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Pense no Haiti, torça pelo Haiti

Time Pérolas Negras, composto por jogadores haitianos, surpreendeu na Copinha SP e agora tenta patrocínio para continuar no Brasil

em 19/01/2016 • 22h00
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Com apenas a iluminação natural de um dia cinza e chuvoso, meninos de 15 a 19 anos se reúnem em um canto no imenso salão de um casarão colonial, em torno de uma TV ligada em uma partida de futebol. A atenção de boa parte deles, entretanto, está voltada para telas bem menores, as dos celulares. Com fones de ouvido, a televisão só serve de pano de fundo.

O cenário, fiel ao retrato da juventude atual, é a Fazenda Quindins, na cidade de Paty do Alferes, região serrana do Rio de Janeiro. O local já teve várias funções. Em 1928, foi transformado no primeiro hotel-fazenda do Estado. Em 2011, se tornou casa de festas. E, no dia 31 de dezembro de 2015, virou residência e centro de treinamento de futebol do Pérolas Negras, time formado por jovens haitianos e mantido pela organização social Viva Rio.

O frio da região ainda causa um certo desconforto aos garotos, acostumados com o calor extremo e a pouca chuva do Haiti. O sonho de fazer carreira no Brasil, entretanto, é mais forte do que as diferenças climáticas. “Vamos nos adaptar”, garante timidamente, em créole, Bebeto Muraille, o garoto que tem nome de jogador brasileiro. Assim como o seu homônimo famoso, o menino de 19 anos é bom de fazer gol. Foi responsável por diminuir o placar na derrota para o Juventus-SP (2 x 1), na Copa São Paulo de Futebol Júnior, em que o time participou como convidado no início de janeiro. “Foi um belo momento para entrar na história no esporte brasileiro”, resume.

O Pérolas Negras foi a sensação do evento, da torcida e da imprensa, que noticiou fortemente a presença do time. Mas os holofotes não parecem perturbar. “É tranquilo dar entrevista”, afirma o volante Jean Louis Anel, de 17 anos, que fala bem o português, e cedeu alguns minutos de seu descanso para conversar mais uma vez com uma jornalista. “Foi uma boa experiência. Fico feliz de ter participado, o campeonato é muito difícil e tem boas oportunidades para fazer testes para grandes times”, explica Anel, que também quer aproveitar seu período no país para cursar Medicina. “Quero poder ajudar as pessoas.”

Embora o Pérolas Negras tenha sofrido três derrotas na Copinha, Rafael Novaes, coordenador-técnico da Academia Pérolas Negras, não esconde a satisfação da campanha no campeonato sub-20. “Acharam que ia ser igual ao Taiti na Copa das Confederações, que perdeu de goleada. Mas não. Apesar de termos sido eliminados, jogamos de igual para igual”, diz orgulhoso.

Fazer bonito em campo era parte fundamental do plano do Viva Rio para os Pérolas Negras. A ideia era aproveitar a vitrine do campeonato para chamar a atenção dos clubes; negociar jogadores; atrair investidores para a manutenção do centro de treinamento em Paty do Alferes; e ainda formar um time misto, de haitianos e brasileiros, para participar da terceira divisão do campeonato carioca. “Queremos deixar todos os meninos encaminhados”, explica o técnico, que aguarda o fruto das negociações.

O bom resultado na Copa São Paulo é fruto de um trabalho de quatro anos da Academia Pérolas Negras no Haiti – que oferece, além de esporte, educação, casa e alimentação para os jovens haitianos – e da disciplina exigida por Rafael. “Sou um cara rígido. Convivo bem com eles, mas gosto de focar no trabalho, senão vira uma bagunça. Tem um tempo para os meninos relaxarem e brincarem. Mas procuro ser um pouco mais sério para tentar passar algumas coisas positivas para eles. E todo lugar que a gente vai, elogiam a disciplina.”

foto por: Vitor Madeira
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Nem sempre foi assim. Alguns chegaram a dar bastante trabalho, nesse sentido, como Elien Gooly, de 16 anos, um dos goleiros do Pérolas Negras. Segundo Rafael, ele sumia para namorar toda vez que voltava para casa – os meninos retornam para as suas famílias aos sábados, se morarem perto, ou nos feriados prolongados, se viverem mais longe. A própria mãe chegou a pedir para darem um jeito no garoto. Cabisbaixo, tímido e com um sorriso de canto de boca, de quem sabe que aprontou, ele confirma a versão contada pelo técnico. “Mas eu percebi que se não melhorasse minha disciplina não ia conseguir seguir em frente”, afirma ele, que sonha em ser como o goleiro espanhol Iker Casillas.

No Haiti, o cotidiano na Academia era bem puxado. Todos dormem por volta de 20h30 e 21h e acordam entre 4h e 5h, por conta do calor muito forte durante o dia e da rede elétrica instável. Às 6h, o time já está treinando. De 8h30 às 13h, os meninos estudam e depois almoçam. O treinamento só recomeça às 17h. Em alguns dias, à noite, ainda fazem curso de línguas, como inglês, francês ou português.

No Brasil, a rotina é um pouco diferente. Como não há tanta necessidade de manter esses horários, acordam um pouco mais tarde, às 8h. A dieta do café-da-manhã no Haiti já era bem balanceada, como a de um bom atleta, e aqui continua parecida. Mas o que chamou a atenção da cozinheira, Iolanda Fortuna, 53 anos e com 35 de experiência na área, é quantidade de fruta que comem. “Adoram.” O almoço também é bem caprichado. “Precisa ver, fazem um pratão”, conta. E, assim como ao clima, já estão se adaptando bem à culinária local. Sábado foi dia da tradicional feijoada. “Muito boa”, comenta Anel.

Iolanda também, em poucas semanas de convívio, já vem criando laços com os meninos. “Já tenho um caderninho, em que anoto todas as palavras em ‘haitiano’ [sic] que me ensinam. E ensino português também. Brincam que sou a mãe branca deles”, assegura. Segundo a cozinheira, ela ainda ensina aos garotos a comer novos pratos. “Outro dia, fiz peixe frito, que nunca tinham comido. Um se arrisca e prova e fala para os outros se é bom.”

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(Da esq. para a dir.) Bebeto, Gooli, Iolanda e Anel

O Viva Rio foi convidado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para atuar no Haiti em 2007, por conta de sua experiência em mediação de conflitos e convivência dentro das favelas. Mas a Academia Pérolas Negras, localizada em Bon Repos, nos arredores da capital Porto Príncipe, só nasceu em 2011, um ano após o terremoto que devastou o Haiti e deixou mais de 200 mil mortos. A ideia era estimular o desenvolvimento social e resgatar a autoestima dos jovens haitianos, por meio do futebol, que também é uma paixão nacional por lá. “O país tem campeonato com três divisões profissionais, mas não tem uma estrutura de base”, explica Rafael.

Diretor-administrativo da Academia na época de sua construção, o arquiteto Baltazar Morgado hoje é assistente de coordenação do Viva Rio e figura importante na história da organização. Viveu quatro anos no Haiti e passou diversas situações de conflito, que ele de conta de forma leve e descontraída, como uma aventura, mas sem diminuir o problema. Como a vez em que teve que tentar proteger um carregamento de arroz da ONU, destinado a doações, de pessoas armadas que queriam roubar os sacos do grão para se alimentar.

Durante a construção da Academia, que começou antes do terremoto e teve que ser interrompida, Baltazar foi responsável pela obra. A instalação ocupa uma área de mais de 10 mil metros quadrados e tem bangalôs para os meninos, área comunitária, academia, piscina, escola e quatro campos de futebol, que deram trabalho para implantar. A água captada do rio era salgada e não era apropriada para irrigar. “Tudo foi feito com muita luta. A grama vinha dos Estados Unidos. Contratamos alguém para fazer, mas não deu muito certo. Para reduzir o custo, comprei um compactador e ia lá compactar. ‘Pápápápá’. Teve um dos campos que o Rafael fez quase sozinho”, garante.

Como a estrutura era enorme, a comida era para um batalhão – e era Baltazar quem comprava tudo e fazia o cardápio antes da chegada de uma nutricionista. “Tinha que respeitar a alimentação deles, mas era feijão com arroz. O feijão era batido, apenas o caldinho, e não tinha farofa, porque eles não comem. E de manhã, todo dia, tinha que ter espaguete, com molho de tomate e muito ketchup.” Para quem acha que o abastecimento no Haiti é complicado, o arquiteto conta que lá é muito melhor do que aqui.  “No supermercado tem de tudo. Com a presença da ONU, tudo é importado. Existe produto da França, dos Estados Unidos, de todo o lugar.”

Seis anos após o terremoto, a situação no Haiti parece estar um pouco mais estável, porém longe do ideal. A insegurança alimentar, gerada por secas e efeitos do El Niño, e um surto de cólera no país, causado pela precariedade do acesso à água potável, ainda preocupam as Nações Unidas. Mesmo assim, o Conselho de Segurança da ONU estuda a saída das tropas de paz do país para outubro de 2016, mês em que está previsto a posse do novo presidente haitiano. O futuro líder do país, contudo, permanece indefinido, após o segundo colocado nas votações, Jude Celestin, alegar fraude e se retirar do segundo turno. (O segundo turno das eleições presidenciais deveria ter ocorrido em 27 de dezembro, mas a oposição haitiana pressionou o presidente, Michel Martelly, para adiá-lo, com o argumento de fraudes eleitorais no primeiro turno. No primeiro turno, em 25 de outubro, Célestin obteve 25,29% dos votos, contra 32,76% do candidato apoiado pelo governo Jovenel Moïse.)

Enquanto a situação política do país não se resolve, o treinamento na Academia Pérolas Negras no Haiti vai continuar, agora, com uma nova filial em Paty do Alferes. Dos 23 jovens jogadores que estão aqui, cerca de 15 devem ficar. Se tudo der certo, por tempo indeterminado.

foto por: Vitor Madeira
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