Por que a culinária peruana é a melhor da América Latina?
Cultura

Por que o Peru tem a melhor cozinha latina?

Ingredientes, mistura cultural e proximidade com produtores são segredos da culinária peruana, que olha para si mesma - e conquista o mundo!

em 27/01/2016 • 00h43
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Os restaurantes peruanos só olhavam para o mar, mas, de 15 anos para cá, eles começaram a valorizar e a pesquisar também a diversidade de ingredientes dos Andes e da Amazônia. É assim que o peruano Virgílio Martinez, 38 – chef do restaurante Central, em Lima, considerado o melhor da América Latina e o 4º do mundo – começa a esboçar uma explicação para o encantamento que a gastronomia peruana causa no mundo. Mas as razões são várias, pois envolvem também o trabalho de chefs, pesquisadores e de milhares de agricultores anônimos com suas tradições milenares.

Além de ter o melhor restaurante latino-americano de acordo com a revista britânica “Restaurant”, Martinez comanda a Mater Iniciativa, que pesquisa e vasculha ingredientes nativos peruanos. A sua equipe faz de quatro a sete viagens por mês revirando o Peru atrás de sabores autênticos, o que permite ao Central oferecer, por exemplo, pratos feitos com bivalves e corais (encontrados a dez metros de altitude no litoral) a até frutos de cherimoya (a mais de 800 metros em bosques).

“Nossa cozinha não seria o que é sem os produtos que possuímos. São muito valiosos. A função de um cozinheiro, em qualquer cidade do mundo, é fazer essa pequena mudança, dar valor ao que é seu. Em um país tão rico de diversidade, é ainda mais importante olhar para os pequenos produtores”, analisa.

Se a cozinha peruana é destaque no mundo, isso também se deve, em parte, à estabilidade recente do país – que vai na contramão do Brasil e deve ter alcançado um crescimento econômico de 2,4% em 2015, de acordo com projeção do FMI. Entre 1980 e 2000, o Peru viveu momentos instáveis, quando sofria atos terroristas e a ditadura de Alberto Fujimori.

Mas, mesmo nesses anos difíceis, peruanos resistiram e mantiveram vivo um tesouro nacional – sua cozinha. Um dos primeiros passos foi dado em 1986 com o jornalista e químico Bernardo Roca Rey. Ele foi um dos pioneiros na proposta de resgatar a cultura nativa da região dos Andes com pratos simples para restaurantes de alta gastronomia, porém com melhores técnicas e apresentação.

É o que hoje é chamado de cozinha novoandina, que teve um dos primeiros e principais expoentes na figura do chef Gastón Acurio, que em 1994 abriu seu famoso restaurante Astrid & Gastón, em Lima (considerado o 14º melhor do mundo, de acordo com a “Restaurant”). “Cozinhar é contas histórias por meio dos pratos”, esse é o lema do chef.

Acurio é um grande contador de histórias, não apenas pelos mais de 30 restaurantes que têm a sua digital ao redor do mundo, mas também pelo programa de televisão que comandou, em que visitava os huariques, pequenos restaurantes populares do país. Eles vendem refeições fartas como fígado frito com yuca (mandioca), antiucho (corações de boi marinados e feitos na brasa), arroz com mariscos e a carapulca (guisado de batata seca e porco, pimenta ají e especiarias).

Além da variedade de ingredientes, da valorização dos pequenos produtores e da atenção dada à comida popular peruana, o país também organiza uma das maiores feiras gastronômicas do mundo, a Mistura, que reúne mais de 500 mil pessoas. Nesse evento, o Peru celebra ingredientes como as cerca de 8 mil espécies de batatas que crescem nos Andes, o choclo (tipo de milho, com grãos mais claros e maiores), as milhares de receitas de ceviche, o leche de tigre (tradicional acompanhamento do ceviche que pode levar limão, caldo de peixe, pimenta e alho), o maiz chulpe (variedade de milho utilizada para tostar), as mais de 3 mil variedades de quinua e muitos outros alimentos.

Para Martinez, tudo isso mostra que a cozinha é a tradução do que é o Peru. “O Peru tem milhares de anos de um passado natural, orgânico. Vemos isso no legado Inca, na influência espanhola, italiana, japonesa, chinesa… tudo isso se mesclou e criou uma cozinha muito diversa em sabor e em produtos. Outra razão é a biodiversidade, uma natureza impressionante, tanto na costa do Pacífico como nos Andes e na Amazônia. Também somos um país com muita complexidade, com muitos problemas e desigualdades, mas o peruano nunca teve discriminação enquanto comia. A comida dos ricos e dos pobres sempre foi igual, nunca mudou. Os ricos não comiam caviar, comiam os mesmos alimentos que os pobres. Na mesa, éramos todos iguais”, diz.

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Mercado de Pisac, no Vale Sagrado, perto de Cuzco

Para a chef e professora de gastronomia da Universidade Anhembi Morumbi, Graziela Milanese, uma das características únicas do país andino é justamente o privilégio de contar com um aporte muito grande da agricultura nos restaurantes e nas casas das pessoas, fruto de uma proximidade com os pequenos produtores. “Em São Paulo, por exemplo, é difícil encontrar rastreabilidade nos alimentos”, diz.

Os peruanos conhecem os alimentos que usam e desde criança aprendem a cozinhar, continua Milanese, como uma herança milenar. No Brasil, por outro lado, muitas crianças não sabem o que é uma berinjela.

O Peru saiu na frente também porque tem várias instituições de promoção de sua cultura gastronômica. “Todo ano são estimuladas novas tendências da gastronomia no mundo, que nas últimas décadas têm sido mais exóticas, menos industrializadas e mais naturais. O Peru já tinha isso e soube muito bem divulgar”, destaca.

Entidades como a Apega (Sociedad Peruana de Gastronomía) e a PROMPERU (Comisión de Promoción del Perú para la Exportación y el Turismo) têm sido importantes para difundir a gastronomia peruana no mundo, com eventos como o Peru Week (festival gastronômico que aconteceu em dez cidades do Brasil em novembro do ano passado).

Com toda essa fama e divulgação, o país passou a exportar chefs. O peruano Marcos Espinoza, 36, mudou-se para o Brasil em 2009, e hoje é sócio de quatro restaurantes: Taypá (Brasília), Tupac, Lima Restobar e El Chalaco (Rio de Janeiro). “Gostei muito daqui e tive a percepção que a comida peruana seria um sucesso, já que não tinha restaurante com esse estilo de culinária”, lembra.

Em 2010, Espinoza montou o projeto do Taypá, como adepto da cozinha novoandina e com inspirações da cozinha nikkei – uma fusão da japonesa com a peruana. Foi apontado em 2013 como um dos cinco melhores peruanos espalhados pelo mundo, segundo o jornal peruano “El Comercio”.

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O Central, considerado pela revista “Restaurant” no ano passado com o melhor restaurante da América Latina, desbancou o D.O.M. (do chef brasileiro Alex Atala), que caiu no ranking e está na quarta posição; o Maní (da chef brasileira Helena Rizzo), que caiu quatro posições e ficou no 8º lugar.  Já no ranking mundial 50 Best da mesma publicação britânica, o Central está em 4º lugar e o D.O.M em nono. Na lista dos 50 melhores, o Peru tem ainda mais dois estabelecimentos (Astrid y Gastón e Maido).

Para Milanese, a professora de gastronomia, não é correto fazer comparações entre Brasil e Peru na cozinha. “São culturas diferentes e estágios diferentes”, pondera.

Mas a intensa pesquisa peruana por ingredientes e pratos regionais também começou a acontecer no Brasil há cerca de 15 anos – período considerado pequeno para pesquisas acadêmicas mais amplas. Há cozinheiros brasileiros resgatando e divulgando as diversas cozinhas regionais do país, como os chefs Mara Salles, Thiago Castanho, Paulo Machado e Ana Luiza Trajano. “São pesquisadores, que buscam contatos com produtores e comunidades. Temos uma biodiversidade riquíssima ainda a explorar”, afirma.

Martinez, o-primeiro-latino-da-lista, também elogia os profissionais e pesquisadores brasileiros e considera que posições em rankings mudam muito. Para ele, o Brasil vai continuar como referência na gastronomia mundial e talvez possa até ultrapassar o Peru no futuro. “Existem ótimas cozinhas no Brasil, na Turquia, na Tailândia, em Singapura, no Peru, na Colômbia… Hoje em dia ser o líder de uma gastronomia no mundo é uma pressão muito forte. Acho fundamental os brasileiros acreditarem em si mesmos, no que comem, no que sentem, vivem e produzem, que logo o resultado aparece”.

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