O Chile devolveu meus olhos vermelhos 1
Cultura,Lugares

O Chile devolveu meus olhos vermelhos

Visitar as três casas de Neruda, quando o governo investiga seu possível assassinato, é homenagear todos os que lutam por um mundo livre e justo  

em 22/12/2015 • 21h00
compartilhe:  

 

… Yo pisaré las calles nuevamente
de lo que fue Santiago ensangrentada

y en una hermosa plaza liberada
me detendré a llorar por los ausentes…

(Pablo Milanés)

Confesso que chorei quando toquei o solo de Santiago. Quem visita a capital do Chile pode se deliciar com a linda paisagem dos Andes coberto de neve na primavera. Eu preferi visitar o Chile que viveu o sonho de ser o primeiro país socialista no sul da América Latina.

Confesso que chorei quando vi as curvas do rio Mapocho, suas águas barrentas, e vislumbrei do alto do Cerro de San Christóbal a Santiago que foi violentada por abutres e fez o país andino mergulhar em uma das mais violentas ditaduras do século XX.

Confesso que chorei ao percorrer as três casas de Pablo Neruda. Ninguém será o mesmo ao penetrar nas moradas onde o poeta, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, viveu intensamente seu amor por Matilde Urrutia e escreveu versos que ficarão para sempre na memória de todos que anseiam por um mundo livre e justo.

La Chascona, La Sebastiana e Isla Negra – as três casas onde viveu o poeta, hoje transformadas em museus – nos dão um pouco do muito que foi o grande poeta latino-americano. As três casas de Neruda são um soco na face do fascismo e crava feito navalha na jugular de direitistas. Suas coleções de conchas, besouros, borboletas, fotografias de Rimbaud, Verlaine, Rilke, Baudelaire e tantos ou  maiores escritores nos transportam ao mágico mundo da literatura.

Confesso que chorei em Isla Negra, pequeno vilarejo que fica a 96 km ao sul de Valparaíso e a 120 km de Santiago, onde Neruda viveu a maior parte do tempo com a sua mulher, ao mirar durante quinze minutos o túmulo onde o poeta e Matilde estão enterrados. O frio do Pacífico, aquelas ondas infinitas que quebram pela eternidade nas rochas que cercam a casa de paredes que lembram um navio, tudo isso me transportou para outra dimensão: a dimensão da poesia. E chorei feito criança, escondido num canto de Isla Negra. As lágrimas eram minhas, só minhas.

O maior poeta do Chile teria sido assassinado em 1973 na clínica Santa Luzia por militares após o golpe sangrento que fez milhares de vítimas e levou ao desespero pais, mães, irmãos, filhos… Quando escrevo, o governo do Chile investiga se Neruda, que estava com um câncer em estado avançado, teria morrido por conta de uma injeção que lhe provocou uma parada cardíaca, doze dias após o golpe de 11 de setembro. Nesse louco mundo, tudo é possível.

Mas uma coisa é certa em tudo isso: confesso que chorei ao ver a escultura do presidente Salvador Allende diante do La Moneda (sede da Presidência) bombardeado por assassinos. Os ditadores estão enterrados e esquecidos numa grande vala de merda. Os loucos, os poetas, os revolucionários, dominam de novo o que foi uma Santiago ensanguentada, como diz a belíssima letra do cantor cubano Pablo Milanés, citada no início desse texto.

Confesso que vivi para ver isso e mergulhar no último dia de minha curta visita ao país andino no Museu dos Direitos Humanos. O memorial resgata a história chilena recente e nos apunhala sem dó nem piedade com as atrocidades cometidas contra um povo libertário. Não é um passeio para fracos. Mas saí de lá com a alma lavada. Viva Chile, carajo!

‎‎

AS TRÊS CASAS DO POETA

La Chascona (Santiago)

o-chile-devolveu-meus-olhos-vermelhos-4

Neruda começou a construir a casa em Santiago para Matilde Urrutia, seu amor secreto, em 1953. A casa foi batizada em homenagem a Matilde, apelido pelo qual o poeta chamava sua amada por conta de seus cabelos grandes e desordenados. A construção foi encomendada ao arquiteto catalão Germán Rodriguez Arias, que projetou a casa voltada para o sol, mas Neruda interferiu no projeto e a casa ganhou uma vista maravilhosa da cordilheira.  Neruda se separa de sua mulher Delia del Carril e passa a viver com Matilde em La Chascona. Durante o golpe de 11 de setembro, militares invadiram a residência e a casa foi depredada. Os vândalos chegaram a inundar a casa. Matilde fez questão de que o corpo de Neruda fosse velado ali, em meio ao caos. Matilde se empenhou em reconstruir a casa e ali viveu até sua morte, em 1985.

La Sebastiana (Valparaíso)

foto por: The Bugplanet
o-chile-devolveu-meus-olhos-vermelhos-5

“Quiero hallar em Valaparaíso uma casita para vivir y escribir tranquilo. Tiene que poseer algunas condiciones. No puede estar ni muy arriba ni muy abajo, debe ser solitaria, pero no em exceso. Vecinos, ojala invisibles. No deben verse ni escucharse. (…) Además tiene que ser muy barata.” Este foi o pedido feito por Pablo Neruda em 1959 às suas amigas Sara Vial e Marie Martner, que encontraram uma casa em obras que o arquiteto espanhol Sebastián Collado havia começado a construir e que morreu em 1949, antes de terminá-la. Batizada de “La Sebastiana” em homenagem ao seu primeiro proprietário, a casa foi inaugurada em 18 de setembro de 1961 com uma festa memorável. Depois do golpe, foi alvo de vândalos. Restaurada em 1991 com a ajuda financeira da Telefónica de España, foi aberta ao público em 1 de janeiro de 1992.

Isla Negra

o-chile-devolveu-meus-olhos-vermelhos-6

o-chile-devolveu-meus-olhos-vermelhos-7

Ao regressar da Europa para o Chile em 1937, Pablo Neruda buscava um lugar para dedicar-se ao seu “Canto General”, um grande livro sobre a história e natureza americanas. Em 1938, comprou de Eladio Sobrino, um marinheiro espanhol, uma pequena cabana cabana de pedra em Isla Negra. Ali, no inverno de 1943, com a ajuda do arquiteto catalão Germán Rodriguez Arias, iniciou a primeira série de ampliações da casa. Anos depois, a partir de 1965, com o arquiteto Sergio Soza projetou nova ampliação. “La casa fue creciendo, como la gente, como los árboles…”, escreveria o poeta anos depois. Foi nesta casa que Neruda escreveu parte significativa de sua obra literária.

Neruda saiu dali no dia 19 de setembro de 1973 e foi levado de ambulância para Santiago, onde morreria quatro dias depois. Só voltaria a Isla Negra em 1992, quando seus restos mortais foram trasladados e colocados junto aos de sua mulher Matilde Urrutia, se cumprindo assim o desejo do poeta expressado quase cinquenta anos antes em seu poema “Disposiciones”, de Canto General: “Compañeros, enterradme em Isla Negra,/ frente al mar que conozco, a cada área rugosa de piedras/ y de olas que mis ojos no volverán a ver…”

Fonte: Fundación Pablo Neruda

Comentários

Comentário