Turistas brasileiros invadem deserto do Atacama
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Turistas brasileiros invadem deserto do Atacama

Bandeiras verde e amarela, agências especializadas para atender os visitantes e o português sendo falado em todas as esquinas mudam a paisagem da chilena San Pedro do Atacama

em 05/07/2017 • 11h24
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“Incrible” (sic), diz um comentário em um dos hostels de San Pedro de Atacama (Chile) sobre a experiência de um grupo do Rio de Janeiro no deserto mais árido do mundo. O “portunhol” está cada vez mais presente em San Pedro do Atacama, assim como bandeiras verde e amarela e brasileiros trabalhando ou circulando pela Caracoles, a principal rua da cidade, que é a principal porta de entrada para o deserto.

A estimativa das agências que trabalham com turismo é de que 30% a 40% dos cerca de 1 milhão de turistas que visitam o Atacama por ano sejam brasileiros. Os dados do Senatur (Servicio Nacional de Turismo) de 2016 mostram que os brasileiros desbancaram os alemães e se tornaram a terceira nacionalidade que mais visita o Atacama. Na liderança, aparecem os próprios chilenos, seguidos pelos franceses.

Segundo a subsecretaria de Turismo do Chile, o deserto mais árido do mundo ultrapassou Torres del Paine, na Patagônia, e a Ilha de Páscoa, e se tornou o destino mais visitado do país.

O Atacama virou 'moda' e passou a estar no topo da lista de desejos dos brasileiros, ao lado de destinos como Macchu Picchu, no Peru, San Andres, na Colômbia e a Patagônia argentina, que figuram entre os destinos mais sonhados pelos brasileiros na América do Sul.

Com tantos brasileños, foi quase natural que o turismo do Atacama se voltasse para esse público. Agências passaram a se especializar e a oferecer diferenciais, para focar em um público A e B que não está disposto a passar perrengue no meio do deserto.

O movimento de brasileiros começou a se tornar mais frequente depois que a apresentadora Glória Maria visitou o deserto para fazer uma reportagem para o Globo Repórter, exibido em setembro de 2008. Além da divulgação na emissora de TV de maior audiência do país, o boca-a-boca ajudou no crescimento do número de turistas vindos do Brasil.

Blogueiros especializados em viagens também contribuem para esse movimento. As paisagens, deslumbrantes e diferentes entre si, ajudam a firmar o destino entre os mais desejados. E quando eles chegam ao deserto, percebem que nem mesmo as fotos conseguem registrar a imensidão de lugares como Valle de la Luna, Piedras Rojas e Salar de Tara, entre outros.

No último 12 de junho, a atriz Taís Araújo podia ser vista pela rua principal da cidade fazendo compras com duas amigas. Ela esteve hospedada em um hotel ‘all inclusive’, que cobra US$ 1 mil pela diária e disponibiliza um carro com guia por quarto. “Como é morar por aqui?”, me perguntou depois de saber que eu vivia na cidade. Respondi que era tranquilo, dava pra fazer tudo a pé e que a cidade tinha dinheiro. A atriz global disse que pretende voltar com os filhos quando eles forem maiores.

A advogada paulistana Adriana Leal, 55 anos, escolheu o Atacama para passar as férias. “É um destino de aventura, com um número gigante de lugares a serem visitados, com tudo que a natureza oferece: montanhas, lagos de água salgada, rio com águas termais, gêiseres, vulcões, neve, calor, frio, deserto… Além de ser um dos melhores pontos de observação do céu”, enumera. Adriana considera que mesmo tendo lido bastante sobre o destino, a viagem superou as expectativas. “Achei o lugar mais lindo do planeta”.

Com salários razoáveis e opções de trabalho, cidade atrai empreendedores brasileiros

O sucesso que o destino faz e o número crescente de visitantes também atraíram trabalhadores brasileiros. Os mochileiros pela América Latina começaram a perceber que o Atacama seria uma parada quase natural para juntar dinheiro e continuar na estrada.

Muitos trabalham sem o RUT (Rol Único Tributário), documento que permite trabalhar legalmente no Chile, e ficam temporadas de até três meses, tempo permitido pelo visto de turista.

A facilidade de conseguir um trabalho é aliada aos altos salários. É fácil um garçom, vendedor de agência ou hunter (figura que fica na rua chamando turistas para entrar na agência) ganharem até 1 milhão de pesos, o equivalente a cerca de R$ 5 mil.

Não é incomum, no entanto, ouvir histórias de calotes e de trabalhadores dispensados sem receber o salário devido. A ilegalidade do trabalho, para os que têm apenas visto de turista, contribui.

O chileno Michael Valdel é um dos que se especializou no público de luxo brasileiro ao transformar a agência Ayllu, que comanda. “Em 2011 namorei uma brasileira e decidimos focar no público de classe média alta do Brasil. Percebemos que eles gostam de se exibir e tirar fotos bonitas da viagem. É uma característica diferente, por exemplo, do chileno que prefere pegar o pacote mais barato”, diz Michael.

Em 2016, a agência recebeu 1,2 mil pessoas, 99% deles brasileiros. Outra agência especializada no público de classe média alta é a FlaviaBia Expediciones, que pertence à brasileira Flavia Ribeiro. Ela mora no Atacama desde 2011 e diz que as pessoas que procuram a agência buscam um diferencial. “São turistas que além de querer conhecer as paisagens do deserto, buscam conforto e experiências personalizadas. Além disso, o brasileiro se sente mais à vontade quando chega na agência e ouve português”, considera.

Entre os trabalhadores atraídos pela proposta de trabalhar e juntar grana está a gerente da agência 1,2,3 Andes, Bianca Blefari. Estudante de Direito no Brasil, ela largou o último semestre da faculdade para viajar. A ideia era ficar um mês em cada país da América do Sul. Ela começou pelo Chile. Percorreu do sul ao norte do país e chegou a San Pedro com passagem comprada para ir embora, mas recebeu uma proposta de trabalho. Decidiu ficar.

Além do foco no Brasil, o diferencial dessas agências é que não terceirizam os serviços. A agressividade do turismo é citada pelo administrador Marcelo Sturari, 28 anos, que viaja há mais de um ano pela América do Sul e trabalhou dois meses no Atacama durante o verão, estação da alta temporada. “San Pedro gira em torno do turismo. A demanda é maior do que a oferta e a ganância é gritante nas ruas. Problemas com tours são constantes. Vende-se primeiro, pergunta-se depois. Ganha-se na simpatia e confiança ou pelo cansaço. E eu fui parte disso”, relata, contando a experiência de ter sido hunter e vendedor na Caracoles em uma das cerca de 100 agências da cidade de 7,5 mil habitantes voltada para o turismo e que abriga mais de 300 hotéis.

Além de ‘São Paulo de Atacama’, a cidade é chamada também de ‘San Pedro de Atrapama’. Atrapar em espanhol significa prender.

A energia e a grana “fácil” acabam segurando os viajantes que visitam ou trabalham no lugar por mais tempo do que o planejado. É o caso da guia Carola Poche, 43 anos, que abriu a própria agência online, Discovery Atacama, e chegou na região pela primeira vez em 2004. “Vim ficar uma semana e fiquei três anos”.

Depois de um tempo entre Rio, São Paulo e Florianópolis, Carola voltou ao Atacama em 2013. A cidade tinha ganhado iluminação pública nas ruas e um número crescente de visitantes brasileiros. “Hoje, nos feriados do Brasil, a cidade é invadida por brasileiros. Meu medo é que esse turismo massivo transforme a cidade em outra coisa. Quem vem para cá precisa querer saber da cultura, dos costumes. San Pedro é mais do que só pontos turísticos, existe uma cultura ancestral que precisa ser preservada”, defende.

Os guardiões dessa cultura são os licananthays (povos do alto, na extinta língua kunza) ou atacamenhos, como foram chamados pelos espanhóis. Eles são originários da região e atualmente vivem do comércio, aluguel de casas, como motoristas de tours e da administração dos parques. Com ruas sem asfalto e grande parte das casas feitas de adobe (um barro próprio para o clima do deserto, com grandes oscilações de temperatura), San Pedro tem uma vibe hippie.

Apesar de atrair muitos mochileiros, a cidade tem leis duras. Artesãos são proibidos de vender mercadorias na rua (a polícia sempre apreende); a maioria dos bares só pode vender bebida alcoólica se o cliente consumir algo para comer; não se pode beber na rua (essa lei vale para o Chile todo) e há uma legislação que proíbe dançar (em qualquer espaço, seja público ou privado).

Além de repórter da Calle2, fui um dos trabalhadores atraídos pela promessa de grana para continuar viajando. Em San Pedro, repassei clientes para outras agências para encher carros; devolvi dinheiro de turistas descontentes com o péssimo serviço para a travessia do Salar de Uyuni; organizei free walking tours pela cidade; fiz amizades com passageiros que ficaram contentes com nossos trabalhos. Deixei de ser pago e fui demitido quando não era mais útil em uma agência, mas comecei em outra no mesmo dia. Também vi chuva de granizo no deserto; múmia ser desenterrada no meio da rua; terremoto; subi vulcão ativo e vi paisagens tão incríveis que deixam qualquer outro lugar do planeta para trás.

FOTOS DA GALERIA (Salar de Uyuni e Atacama): MARIA LUTTERBACH

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