Rebeldes com causa
Sociedade

Rebeldes com causa

Conheça os jovens que tiraram o sono do governador Geraldo Alckmin; o que pensam, sonham, leem e o que aprenderam com as ocupações das escolas

em 22/12/2015 • 21h00
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Alunos que ainda resistem e ocupam a escola estadual Fernão Dias Paes, em Pinheiros (zona oeste de SP), escutam palavras de apoio de quem passa em frente ao local, ainda repleto de cartazes de protesto. “Parabéns pelo que vocês estão fazendo, continuem assim”. Outros, mais céticos, perguntam o que eles ainda estão fazendo ali “se já conseguiram o que queriam”.

Esses estudantes, porém, ainda não conseguiram o que queriam. Eles exigem mais do que apenas a suspensão temporária de uma reorganização escolar mal explicada.

“O que conquistamos até aqui é muito valioso, mas queremos uma reforma profunda que realmente traga qualidade ao ensino sucateado que o Estado oferece. Isso deve ser discutido com a sociedade. Queremos uma educação que forme seres pensantes. O governo precisa entender que educação não é gasto e sim investimento”, afirma Heudes Cássio Oliveira, 18 anos, aluno do 3º ano do ensino médio, do Fernão Dias – colégio que chegou a ser cercado, ao longo de vários dias, por uma tropa de cem policiais que se revezava em turnos para intimidar e impedir a entrada de novos manifestantes. Virou o símbolo da luta dos estudantes contra a reorganização escolar.

Eles não pretendem sair da Fernão Dias, ao menos por enquanto. Das 22 escolas que ainda estão ocupadas, algumas devem esvaziar nos próximos dias com o Natal e o Ano Novo, mas os estudantes prometem mais mobilização para 2016. A ideia é fazer um grande encontro estadual dos secundaristas para organizar as demandas, como a criação de grêmios, a gestão democrática das escolas e a redução do número de alunos por sala (leia mais aqui).

‎Se, por um lado, esses jovens mostraram para a sociedade que um movimento pode ser horizontal, democrático e organizado, por outro eles próprios aprenderam com a ocupação das escolas. Muitos começaram a ler jornais depois do episódio, se politizaram e aprenderam a questionar. Tiveram uma aula prática de cidadania – ironicamente, fora de sala de aula.

Heudes dorme na escola desde o dia 9 de novembro, primeiro dia da ocupação, e está mais maduro, mas sem ter noção plena da transformação histórica do qual participou ativamente nessas últimas semanas.

O aluno secundarista, que mora em Embu das Artes (Grande SP), está lendo “Capitães de Areia”, obra de Jorge Amado que conta a história de adolescentes abandonados em Salvador na década de 30, que encontram na rua a lealdade em grupo e uma maturidade prematura. “Esse livro tem muito a ver com nosso movimento. Só que eles estavam lutando para sobreviver e, nós, por uma educação libertária, transformadora”.

Menos de um mês depois do início das ocupações às escolas contra a reorganização escolar imposta pelo governo do Estado, alunos da rede estadual de ensino, como Heudes, derrubaram o intransigente secretário de Educação, Herman Voorwald, e tiraram muitas noites de sono do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), que ainda sonha ser presidente do Brasil.

Ao contrário do título original do filme “Juventude Transviada” (Rebel without a cause), de 1955, em que estrela o rebelde James Dean, esses jovens mostraram que tinham, sim, motivos para estarem revoltados. A reorganização escolar fecharia 93 escolas do Estado e iria remanejar 311 mil alunos, que seriam organizados por ciclos. Esses adolescentes buscaram, e ainda buscam, transformar seu futuro.

Conforme os dias de novembro passaram, cada vez mais escolas foram ocupadas e o número de unidades em protesto ultrapassou 200, segundo a Apeoesp (sindicato dos professores estaduais).

Mesmo com esse clamor dos alunos e de alguns professores mais engajados, o Estado (que jurava que estar aberto ao diálogo) não os escutou e seguiu com reorganização escolar, que foi decretada oficialmente no dia 30 de novembro e publicada na edição do dia seguinte do “Diário Oficial”.

Só que essa história viraria de pernas para o ar ao longo dos quatro dias seguintes. Com ações organizadas, alunos de várias escolas ocupadas se reuniram em resposta à oficialização da reorganização escolar: levaram sua insatisfação para além dos muros das escolas e saíram às ruas da capital financeira do país.

No primeiro protesto, os estudantes usaram suas carteiras da escola e montaram uma sala de aula em um dos cruzamentos mais movimentados da capital paulista, avenida Faria Lima com a Rebouças. O trânsito travou na hora do pico da manhã, formando longas filas de ônibus e carros parados ao longo de quilômetros, a perder de vista.

“Escolhemos essa região da cidade, porque é uma área nobre e por onde passam os políticos que estavam mudando nossas vidas”, disse à época Allekxander Henrike Buniak, 21 anos, aluno do 2º ano do ensino médio do Fernão Dias.

A tensão aumentou e a Polícia Militar passou a agir com violência contra os alunos durante os protestos, jogando bombas de efeito moral e até batendo com cacetetes.

Allekxander foi um dos que apanhou da PM. “A polícia me reconheceu porque eu já tinha aparecido na televisão. Um deles me abordou e, quando fui tentar ver o nome dele na farda, ele começou a me dar socos e chutes. Apanhei com cacetete também. Depois, entraram na viatura e foram embora”, disse.

‎Nos protestos que fecharam a avenida Nove de Julho, policiais à paisana se misturaram em meio aos estudantes, enquanto os policiais fardados atacavam alunos. Moradores dos prédios ao redor, vendo a cena, gritavam que a PM era covarde.

As cenas que se viram foram de truculência, em que policiais encorpados davam “gravatas” em alunos magricelas e desarmados, incluindo garotas. “A polícia é opressora”, analisa Allekxander.

No dia seguinte, questionado sobre a violência contra os estudantes, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, justificou a ação policial “para garantir o direito de ir e vir” e disse que é “normal” policiais infiltrados dentro de manifestações, sem se identificar.

O cenário de guerra lembrou os duros tempos da ditadura militar. Mas os alunos não arredaram o pé das ruas. Mais avenidas de grande circulação foram travadas por eles, causando a revolta de alguns motoristas, que saíram de seus carros para repreender os manifestantes por conta própria.

Estudante do 2º ano do ensino médio no Fernão Dias Paes, Mariana Martins, 16 anos, levou um soco na cara de um desses motoristas revoltados. A cena foi registrada pela imprensa. “A população ficou revoltada porque paramos o trânsito. Motoristas e alguns motoqueiros chutaram os estudantes e esse me deu um soco na cara. Quando ele viu que eu era mulher, me socou de novo, no peito. Fiquei com raiva. É o cúmulo do individualismo. Depois esses motoristas partiram para cima de outras meninas. Eu ainda tenho 1,80 m de altura e me defendi, mas as outras estavam indefesas. Sei que causamos transtorno pela cidade, mas educação é um assunto de todos nós”, conclui.

Na manhã do dia 4 de dezembro, mais um ato violento da PM contra estudantes que fecharam o cruzamento da avenida Paulista com a Consolação, na região central. Em menos de uma hora, a polícia conseguiu liberar as ruas.

Mas os estudantes perceberam que havia uma movimentação diferente naquele momento, e seguiram para a Secretaria de Estado da Educação, na praça da República. Por volta das 12h30, a presidente da Apeoesp, Maria Izabel Noronha, a Bebel, anunciou aos estudantes que se aglomeravam ali que a reorganização escolar tinha sido suspensa.

Gritos de euforia e abraços entusiasmados tomaram conta da avenida Ipiranga, onde fica a Secretaria. Mas minutos depois, incrédulos, os estudantes e líderes estudantis seguiram para o Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi (zona sul de SP) para acompanhar o pronunciamento marcado às pressas do governador, Geraldo Alckmin, que falou por apenas três minutos ao declarar suspensa, em 2016, a reorganização escolar, “para explicar sobre o projeto um a um”.

No fim do pronunciamento, Alckmin leu uma frase do papa Francisco: “Sempre que perguntado entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma solução sempre possível, o diálogo.” E saiu, sem falar mais nada. Minutos depois, o secretário estadual de Educação, Herman Voorwald, pediu demissão.

A suspensão temporária da reorganização escolar não tranquilizou os estudantes, que continuaram a fazer protestos. Mas as escolas, gradualmente, foram sendo esvaziadas. A Polícia Militar e a Secretaria de Estado da Educação foram procurados para se posicionarem diante das críticas dos estudantes, mas não se manifestaram até o fechamento desta edição.

Alguns alunos ainda resistem nas escolas ocupadas, como a Fernão Dias. O que se vê lá dentro é um grupo organizado, em que um cozinha e o outro lava a louça; há uma equipe de limpeza, enquanto outros fazem reparos. Alguns vizinhos colaboram e levam comida, colchões e cobertores. Os alunos descobriram que ali há um laboratório de ciência e um teatro, nunca usados antes. Pelo menos não por eles. Eles consertaram os chuveiros dos vestiários e realizam pequenos reparos. “Vamos devolver a escola melhor do que quando tínhamos aula’, garantiu Heudes.

Nas horas vagas, eles tocam violão e gaita. No aparelho de CD, rola todos os tipos de música, de funk, samba, rock a Beethoven, tudo na maior democracia entre os cerca de 20 estudantes que ainda estão acampados.

Esses alunos estão lendo livros de autores como Jorge Amado e Chico Buarque. Apesar de considerarem uma parte da imprensa manipuladora, leem jornais dos mais variados – e revistas também. “Menos a ‘Veja’ que é muito cheia de mimimi”, disse Mariana.

Esses jovens amadureceram em pouco tempo, já falam de forma mais articulada e embasada. Não são “arruaceiros” como muitos tentaram pregar. Continuam com as brincadeiras típicas da idade, mas com uma consciência política aprofundada.

‎Os alunos da rede estadual de ensino não fazem ideia, ainda, da dimensão das mudanças históricas que eles promoveram desde o início de novembro, quando começaram a ocupar as escolas da rede para protestar contra uma reorganização no ensino enfiado goela abaixo por um governo que diz estar aberto ao diálogo.

Esses jovens chamaram a atenção da sociedade no país inteiro para uma causa ainda desvalorizada por grande parte dos políticos do Brasil, a educação. Os estudantes de hoje conseguiram fazer um governo intransigente recuar. Nem mesmo eles acreditavam, lá no início do movimento, que iriam ter tantas conquistas e mudar tantas peças no xadrez político.

Eles já não são mais os mesmos, nós também não. A mudança nasceu do inconformismo desses jovens que souberam se organizar e deram uma aula de cidadania e democracia a todo o país. No final das contas, quem aprendeu fomos todos nós.

‘Aprendi a compartilhar e me desapegar do material’

Mariana Martins, 16 anos

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O sonho de Mariana Martins, 16 anos, é se tornar médica, com especialidade em cardiologia, e adotar 15 filhos.

“Quero ser médica para dar vida nova às pessoas que não podem lutar por si. E se for bem sucedida, poderei adotar muitos filhos e dar uma boa condição de vida a eles”.

Mariana é uma menina doce, de leve timidez, que assumiu sua homossexualidade para a família há apenas um ano. “Meu ‘paidrasto’ disse que tinha percebido desde que eu tinha seis anos. Meu pai fala que sabia desde que nasci”, conta.

Apesar da pouca idade, ela conta que já teve relacionamentos longos. “Namorei uma menina por um ano e seis meses, mas estou solteira há uns cinco meses. Agora estou de boa, não tenho a necessidade de ter alguém. Estou ocupada demais com a ocupação”.

A adolescente, que passou a ler jornais após as ocupações, ganhou o apoio da mãe ao longo das manifestações dos estudantes contra a reorganização escolar. “Minha relação com meus pais melhorou, porque eles perceberam que não é oba-oba, que estamos lutando por uma causa séria e maior. Mas minha mãe me apoiou, ainda mais depois da agressão do motorista, que me deu um soco na cara”.

Mariana garante que as últimas semanas transformaram sua vida. “Antes, eu me preocupava em ter um tênis de marca caro, mesmo que meus pais ficassem sem calçado. Agora, prefiro ter um mais simples e que meus pais também consigam comprar um para eles. Aprendi a compartilhar e me desapegar do material”.

‘Não é fácil, mas é a escola da vida’

Allekxander Henrike Buniak, 21 anos

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Estudante do 2º ano do ensino médio, Allekxander Henrike Buniak gosta de ser chamado de Lemão – e não de Alemão. “Alemão tem muitos, eu sou especial, diferente”. Apesar do apelido, o estudante secundarista nasceu na Itália. Lemão, aos 21 anos, já tem quatro filhos, com três garotas diferentes: as gêmeas Thaiane e Isadora, 6; Stefani, 4; e Brian, 2. O nome de cada um está tatuado no seu corpo.

“Não vejo os meus filhos desde o início das ocupações. Abri mão da minha vida pessoal. Mas sei que esse sacrifício é válido por uma causa maior, que é a educação. A mesma educação que logo meus filhos vão usufruir também. E, espero, que seja melhor do que é hoje”.

O estudante dorme, desde o dia 9 de novembro, em uma barraca de camping improvisada na entrada do colégio. Ali, dentro do pequeno espaço, ele guarda seu skate, sua mochila e a carta carinhosa de uma amiga que teve que deixar a ocupação.

Aliás, Lemão tem dormido pouco nessas últimas semanas. E, apesar de toda a doçura e energia que tem ao longo do dia para lidar com as questões da escola, tem o ar cansado, mas satisfeito por fazer parte “de um projeto que vai promover mais qualidade de ensino.”

Quando teve as primeiras filhas, aos 15 anos, Lemão teve que interromper os estudos e começou a trabalhar. Ele, que desenha bem, aprendeu a arte de tatuar e, com isso, ganha a vida até hoje.

Sobre a luta dele e de seus colegas ao longo das últimas semanas para derrubar a reorganização escolar, Lemão diz que todos mudaram. “Aprendemos muito sobre política, filosofia, ciências sociais. Vamos levar esse conhecimento para o resto de nossas vidas, coisas que talvez não aprendêssemos somente em sala de aula. Não é fácil, mas é a escola da vida”.

Ele conta que ganhou uma nova família dentro da Fernão. “Os mais novos me chamam de pai, e às vezes pago Coca-Cola para eles. É um barato”.

Para relaxar nas poucas horas vagas eu lhe restam, Lemão gosta de escutar sertanejo. “Meu favorito é o Cristiano Araújo”. Ele também escuta funk, mas não curte rock.

O jovem estudante se emociona ao falar da ajuda da população e dos vizinhos da escola, que trazem de tudo, desde comida a colchão e toalhas. “A maioria apoia nossa causa”.

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Aprendemos o poder que temos em nossas mãos

Heudes Cássio Oliveira, 21 anos

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O trajeto entre Embu das Artes, cidade da Grande São Paulo, e a Escola Estadual Fernão Dias leva uma hora e meia. Heudes Cássio Oliveira, 18 anos, fazia esse caminho todos os dias até a ocupação dos estudantes no dia 9 de novembro, quando os protestos contra a reorganização escolar tiveram início.

Um dos líderes do movimento, Heudes sempre falou com a imprensa e intermediava a comunicação com os jornalistas por meio da grade da escola, já que não podia sair, enquanto a Polícia Militar cercava o local, com mais de cem soldados.

“Tive que ouvir várias da PM, enquanto estávamos dentro da escola. Coisas do tipo ‘Vocês vão ver quando entrarmos aí’. Eles eram bem intimidadores, a presença da PM já é opressiva. Logo eles, que provavelmente estudaram em escolas públicas também”.

Bem articulado e idealista, o jovem sonha ser advogado para ajudar em causas sociais. Apesar de não ser favorável à presidente da República, Dilma Rousseff, Heudes é contra o impeachment. “É golpe”.

A mãe dele trabalha doze horas por dia em um bar que tem em Embu das Artes, e ela apoia a causa do filho, que deixou de ajudar no sustento da família para lutar pela causa da Educação. Já o pai, que trabalha como porteiro, “não liga muito”.

“Minha mãe é uma batalhadora e, mesmo eu deixando de ajuda-la no ar, ela me apoia. Já meu pai, é mais conformado com a vida. Para ele ter um emprego e um carro já basta. Eu sou inconformado, por isso luto e resisto”.

E ele garante que se o governo estadual voltar a falar em reorganização escolar, os estudantes vão voltar a se manifestar. “Aprendemos o poder que temos em nossas mãos. Percebemos o quanto podemos ser efetivos se nos organizarmos”.

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