Patagônia: quando o fim do mundo te convida a recomeçar
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Quando o fim do mundo te convida a recomeçar

Na Patagônia chilena, cidade teve sua época de ouro quando era a principal rota de cruzamento entre os dois oceanos e hoje fascina turistas com sua capacidade de mostrar a grandeza do mundo

em 18/02/2017 • 13h30
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Os mapas escolares, que nada mais são do que uma espécie de organograma do planeta, nos ensinaram que o mundo, apesar de redondo, tem um fim e um começo. Se colocarmos o foco no lado ocidental, vemos que ele começa pelos Estados Unidos e pela Europa, ao norte e ao centro, e termina, em ponta, nos limites ao sul da África e da América do Sul. Lugares que (assim aprendemos) vêm depois, que ficam para o final.

Quem chega à cidade chilena de Punta Arenas, na região mais austral do continente americano, parece procurar exatamente isso: o fim. Eu, que a visitei pela primeira vez sem planos além de participar de um festival de cinema ambiental, ousei pensar se aquele não seria um começo. Tudo o que eu vi nessa viagem de cinco dias ao Chile, em plena Patagônia e ao lado do mítico estreito de Magalhães, me fez pensar que sim.

Levar a etiqueta de “fim do mundo” é algo controverso em Punta Arenas, que fica a três horas e meia de voo de Santiago. De um lado, não faltam placas de “bem-vindo ao fim do mundo”, mostrando ao turista quão longe ele chegou, como uma peça de marketing. De outro, não falta também o puntarenense que questione quem embarca nessa história: “Quem disse que aqui é o fim?”. Depende de como e para onde se olhe. Entre uma coisa e outra, preferi lembrar que o mundo é redondo.

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A experiência começou com o impacto de encontrar uma natureza selvagem e uma geografia muito diferentes às do meu costume. Em Punta Arenas, ao lado do estreito que leva o nome do português Fernão de Magalhães, que o navegou em 1520, descobrindo o único passo natural do oceano Atlântico ao Pacífico, o meio ambiente é uma surpresa. O clima é seco, realmente frio no inverno, frio (com sol e luz que consolam) no verão, com ventos quase sempre fortes, garoas repentinas e céu de repente azul outra vez.

A paisagem inclui no horizonte montanhas nevadas e a visão de longe da Terra do Fogo, a ilha dividida por Argentina e Chile – que fica a 1.000 quilômetros de distância de Punta Arenas pelo trajeto mais curto de ferry boat e representa o último pedaço de América antes de se chegar à Antártica. E a fauna local é um espetáculo à parte de pinguins, leões marinhos, baleias e pássaros típicos de regiões frias, que a maioria dos brasileiros só viu nos filmes.

Esse clima que pode ser inóspito estava quente no final de novembro, quando viajei, e bem agradável. Enquanto as pessoas aproveitavam ao ar livre mais de 18 horas de luz (o sol caminha nessa época para sua máxima exposição em 21 de dezembro, início do verão), sob um pico de quase 22 graus de temperatura, os jornais locais falavam sobre os riscos do calor inusual. Sobretudo nas regiões extremas, o aquecimento global deixou de ser alerta só de cientistas.

foto por: Marcelo Noria/Proyecto Nodo Turismo Tierra del Fuego
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Tierra del Fuego

‎Por mais divertido e relaxante que seja caminhar de camiseta em Punta Arenas, a novidade causa susto, principalmente às portas da Antártica – a maior reserva mundial de água doce e de água salgada do planeta, para onde se destinam os cruzeiros que passam pelos dois portos da cidade (ou saem deles). Tive sorte de não sentir na pele os famosos ventos de 140, 150 quilômetros por hora que fazem a fama da região. Para não sucumbir a eles, as construções locais são em geral baixas – e, por mais que chova, ninguém nunca carrega guarda-chuva. Nessa hora, é imprescindível uma boa jaqueta e um par de botas resistentes.

Indo além da geografia, dá rapidamente para perceber que a região de Magallanes – o estado chileno cuja capital é Punta Arenas, a maior cidade, com 120.000 habitantes – respira história.

Fundada em 1848, foi o principal porto da rota Atlântico-Pacífico pelo estreito, antes da criação do Canal do Panamá. As riquezas daquela época ainda são visíveis: basta olhar para os palacetes ao longo da Avenida Colón ou ao redor da Plaza Muñoz Gamero, que é a principal.

Antes de sua época de ouro, como porto das expedições polares entre 1890 e 1910, Punta Arenas era destino carcerário. Para lá, ao distante “fim do mundo”, eram enviados prisioneiros que jamais fugiriam tendo que nadar em águas geladas (ou morreriam tentando). Por volta de 1840, a cidade também registrou os rastros de ninguém menos que o britânico Charles Darwin (1809-1882), cujas expedições científicas passaram pela Patagônia antes de resultarem na famosa teoria de evolução das espécies.

Em sua homenagem, há cruzeiros patagônicos que saem de Punta Arenas com destino ao mítico Cabo dos Hornos e à baía Wulaia, ambos no arquipélago da Terra do Fogo, aos glaciares e aos pinguins da Ilha Magdalena. Entre eles eu caminhei (pensando com pesar nos aquários brasileiros que exibem esses animais tão longe de seu habitat), depois de um trajeto de barco de uns 45 minutos que na volta inclui uma parada em outra ilha, a Marta, para ver de longe mais pinguins e ainda leões marinhos. Outro cruzeiro famoso é o Stella Australis, que percorre os canais e fiordes da região fazendo também várias paradas.

A cidade tem muitos descendentes de croatas, espanhóis e ingleses, os principais grupos que imigraram para lá até os anos 1930, antes da Segunda Guerra Mundial. A arquitetura do lugar de certa maneira conversa com essas heranças, lembrando o estilo das casas do norte europeu – muitas com fachada de madeira (ou que imitam madeira) e todas com um ar pacífico que faz jus a essas cidadezinhas do mundo onde o tempo passa mais devagar.

Mas se engana quem pensa que Punta Arenas é sempre pacata. Em 1984, ela foi palco de uma das primeiras manifestações públicas contra a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), e o evento ficou conhecido como Puntarenazo.

Na praça principal, cerca de 600 pessoas, segundo estimativas, se reuniram contra o próprio Pinochet, ali presente, gritando “assassino” e “vai cair, vai cair”. Terminaram reprimidos pela polícia, Pinochet atingido por um coelho morto, e o protesto entrou para a história nacional.

Vale lembrar que nessa mesma praça, a já citada Muñoz Gamero, fica o monumento mais popular da cidade, inaugurado em 1920 em homenagem aos 400 anos da travessia de Magalhães pelo estreito que leva seu nome. O navegador português é o personagem central da estátua coletiva, mas quem a visita faz questão de tocar no pé de um indígena selknam – um dos povos originários da região, hoje praticamente dizimados. Os navegantes antigos acreditavam que quem tocasse nele retornaria em segurança ao porto, e o hábito foi passado adiante.

O bom de chegar ao extremo sul é perceber que o mundo é grande – e depois ainda dá a volta para continuar. E com essa grandeza vêm estilos muito diferentes de viver a vida.

foto por: Marcelo Noria/Proyecto Nodo Turismo Tierra del Fue
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Em Punta Arenas, dá para se cansar de fazer turismo, inclusive viajando para Torres del Paine (foto acima), considerado um dos parques nacionais mais impressionantes do Chile e do mundo, que fica a três horas e meia em ônibus.

Mas dá também para sentir o dia passar com prazer (ao menos no verão), sem necessidade de planos excepcionais. Uma opção é caminhar à beira-mar, pela avenida Costanera, remodelada há 10 anos – onde dá para se locomover também em bicicleta. Na própria avenida, há opções de aluguel de bikes por hora.

Da Costanera, é muito fácil seguir para o centro da cidade, de onde o famoso Cemitério Municipal Sara Braun fica a 10 ou 15 minutos a pé. Ele é considerado um dos mais bonitos do mundo pelas centenas de ciprestes podados em forma de cone e pelos memoriais decorados e mausoléus dispostos quase na forma de um labirinto. Para quem se concentra nisso, a visita ­– ainda que dispensável, a meu ver – pode ser interessante.

O que eu jamais deixaria de fazer, voltando a Punta Arenas, é olhar a cidade a partir do mirador do Cerro de la Cruz – de onde se vê os tetos coloridos das casas decorando a paisagem e ao pé do qual há um simpático restaurante de comida típica chilena (que serve a famosa centolla, um caranguejo gigante). Depois, iria correndo ao quiosco Roca, um bar no centro que oferece o “verdadeiro café da manhã magallánico”, segundo anuncia uma placa disposta na entrada, o dia todo.

É um local simples, barato, celebrado por guias de gastronomia chilenos e que – o aval de todos os avais – vive cheio de locais e de turistas em busca de pão com uma espécie de patê de linguiça, acompanhado de leite batido com banana para tomar. Em Punta Arenas e em qualquer lugar do mundo, nada melhor que um autêntico programa local para perceber que lá onde termina o seu mundo, começa o do outro. Ainda bem.‎

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