O mundo mágico do livre brincar 1
Sociedade

O mundo mágico do livre brincar

Inspirado na desescolarização, Criança Butantan propõe a retomada da brincadeira sem amarras, da infância simples, do pé no chão; conheça outros projetos da Morada das Percepções

em 24/03/2017 • 11h45
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Quando a campainha toca, uma criança espia pela brecha inferior da porta até a fundadora do espaço deixar a entrada livre, sorrindo e com os olhos apertados voltados para o sol. A casa apresenta uma arquitetura de contornos antigos, cercada por brinquedos, pinturas nas paredes, percurso de materiais reciclados, lambe-lambes, rede, almofadas e histórias em quadrinhos. O café da manhã acabara de ser servido e é sexta-feira, dia em que a Morada das Percepções, espaço voltado a práticas terapêuticas, acolhimento e manifestações artísticas, realiza o Criança Butantan, que, naquele dezembro de 2016, abraçava oito crianças.

Conduzido pela terapeuta ocupacional Marcela Resende e pelo  arquiteto André Lo Russo, o projeto no bairro Butantã, zona oeste de São Paulo, propõe convivência em comunidade sem amarras, grade de programação ou supervisão constante. As crianças chegam e encontram um aparato de instrumentos para a imaginação. A partir daí, o desenvolvimento das atividades é por conta delas, com o acompanhamento de adultos que as assistem quando necessário e se envolvem se elas se sentirem à vontade para recebê-los. “Você vem e a gente pode construir junto, a gente descobre. Temos o nós, o espaço e a possibilidade de estar de outro jeito”, conta Marcela sobre a explicação dada aos pais curiosos sobre a dinâmica do projeto.

A ideia do Criança Butantã surgiu no segundo semestre de 2016, após uma experiência de colônia de férias da Morada com a Piparia.

Durante o mês de julho, Marcela e André receberam dez crianças das 8h às 17h com atividades na mesma toada do que hoje o projeto oferece: total liberdade e autonomia aos participantes.

“Eu queria muito trabalhar com criança, acho que elas têm um lugar ali, que elas se encontram com a loucura e permitem que essas loucuras vençam estigmas. A Morada precisava ter crianças circulando”, diz.

Com vasta experiência no cuidado de pacientes com transtornos mentais, Marcela trabalhou durante 13 anos em instituições, passando por hospitais psiquiátricos, Caps (Centro de Atenção Psicossocial) e clínica particulares. A crise na saúde pública a deixou desmotivada.

“O sistema de saúde tem sido manejado de um jeito que tem adoecido os profissionais, a saúde está sucateada. Com isso, o SUS fica quase num desmonte, e aí não estava fazendo sentido”, afirma.

O afastamento do trabalho ao qual se dedicara nos últimos anos a levou a fazer atendimentos domiciliares. Na nova dinâmica, a experiência com um jovem de 24 anos, com quem utilizava muito a rua para explorar recursos no processo terapêutico, inspirou Marcela a realizar novas formas de tratamento e vivências até concretizar, há dois anos, a Morada das Percepções.

Atualmente, a Morada das Percepções é incubadora de diversos projetos para pessoas de “0 a 150 anos”, como Marcela ressalta. O Encontro das Percepções, por exemplo, promove debates em torno da prática da Terapia Ocupacional de forma menos engessada, já o Rede Arte (in) Comum mapeia e integra ações de arte e cultura na área da saúde sem passar por instituições. Há ainda um projeto em maturação que promete ser a menina dos olhos de Marcela: a montagem de uma equipe de saúde mental com mulheres para pacientes mulheres. “Talvez a gente não cuide das pessoas, mas seja um lugar de formação para quem cuida delas. Como essas pessoas enxergam a mulher na sociedade? A mulher louca na sociedade?”, questiona a criadora da Morada (veja mais projetos abaixo).

A essência do Criança Butantã é motivar sutilmente a autonomia da criança na construção de sua maturidade. Essa ideia de liberdade, claro, não nasce do nada.  Ainda que os educadores estejam sempre atentos para uma eventual briga entre as crianças ou até mesmo para uma queda no meio da correria, não há broncas − e sim conversa.

Marcela explica que carrega influências teóricas que embasam a supervisão mais observadora e menos interventora: “A gente usa muito a pedagogia do sensível, de Paulo Freire [educador, pedagogo e filósofo pernambucano], e eu tenho uma referência muito grande da desescolarização proposta pela educadora Ana Thomaz. Fui conhecê-la pessoalmente porque fiquei curiosa para saber como é que funciona essa questão das crianças que não estudam, de não investir nas escolas. Como a gente desconstrói isso para construir algo em que realmente acreditamos, que é verdadeiro, que seja força e potência para as crianças na construção de um mundo mais justo, mais humano?”, indaga Marcela

O parceiro André Lo Russo traz a vivência da Piparia, espaço dedicado à arte, partilha com produtores agrícolas e marcenaria, entre outros processos. Além disso, o arquiteto também participou de uma iniciativa com outros educadores para brincar com crianças nas praças da cidade.

'Essas crianças sabem o que querem, argumentam, chegam nos lugares e dá para ver uma certa diferença de quem frequenta a escola formal. Aqui só há pequenos limites, de perigo maior. Só nessas horas a gente intervém', afirma.

Como aconteceu naquela sexta-feira de dezembro. Um garotinho com menos de quatro anos manipulava um pedaço de ferro que encontrou em um dos corredores da parte externa da casa. Pegou, mexeu e mostrou para André, ao que o educador falou: “É perigoso, mas pode pegar”. Marcela chegou segundos depois, viu a tentativa de brincadeira e perguntou calmamente: “É um pouco pesado, né?”. Logo em seguida a criança soltou o ferro e foi brincar com André no percurso de objetos reciclados.

Assim como na situação do ferro, outras também já necessitaram de uma intervenção à la Criança Butantã. Marcela relembra um acontecimento na colônia de férias, quando Mônica, uma angolana refugiada e negra, chegou com dois amigos negros à Morada das Percepções para trazer sua experiência. No entanto, os participantes não queriam se aproximar deles. Marcela compreendeu que ali havia um caso de racismo que precisava ser debatido. “Um deles tentou brincar com uma das crianças, que saiu chorando, falando para a mãe que não queria ser tocado por ele. Pensei, chamei a Mônica e falei que eles iriam coordenar uma oficina, que foi a pintura da parede. De repente todo mundo estava pintando. Foi uma situação muito constrangedora e eu levei isso para os pais. Perguntei: ‘Ninguém aqui tem um amigo negro?’ Não, não tinha”, conta.

A alimentação saudável também é uma das causas levantadas pela Criança Butantã. O cardápio do almoço é sempre vegetariano. Assim, ao consumir verduras e legumes muitas vezes não postos à mesa no dia a dia, o paladar e o contato da criança com alimentos naturais são ampliados.

A diretora de cena Carla Meireles é mãe de Violeta e Bárbara e também vai à Morada às sextas-feiras para auxiliar na cozinha ao lado de Juliana Maschietto. Foram servidas abóbora moranga recheada com lentilha, tortilha, salada, arroz integral e jabuticaba de sobremesa. Segundo Carla, a proposta vegetariana é uma forma de também mostrar aos pais as inúmeras possibilidades de legumes e verduras: “Às vezes a criança não come porque o pai não conhece outro jeito de fazer. A ideia é aproveitar que o projeto tem pais e filhos e apresentar novos jeitos de usar o legume”, diz Carla.

Algumas sextas-feiras também contam com as crianças na preparação do almoço, seja para separar as bolinhas do nhoque ou os espaguetes de legumes.

Neste ano, o Criança Butantan está funcionando em parceria com o projeto Pé de Baraúna, durante os meses do outono (veja mais informações abaixo).

Quando a tarde daquela sexta inicia e Marcela vai me mostrar fotos da época em que o espaço estava sendo montado, lê alguns versos pintados pelo poeta Felipe Blanco na parede da primeira sede da Morada: “Enquanto existir alguém talhando em qualquer superfície que se entenda por linguagem, vai existir poesia. Tire as tintas de um artista e tranque-o em um quarto com telas em branco. Em questão de dias merda vira tinta e aí você percebe que não é o meio e a mensagem, é só você querendo dizer que qualquer manifestação de vida é poema”. E emenda com um sotaque forte nos erres: “A necessidade de criar do homem é inerente, então ele vai descobrir o que fazer com o nada. Acho que a Morada é isso. Eu tenho descoberto todas as potências possíveis com as parcerias. Sozinha eu não faço nada, mas junto com essas pessoas, tenho certeza de que vou longe”, diz Marcela.

CONHEÇA OS PROJETOS DA MORADA DAS PERCEPÇÕES

 – Criança Butantan

O projeto funciona em julho, nos três meses do outono e também nos meses da primavera. Nesta temporada – outono (17 de março a 23 de junho) – o Criança Butantã funciona em parceria com o Pé de Baraúna, toda sexta-feira, no endereço rua Desembargador Teodomiro Dias, 26 (Butantan).

Dia: toda sexta-feira, entre 17 de março e 23 de junho

Hora: de 9h às 17h (sextas)

Valor: R$ 150 por dia (integral) e R$ 85 (meio-período); pacote mensal com desconto

Local: Espaço Pé de Baraúna (rua Desembargador Teodomiro Dias, 26, Butantan).

Inscrições: pedebarauna@gmail.com e (11) 2528-1916

Atendimento clínico

A Morada tem uma rede de psicólogos e terapeutas ocupacionais que fazem acompanhamento terapêutico de pessoas com vulnerabilidade mental e social.

Valor: sob consulta

Contato: (11) 2924 64 99 e (11) 98385 10 73

– Encontro das Percepções

Ciclo de debates sobre terapia ocupacional, saúde, arte, gênero, educação e movimentos sociais. A Morada organiza dois eventos ao ano. No dia 27 de maio, o Encontro vai receber o GEITO – Grupo de Estudo Interdisciplinar em Terapia Ocupacional

Dia: 27 de maio

Local: Moradas Percepções (rua José Esperidião Teixeira 144, Butantan)

Mais informações: moradadaspercepcoes@gmail.com

– Grupo aberto 4ª na Morada

O grupo, aberto ao público e a interessados, experimenta e cria processos de arte, cultura urbana, intervenções e percepções – parceria com arte educador Sylvio Ayala.

Dia: toda quarta-feira

Hora: de 14h à 17h

Valor: contribuição voluntária

Local: Moradas Percepções (rua José Esperidião Teixeira 144, Butantan)

– Rede Arte (In) Comum

Construção de uma rede que trabalha na interface de arte, saúde e cultura. O projeto fará o evento “Orquestrando Aquários”, onde haverá um pic nic acompanhado de uma apresentação musical de um maestro que toca com aquários. Crianças são bem vindas.

Dia: 01/04 (sábado)

Hora: de 10h à 13h

Local: Moradas Percepções (rua José Esperidião Teixeira 144, Butantan)

Valor: contribuição voluntária (sugestão de contribuição: R$ 25)

– Cine no quintal

Em parceria com o Contrafluxo, há projeção de filmes na Morada das Percepções, sempre na primeira noite de lua cheia do mês

Dia: 11 de abril

Hora: 19hs

Local: Moradas Percepções (rua José Esperidião Teixeira 144, Butantan)

Valor: contribuição voluntária (sugestão de contribuição: R$ 10)

– Canto Sagrado Feminino

Encontros que acontecem uma vez por mês em noites de lua cheia. Um lugar para praticar, aprender, compartilhar e conviver cantando em volta da fogueira.

Mais informações: Facebook da Morada

– Misoginia, loucura e saúde mental

Grupo de trabalho composto por profissionais mulheres para criar uma rede de acolhimento de mulheres com vulnerabilidade mental

 

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