uma das bibliotecas está distribuída da mesma forma: em salas novas e espaçosas, pintadas com cores escolhidas pelas crianças. As estantes também são coloridas e algumas vezes são feitas de caixotes empilhados um em cima do outro. Ocupam as paredes de quase todo o espaço.

As seções de livros estão bem divididas: comunidade, pré-escolar, escolar e ensino médio. Cada uma delas possui um símbolo de identificação pequeno que é colocado em cada livro. Dessa maneira, as crianças e os professores sempre sabem a qual seção pertence o livro emprestado. Os tamanhos e as formas das mesas são variados. As menores para as crianças e as grandes para os maiores.

Como aponta o poeta Salvador Madrid, diretor do programa de leitura, “as bibliotecas são máquinas criativas, laboratórios culturais escolares”. E não poderia ser diferente: 4.246 crianças e adolescentes são beneficiados diretamente pelas bibliotecas e atividades de leitura promovidas por elas, como empréstimo de livros, mochila viajante (que permite o transporte de livros para que crianças de outras comunidades também possam ler), além de teatro, cinema, música, etc.

No ano passado, cerca de 2.393 meninas e 2.327 meninos foram beneficiados por 83 mochilas viajantes. Cada biblioteca está ligada às redes educativas. Nenhuma das atividades promove exclusão de gênero e as meninas tiveram igual ou maior êxito que os meninos em processos cognitivos.

As meninas revelaram ser leitoras mais ávidas, diligentes e constantes, apesar de seu papel na maioria das comunidades rurais do país continuar a ser tão duro como no passado. Os trabalhos domésticos ainda recaem sobre elas. Mesmo assim, elas lideram a maioria dos grupos artísticos e de leitura.

O projeto envolve a comunidade inteira. Cerca de 51 crianças deficientes fazem parte de grupos artísticos e pelo menos 180 professores foram treinados para as muitas atividades, entre elas o diário leitor, que registra os livros lidos pelas crianças, pais e vizinhos.

O projeto cresceu além do esperado. As bibliotecas deram um salto substancial e de simples salas de leitura se tornaram centros de integração de convivência comunitária e reuniões sociais.

Alejandra Ponce, aluna da sexta série da Escola Vida Abundante do município de Unión, acredita que “ler é a melhor coisa do mundo pelos detalhes. Podemos imaginar e conhecer tudo. Lendo podemos criar um mundo melhor, que não seja tão feio como Honduras. Um mundo lindo, mas não ridículo”, afirma.

Alejandra é uma das crianças escritoras de Lempira. Já escreveu ao menos seis contos, entre eles ‘Blanco Nievo y las siete enanas’, publicado no livro El barro es nuestro corazón, que reúne contos infantis escritos pelas crianças das bibliotecas para outras crianças.

Um total de 1.313 crianças fazem parte de grupos artísticos que surgiram dentro das bibliotecas, entre eles 20 grupos de teatro e 18 grupos de cinema. Tudo isso representa um êxito incomum em programas de aprendizagem e leitura infantil em Honduras. Digo isso aos amigos do Plan International, com quem viajei para mais de 12 comunidades, visitando 12 bibliotecas estruturadas da mesma forma, mas diferentes uma da outra.

São dias chuvosos em toda a região. A natureza é verde. Os picos das montanhas de Lempira se escondem por meio da névoa. A atmosfera é menos quente do que em outras ocasiões na cidade de Los Confines.

“Vamos visitar cerca de dez bibliotecas”, diz Salvador, como se me preparasse para longos e cansativos dias. Diariamente, entre as 8h e 9h da manhã, iniciamos as visitas nas comunidades. É um passeio de monitoramento, conversação e complementação de livros para bibliotecas.

Fico impressionado pelo carinho das crianças com os integrantes do Plan, a vivacidade e a expressão de felicidade com a qual elas nos recebem. Dentro da biblioteca criaram um mundo de jogos, histórias, música, atuação e sorrisos. Um mundo diferente e melhor para um mundo externo cheio de impossibilidades.

Alguns meses atrás, observando o mesmo fenômeno em uma comunidade de San Manuel de Colohete, o professor Edilberto Borjas definiu toda a cena com uma palavra: felicidade. “Essas crianças estão felizes”, me disse. Ele não estava errado, porque elas realmente são.

Fiquei surpreso com todas as crianças, mas algumas delas me causaram uma admiração particular, e, por que não?, um certo suspiro de esperança. Espero que esta geração que está em gestação naqueles laboratórios das escolas culturais consiga colher os melhores frutos para o futuro imediato do país.

A vida de muitas comunidades mudou radicalmente. Muitas conseguiram uma oportunidade diferente e única e se destacam no país por seus méritos artísticos e desempenho acadêmico, como a comunidade de Mercedes, em Las Flores, cujo índice acadêmico está bem acima da média nacional.

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Segundo Jenny Fonseca, diretora do Centro Básico ‘Manuel Bonilla’, da comunidade de Taragual, em La Iguala, “a biblioteca aumentou o potencial das crianças em 75%”. Jafeth Pérez, aluno da quarta série no Centro Básico ‘Pompilio Ortega’, resume: “A biblioteca é um mundo maravilhoso onde podemos aprender de tudo e onde não temos medo do fazer nada”.

A biblioteca que Jafeth frequenta é um exemplo da evolução positiva do projeto. Nela, os pequenos leitores também são bibliotecários, que se revezam diariamente na função. “É assim que as crianças aprendem o senso de responsabilidade”, dizem os professores.

Lá, como em Taragual, as crianças nos receberam com presentes, ofereceram o braço para nos acompanhar ao interior da biblioteca e nos deram uma flor que ainda tenho entre as páginas de um livro do poeta e jornalista Rafael Heliodoro Valle (1891-1959) , que ficaria orgulhoso delas.

De volta à cidade de Gracias, em meio à chuva, ao nevoeiro e ao silêncio das montanhas que anunciam a noite, pensei no quanto foi bom estar lá, em cada lugar, ouvindo as crianças contar suas histórias, lendo uma para outras e serem felizes como podem ser.

Senti falta apenas de uma seção de habilidades e negócios, o que sem dúvida seria muito útil para o desenvolvimento econômico das comunidades. “Se eu não estivesse em cada uma dessas comunidades, não acreditaria que isso está acontecendo”, digo aos outros integrantes do Plan, quase aos sussurros. Todos ficam mudos, mas concordam.

Num pequeno país longe dos olhares do resto do mundo e que é notícia apenas por seus milhares de mortos, as bibliotecas para crianças são um encorajamento, uma verdadeira esperança.‎

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