San Telmo: o mais antigo e boêmio bairro de Buenos Aires
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O mais antigo e boêmio bairro de Buenos Aires

Bairro completa 210 anos com muita história para contar: da febre amarela que atingiu 10 mil moradores no século 19 ao surgimento do tango

em 19/08/2016 • 11h30
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Em junho deste ano, San Telmo completou 210 anos de existência. Para os que querem submergir nas profundezas da cultura e história argentinas, a região é uma obra pronta para ser apreciada. Um passeio por suas vias é uma verdadeira viagem antropológica.  Apesar de seus muitos anos de vida, a região carrega uma aura atemporal, tendo sobrevivido a revoluções, epidemias, projetos de renovação e questionamentos sobre a sua importância na cultura da cidade.

Muitos turistas lembram de San Telmo apenas no domingo, quando acontece a famosa Feira de Antiguidades. Nada contra. No entanto, o bairro é muito mais que o caos a céu aberto do fim de semana. Perder-se por entre tantos cacarecos e badulaques, contemplar a arquitetura colonial, dançar tango, experimentar comidas de rua e tirar foto com a Mafalda são apenas algumas das inúmeras possibilidades que a menor região da cidade oferece.

Sua história remonta ao século XVII, época em que foi habitado por trabalhadores portuários, estivadores e pedreiros. Mais tarde, tornou-se uma área industrial. Para minimizar alguns entraves sociais da região, em 1806, foi criada a Paróquia de San Pedro Gonzales Telmo, em homenagem ao sacerdote católico espanhol Pedro Gonzales Telmo, que ficou conhecido no século XII como o padroeiro dos marítimos.

Décadas depois, San Telmo foi habitado por famílias tradicionais de Buenos Aires como Domingo French e Esteban Echeverría. Chegou a ser considerado um bairro nobre, mas tudo mudou em 1871, quando uma epidemia de febre amarela atingiu 10 mil residentes e empurrou a alta sociedade para o norte de Buenos Aires, para lugares hoje conhecidos como Recoleta, Palermo e Belgrano. Muitos imigrantes europeus enxergaram no surto uma oportunidade para se instalarem nos antigos casarões da área, trazendo o charme da diversidade para as imediações. Buscando a sorte, eles moraram precariamente nos chamados conventillos, uma espécie de cortiço argentino.

Nessas décadas, a arquitetura moderna começou a se espalhar pelo país e, junto a ela, vieram as demolições e alterações de vários edifícios. No entanto, foi possível conservar alguns patrimônios e, ainda hoje, San Telmo esbanja exuberância pelos seus casarões antigos e com arquitetura colonial e suas ruas empedradas de paralelepípedo típicas do interior.

Formado pela junção de oito ruas na horizontal e 11 na vertical, San Telmo respira e transpira tango. Aliás, a história do tango também se converge com a história do bairro, que foi um dos berços para o surgimento da dança argentina. Isso aconteceu pois a maioria dos imigrantes europeus que adentraram o país no século XIX, e acabaram se instalando nas adjacências, eram homens que largaram a família e vieram em busca de novas oportunidades.

A significativa discrepância em relação ao número de homens e mulheres na cidade favoreceu a propagação de prostíbulos e deu asas para a boemia correr solta. Nesta mistura de sons, culturas, gostos e personalidades, a polca europeia, a havaneira cubana, o candombe uruguaio e a milonga espanhola firmaram o nascimento do tango argentino. Aos poucos, San Telmo se transformou num reduto cultural forte e sua reputação extrapolou as barreiras político geográficas do país e ganhou o mundo.

As famosas milongas de San Telmo podem ser comparadas às gafieiras do Rio de Janeiro. É um lugar onde a chamada velha guarda dá um show de molejo e os jovens vão para se divertir e admirar esse universo único. Em algumas delas, é possível aprender e arriscar alguns passos de tango com os professores que ficam a disposição, mostrando o que a Argentina tem de melhor. Em uma portinha sem placa na calle Perú, entre a México e a Venezuela, acontece a Maldita Milonga, uma das mais famosas de San Telmo e onde a maioria dos porteños recomenda ir se for a primeira incursão ao maravilhoso mundo do tango. As casas Nuevo Chiqué, Flor de Milonga, Entre Tango y Tango, Garufa Tango Club também são bastante procuradas pelos locais e turistas.

Rodeado pelo Microcentro, La Boca, Puerto Madero e Avenida 9 de Julio, o bairro reflete o clima multicultural e boêmio de sua história. Esqueça o requinte, o luxo e o estilo moderno-industrial-perfeitinho de outras regiões. O barato de San Telmo é a energia despretensiosa, rústica e local, que liberta, encanta e faz os turistas se sentirem em um filme do século XIX. A calle Defensa é uma das mais movimentadas com muito comércio e lojas de antiguidades. Já na Plaza Dorrego, tida como o coração do bairro, borbulham opções de bares, restaurantes e apresentações culturais variadas 24 horas por dia.

Por sua importância histórica – foi lá que os porteños aderiram à Declaração de Independência da Argentina – o local foi declarado Lugar Histórico em 1978. Passar um dia sentado nas mesinhas de um dos bares ou restaurantes da plaza, tomando um café, assistindo a um show de tango, admirando o artesanato e se divertindo com tantos penduricalhos, é uma das experiências mais incríveis de Buenos Aires.

Presente em quase toda esquina de San Telmo, os bodegones também chamam a atenção. Um tipo de restaurante e bar mais rudimentar, sua reputação consiste na qualidade e abundancia dos pratos. Nesses lugares, a comida é bem ‘arroz e feijão’ argentino de primeira, os preços são amigáveis e os clientes são chamados pelo nome.

Quem caminha pelas ruas empedradas do bairro também precisa experimentar o choripan, (chorizo + pan) sanduíche de pão com linguiça de porco e molho chimichurri. Geralmente vendido na rua ou em bares antigos e mais precários, o choripan é uma das comidas típicas mais populares da cidade e San Telmo é o melhor lugar para experimentá-lo na sua forma mais original. Uma mordida seguida por um gole de Quilmes, a cerveja porteña, é o suficiente para se apaixonar pela iguaria.

Aberto de segunda a domingo, o Mercado de San Telmo deve ser um dos únicos locais de Buenos Aires em que o espírito dos primeiros mercados instalados na cidade foi conservado. Inaugurado em 1897 para abastecer a população com a chegada dos imigrantes vindos do Velho Continente, o edifício de fachada tipicamente italiana e interiores amplos ainda mantém a estrutura interna original com vigas, arcos e colunas de metal e uma cúpula no centro. Visitá-lo é se aventurar num tempo que lembra a Buenos Aires de antes. Fazer as compras do dia, buscar algum tempero exótico ou simplesmente passear entre os postos de discos, louças ou brinquedos antigos é uma experiência eclética, que absorve o melhor de cada item para criar uma nova combinação recheada de leveza e história.

A seis quadras da icônica Plaza de Mayo, uma estátua causa alvoroço. Com vestido verde e cabelos pretos lisos, é a Mafalda quem manda na esquina das calles Chile e Defensa, em San Telmo. Criada em setembro de 1964 na revista de humor Primera Plana, a garotinha contestadora de apenas seis anos dos cartoons simboliza ainda hoje a genuína busca pelos direitos humanos e por valores de liberdade, justiça e paz.  A escultura, em tamanho real, fica em frente ao número 371 da Calle Chile, endereço do “pai” da personagem durante os anos 1960, o cartunista Quino – Joaquín Salvador Lavado Tejón.

Sentada em um banco, Mafalda atrai olhares e posa para fotos de centenas de turistas do mundo todo que foram seduzidos por seus atemporais questionamentos e aguçada perspicácia. Em 2014, a personagem completou 50 anos e ganhou a companhia de dois amigos da tira em quadrinhos: Susanita e Manolito. Mafalda pode ser o ponto de partida para explorar também o fértil universo dos quadrinhos argentinos nas ruas de Buenos Aires, como o roteiro Paseo de la Historieta, criado em 2009, quando foi inaugurada a estátua da garotinha de Quino. O percurso passa por 15 esculturas de personagens e termina no Museu do Humor, em Puerto Madero, onde os visitantes podem descobrir quem são os personagens que os guiaram até ali e porque são tão importantes na cultura popular do país.

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Conhecer San Telmo e não comprar um penduricalho é quase uma afronta – e essa experiência tem que ser vivida no fim de semana, quando a Feira de San Telmo rouba a cena da cidade. À primeira vista, o grande movimento assusta e a quantidade infinita de cacarecos faz questionar a utilidade do renomado evento, que acontece todos os domingos há 46 anos.

Além das muitas barraquinhas com bugigangas, a Feira abriga artistas locais de todos os gêneros, como dançarinos, mímicos, músicos e aventureiros vestidos de pirata, Charles Chaplin, Carlos Gardel, Madona, Super Homem e por aí vai. São mais de 10 mil visitantes por semana, que vão em busca de diversão e uma viagem de volta ao passado nas 270 barracas montadas na Plaza Dorrego – na esquina da Calle Humberto com a Calle Defensa.

Para participar do gigante museu a céu aberto, o empresário ou artesão local precisa expor produtos fabricados até os anos 70. E assim fica difícil escolher uma lembrança para levar para casa em meio tantas opções de quadros, discos, placas, pôsteres, relógios, vestimentas, acessórios, móveis, objetos de decoração, luminárias, talheres, xícaras e outros utensílios de cozinha. Percorrer o um quilometro da feira é sentir saudade de um tempo que nem vivemos, mas que deixou profundas marcas na cultura e história porteñas.

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