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Sociedade

Vila Autódromo vive Olimpíada a contragosto

Após a polêmica remoção de 700 famílias para construção do Parque Olímpico, moradores que seguiram na vila se queixam das Olimpíadas (mas os jogos passam na TV)

em 18/08/2016 • 11h48
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O jogo que passava na televisão do refeitório de João Felix dos Santos, de 58 anos, era Brasil x Montenegro. Uma partida de handebol da Rio 2016, domingo de manhã. Apesar do animado clima olímpico que contagiou o Rio de Janeiro desde o início dos Jogos, seu João, vizinho do Parque Olímpico da Barra, parece desencantado com o evento. “A gente torce pelo Brasil, porque é brasileiro. Mas Olimpíada não é para o pobre, é para o rico, para quem tem dinheiro, porque a gente que é assalariado não tem condições de assistir.”

A indignação do comerciante é pertinente, já que ele e a sua família são um dos moradores da Vila Autódromo, uma comunidade removida, em parte, para que o complexo de mídia dos Jogos, adjacente ao parque, pudesse ser erguido e para ampliar os acessos aos equipamentos. Outro trecho foi retirado por questões ambientais, pois estava às margens da lagoa de Jacarepaguá, segundo versão oficial da prefeitura. Seu João e mais 20 famílias, das cerca de 700 que habitavam o local, no entanto, resistiram à pressão da Prefeitura do Rio de Janeiro, e conseguiram permanecer no lugar. Algumas das famílias removidas moravam lá por mais de 20 anos.

As poucas casas que se mantiveram na Vila Autódromo foram reurbanizadas e entregues há poucas semanas aos antigos moradores. Mas o processo não foi fácil. Primeiro, inúmeras brigas foram geradas com vizinhos e amigos de anos; depois, a maioria se mudou para longe; os que ficaram viram suas casas serem demolidas e, durante o período de obras, cortes de água e luz, às vezes por mais de 30 horas, eram constantes porque o maquinário da prefeitura estourava um cano ou derrubava uma fiação. Nada que desse motivo para uma festa.

foto por: Diana Dantas
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O jogo passa na TV, mas o morador da Vila Autódromo João Felix dos Santos lamenta: 'Olimpíada é para rico'.

Apesar de tantas perdas, João ao menos consegue ganhar algum dinheiro extra com os funcionários que trabalham na organização dos Jogos. Na hora do almoço, é constante o entra e sai de pessoas com crachá no refeitório, montado na sala da casa nova. “Ao menos, por enquanto, os Jogos estão garantindo a minha sobrevivência. Não é grande coisa, mas… Depois que acabar a Olimpíada, isso aqui vai ficar isolado, isolado em termos, né? Mas não vai ter esse movimento”, lamenta.

O movimento ao qual seu João se refere vai além do dos funcionários.

Os Jogos trouxeram para a comunidade uma circulação de pessoas que parecem estar ali a passeio, apenas para visitar. Grupos de turistas e de vizinhos dos condomínios cruzam com suas crianças, algumas de bicicleta, pela tranquila rua principal da comunidade, que é conhecida por não ser violenta, pois não tem tráfico de drogas nem milícia.

“Acho que é bom, dá visibilidade. Mostra para as pessoas que a Vila permaneceu. Não acho que o movimento vai acabar depois da Olimpíada, temos muitos eventos culturais. Shows e exposições. O trabalho vai continuar. Somos muito ativos. Pode dar uma diminuída no número de frequentadores, mas não deve acabar”, diz a acupunturista Sandra Maria de Souza, de 48 anos, que conta não estar assistindo aos Jogos e estar muito decepcionada com todo o processo.

A história de vida dessas pessoas, tão próximas e tão distantes do maior evento esportivo do planeta, também trouxe para a Vila outro tipo de público: o da imprensa. Quando a Calle2 bateu na porta da dona de casa Maria da Penha Macena, de 51 anos, já havia duas jornalistas alemãs na sala. “Sou repórter também, posso entrar?” A resposta foi uma gargalhada generalizada. “Vem, vamos distribuir senha agora”, disse a filha, Nathalia Silva, de 29 anos, estudante.

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Rua principal da Vila Autódromo, com movimento extra por causa dos jogos

‎Brincadeiras à parte, a família foi umas das que mais sofreu no processo de remoção, por isso, recebe tanta atenção da mídia ー principalmente a internacional. No dia 3 de junho do ano passado, segundo conta Maria da Penha, ela saiu pela manhã para comprar o pão, como fazia todos os dias, e presenciou a entrada de vários caminhões, guardas municipais, polícia e de uma comitiva da prefeitura. Na volta, depois de ter tomado o café da manhã, a dona de casa percebeu a movimentação na rua de trás e decidiu ir entender o que estava acontecendo. Quando chegou ao local, soube que um oficial de Justiça estava ali para tirar uma família vizinha à sua de casa, no mesmo dia.

'Intervi e perguntei, mas vocês vão tirar eles à força? Como vão tirar as pessoas assim? E dialoguei: por que vocês não dão uma semana para eles se mudarem? Se eles têm que sair, que pelo menos tenham um prazo', lembra Maria da Penha.

De 9h às 14h foi tentado um diálogo com a prefeitura. Como não houve sucesso, a imprensa foi chamada e a Defensoria Pública também. E começou a juntar mais gente. “Tentamos de tudo, mas não houve jeito. Então, fizemos um cordão em volta da casa e apanhamos.”

A foto de Maria da Penha ensaguentada foi publicada e republicada por vários veículos de comunicação e a dona de casa acabou se tornando um símbolo da resistência local. Mas ela rechaça esse título. “Foi uma realidade nua e crua. Não acredito que seja um símbolo, porque essa é a realidade do dia a dia de cada morador de favela ou de comunidade. E isso não é só no meu país, acredito que seja no mundo inteiro. Então, não vejo símbolo, vejo muita realidade na qual tanto o governo, como a sociedade como um todo fingem que não veem”, diz ela, explicando que, por isso, não tem vontade de acompanhar a Olimpíada.

Os  Jogos Rio 2016, entretanto, estavam passando na televisão do seu quarto enquanto conversávamos. Quem assistia a uma luta de boxe era seu marido, Luiz Claudio da Silva, de 53 anos, professor de educação física, que tem vivido o período olímpico a contragosto. “Eu não tenho ânimo para ver as competições, mas como atuo na área, tenho que estar antenado, porque faz parte do meu trabalho. E não tem jeito, como o assunto do momento é esse, tenho que ver uma coisa ou outra”, explica ele, que mostra que, apesar de todo o transtorno, não julga o público que comparece às competições. 

'Quem não sofreu impacto da Olimpíada, como a Vila Autódromo, deve participar. É um momento único, tem que viver mesmo e curtir, mas nós não temos vontade de participar.'

A opinião é compartilhada pela filha do casal, Nathalia. “Eu adoro e apoio o esporte, embora não pratique, gosto de atividade física. Mas eu não tenho vontade nenhuma de entrar naquele Parque Olímpico. E acho uma hipocrisia querer que o Brasil ganhe medalhas, porque os atletas não têm nenhum tipo de apoio no nosso país.”

Para ela, Rafaela Silva, medalha de ouro do judô categoria peso leve (57 quilos), é um exemplo do que o esporte poderia fazer pelo atleta e deixar como legado social. “Não vi a luta, mas soube pela internet. Admiro ela por ter persistido, depois dos comentários racistas e de ter quase desistido em 2012. Ela é de uma comunidade [Cidade de Deus] aqui perto. E você vê, às vezes, as pessoas não têm apoio nem do governo nem da população.”

Embora os Jogos tenham transformado negativamente a vida dos moradores da Vila Autódromo, eles parecem unânimes em avaliar como a vida de Rafaela também foi transformada positivamente pela Olimpíada. “Achei muito bonito, porque ela mora em comunidade. Tem família minha lá na Cidade de Deus. Todo mundo ficou muito feliz. Os que vêm em berço de ouro já têm tudo, os que são da comunidade não têm nada. E as pessoas de lá têm talento, mas não têm uma oportunidade. É o que falta”.

E Luiz Claudio arremata: 

'É um grande contraste, porque a medalha vem de uma favela, e a Olimpíada é usada para tirar a favela. O Brasil tem que parar com essa hipocrisia e começar a trabalhar para melhorar a qualidade de vida das pessoas.'
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Ao entrar na Vila Autódromo tudo parece novo. O asfalto, as casas com paredes branquinhas, a grama recém colocada, os móveis amontoados na sala e as caixas de papelão esperando serem abertas pelos antigos moradores que acabaram de voltar. Mas apenas parece. A comunidade é antiga. Fundada por pescadores, há cerca de 50 anos, a Vila tem uma história para contar e, com o intuito de não esquecê-la, foi criado o Museu das Remoções.

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‎Colocadas sobre os jardins das casas novas, as instalações e esculturas lembram a história do lugar, como a do brinquedo de trepa trepa envolto por um duto de ar, que evoca o parquinho removido. Diana Bogado, 34 anos, professora de arquitetura e urbanismo da Universidade Anhanguera e apoiadora da comunidade, conta que a ideia surgiu em conjunto, entre apoiadores e moradores. A partir do momento em que a remoção ia avançando, todo o conjunto ficava descaracterizado e o que um dia foi a Vila Autódromo ia se perdendo. A partir de então, surgiu a ideia de que era necessário algum tipo de intervenção, e que se criaria um museu a céu aberto, em que a própria vila seria o museu.

“A ideia é mostrar para as pessoas que passam aqui que essa comunidade tem uma história de luta, que sofreu uma violência do Estado, que a removeu em 97% das casas, mas que não conseguiu remover o que era a é vila em essência, que foi fortalecida pela resistência e pela união. E é vitoriosa em permanecer no lugar”, explica.  

Luiz Claudio define, para ele, como foi essa conquista. “É uma vitória, porque ninguém acreditava que ficaríamos, mas com gosto de derrota. A felicidade não é plena, tendo vista que das 700 famílias ficaram 20. A gente estaria muito feliz se o legado social realmente existisse e que a reurbanização fosse feita para todos nós.”

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