O choro de Messi
Esporte

Não chores por mim, Lionel Messi

Reação do craque argentino após perder a final da Copa América conta a história da sua vida: seu apego pela Argentina (apesar de morar na Europa) e sua adoração pela avó

em 22/07/2016 • 00h30
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Subúrbio de uma cidade argentina. Um homem na faixa dos quarenta anos começa a ter um projeto de vida assim que percebe estar há tempos adormecido em sua rotina mecânica no restaurante que administra. É quando ele se embrenha no projeto de ajudar sua mãe, organizando um novo casamento dela com seu pai, para reforçar a união feita há mais de quatro décadas. A mãe, com Mal de Alzheimer, se comove e tem, com a nova iniciativa, sua doença degenerativa diluída pelas lembranças que alimentam seu desejo de viver. E de se casar novamente com seu antigo noivo − e com a vida.

O trecho acima resume o enredo do filme “O Filho da Noiva”, protagonizado pelo ator Ricardo Darín, e pela estrela do cinema argentino, Norma Aleandro, no papel da mãe, uma senhora sensível, distinta e equilibrada em uma vida em que o sofrimento é compensado com o amor, antes do esquecimento.

É um filme que marcou profundamente a vida de Lionel Andrés Messi, craque argentino, nascido em 24 de junho de 1987 em Rosário, já elevado ao status de lenda, que no último mês de junho viveu um turbilhão, transformando sua condição de ídolo rejeitado pelo próprio povo a mito ao estilo dos grandes heróis argentinos, após anunciar que não mais vestiria a camisa da seleção nacional. A avó de Messi, Dona Célia, sua maior incentivadora no futebol (e na vida), também teve Alzheimer.

Todo o enredo que levou Messi a anunciar, provisoriamente, sua despedida, tem relação direta com o roteiro da obra cinematográfica. A decisão ocorreu após Messi perder mais uma final, desta vez da Copa América Centenário 2016, nos Estados Unidos. A disputa nos pênaltis, em que ele chutou para o alto uma cobrança, foi um capítulo dramático que revelou ao país e ao mundo um lado do seu caráter pouco valorizado. Apesar de conhecido. Ou esquecido, como no Alzheimer que levou sua avó.

Até a última final da Copa América, parecia que a Argentina não sabia que Lionel Messi teve uma avó. Dona Célia Olivera de Cuccittini era hábil em fazer manjares e alegrar as reuniões familiares. Alegrava também a vida do menino, acompanhando-o e até exigindo que os treinadores das equipes infantis o colocassem nos campinhos de terra batida, mesmo sendo menorzinho que os outros.

Tudo isso, naquela final, foi contado, mas não por palavras. Leo, como Messi é conhecido em seu país, nunca foi muito de falar. Na escola, quando tinha um problema, costumava ficar num canto, em silêncio. Parecia autista, mas, de acordo com o jornalista Luca Caioli, autor de “Messi, o garoto que virou lenda”, uma das principais biografias sobre o craque, o jogador argentino nunca teve a Síndrome de Asperger. Messi se expressava por meio da bola, afirma o biógrafo.

No jogo derradeiro diante do Chile, ele revelou seus segredos por meio das lágrimas. Ao contrário da frase de Evita Perón, o mais novo herói desta pátria cheia de dramas, para a qual ele está servindo como um símbolo de integração, estimulava aos prantos que um país inteiro caísse de joelhos. Unida e arrependida por não ter reconhecido todo seu esforço em disputas anteriores, a nação emendou, em uníssono, algo tão difícil nestes tempos de intensas diferenças políticas:

— Não chores por mim, Lionel.

A perda do pênalti na disputa, após empate, e a consequente derrota na quinta final pela seleção fizeram emergir um novo Messi diante do mundo. E iluminou para o seu país um lado do jogador que estava presente, mas que muita gente insistia em não ver: a forte ligação do jogador com a Argentina – que deixou ainda menino, aos 13 anos.

Messi vai para a cobrança já abalado pelo medo de errar. E, sem o equilíbrio emocional necessário, acaba chutando para o alto, num lance que, se por um lado jogou para longe o sonho da primeira conquista, por outro escancarou o sentimento dele em relação à importância do jogo para a sua carreira. E tornou aquele momento uma epifania: finalmente trouxe um país inteiro para o seu lado.

Ele chuta longe e puxa a camisa, quase a rasgando. Coloca a mão no rosto e retorna pálido, em passos pesados, rumo ao meio do campo, região que sempre destrinchou com arrancadas espetaculares, mas desta vez como um soldado que vai noticiar para o restante da tropa a morte de um companheiro na batalha.

Seu andar lento e atordoado lembra o momento em que ele caminhava pelas trilhas do cemitério no enterro de sua avó. O revés fez o jogador entrar novamente em uma espécie de luto, que culminou com a declaração de que deixaria de jogar pela seleção.

Depois do pênalti perdido, ele foi se refugiar sozinho no banco, local em que ele não costuma sentar, mas que o acolheu na humildade reflexiva dos humanos que de lá assistem a partida como reservas. Foram instantes que pareceram eternos.

A conhecida frase “um filme passou por sua cabeça naquele momento” cabe perfeitamente. No caso, “O Filho da Noiva”.

Enquanto os holofotes do estádio ainda aqueciam a energia daquela partida, na mescla que une as lágrimas dos vitoriosos ao dos vencidos, Messi certamente pensou em Dona Célia. E, assim que se dirigiu novamente ao campo, ao lado dos companheiros, chorou como nunca havia feito antes como jogador profissional.

Parte dele se desnudava e apresentava ao mundo sua essência argentina, sempre questionada até essa competição. O estrondo das frases que ouvia a cada derrota, a sibilarem como chicotes em sua pele tatuada por imagens oníricas da família, voltava a ameaçar. “Messi só joga no Barcelona”, “Messi é como um estrangeiro, não se esforça”.

As frases contrastavam com os primeiros anos de vida, quando ele era levado, de mãos dadas, pela abuela para acompanhar o irmão, Matías, aos treinos no campinho do Glandoli, em uma avenida de Rosário com vários ferros-velhos.

Mais do que ninguém, era a avó a sua maior incentivadora.

A avó e a doença

Com feições fortes, olhos escuros e volumosos, Dona Célia conduzia os netos enquanto dava seus últimos passos de vida. Àquela altura, ela já deveria estar prejudicada pelo Mal de Alzheimer, doença que a levou à morte aos 67 anos, em 8 de maio de 1998, quase um mês antes de Messi completar 11 anos. A doença, afinal, demora cerca de oito anos em geral para se manifestar e ir apagando cada vez mais rápido a tela de lembranças que a mente projeta.

No Alzheimer, a perda de funções cognitivas, como memória, atenção, orientação e linguagem, por causa da morte de células cerebrais, é o principal sintoma. E o esquecimento, aos poucos, vai levando o paciente a uma realidade muito distante, quase como se contemplasse sem saber o seu ocaso.

Mas quando o assunto era futebol, e mais precisamente o talento natural do neto caçula (Messi ainda tem uma irmã, Maria Sol, mais nova), a lucidez de Dona Célia se sobrepunha ao avanço da doença e vinha à tona com sintonia fina. Mais precisa até do que o dos treinadores das categorias de base onde jogavam os meninos.

Aquela senhora foi fundamental para impulsionar Leo rumo ao futebol. Graças, inclusive, ao carinho acolhedor que transmitiu ao menino, ajudando-o a encarar com mais força as adversidades que viriam pela frente: a doença do crescimento, que o obrigou a tomar hormônios, a mudança para Barcelona, após não conseguir seguir o tratamento de US$ 900 mensais no Newell´s Old Boys, seu clube de coração, e a distância de parte da família. As mulheres – a mãe e a irmã – ficaram na Argentina enquanto ele, o pai e os irmãos iam morar na Espanha, por insistência de Messi, convicto de que iria vencer no futebol.

— Ele começou a jogar sobretudo porque a avó insistiu muitas vezes. Um dia, quando um menino faltou, o técnico se mostrava titubeante em colocar Leo para completar porque ele era muito pequeno. E ela logo garantiu que o garoto, de cinco anos apenas, deveria entrar em campo. “Coloque-o e verá como joga o menino”.

Quando Dona Célia morreu, Messi “recebeu um golpe muito duro”, segundo Guillem Balague, autor de “Messi, a Biografia”. A tia de Leo, Marcela, descreveu a dor da família:

— Para todos nós, foi uma enorme perda e todos sem exceção sentiram uma intensa dor. Até hoje me emociono ao lembrar-me de Leo agarrando-se ao caixão e chorando incontrolavelmente.

Caioli lembra que o apego de Messi à avó foi muito comentado nas entrevistas que colheu para o livro. Esse apego explica a forte ligação do craque com a Argentina.

— Ele tinha uma relação especial com a avó, ia comer na casa dela aos domingos e o afeto era muito grande. Um filme que o tocou demais foi “O Filho da Noiva”, que fala sobre uma senhora com Alzheimer. A associação e o comportamento da personagem o emocionaram.

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Rumo à Europa

Se foi curto ou não ou período de Leo na Argentina, não importa. Ele deixou o país aos 13 anos, em setembro de 2000, fazendo uma viagem de volta a seus antepassados italianos de Recanti. Mas o sangue europeu já estava diluído pelo lado latino adquirido pela família nas décadas posteriores. Os poucos anos em que Messi viveu na Argentina foram, para ele, eternos. Como a infância é para a maioria das pessoas.

No seu país, Messi vivenciou o aconchego dos primeiros anos, ao sabor de alfajores, brincou com seus amigos, passava os domingos com a família e jogava bola nas ruas sem asfalto, com os inseparáveis primos, Max e Emannuel Biancucchi, filhos de Marcela, que se tornaram também profissionais.

Foi em sua terra natal que ele conheceu o futebol, alimentando a idolatria por Diego Maradona nos anos 90, quando ganhou de presente algo inesquecível: uma fita de vídeo com os gols mais bonitos do craque que levou a Argentina à conquista da Copa do Mundo de 1986. Sua técnica, por ser canhoto, lembra um pouco a do ídolo, mas o arranque de Messi e sua versatilidade em várias posições do ataque dão a ele um estilo único. Messi é o maior artilheiro da história da seleção Argentina, com 55 gols.

E quando Messi encanta em gramados europeus, conquistando tudo pelo Barcelona e sendo eleito por cinco vezes o melhor jogador do mundo pela Fifa, quem está atuando é o garoto que brincava nas ruas e nos campinhos às margens do rio La Plata. Messi e sua paixão pela bola são essencialmente argentinas.

A confusão em relação à latinidade de Messi vem muito mais por causa de seu comportamento do que por causa da sua origem. Maradona, por exemplo, aparenta ser muito mais argentino do que Messi. É explosivo, de sangue caliente, daqueles que falam o que pensam. Messi não. É introspectivo, mas nem por isso menos argentino.

— O problema não é ser mais europeu ou não. São duas personalidades diferentes. Maradona era um vulcão dentro e fora do campo por suas declarações, apego a Fidel (Castro) críticas a (Joseph) Blatter (ex-presidente da Fifa), Maradona sempre foi assim. A personalidade de Leo é completamente diferente. Maradona falava dentro e fora de campo. Messi fala apenas com a bola nos pés. Simplesmente são dois caráteres diferentes, um é clássico argentino (Maradona) com a verborragia, e outro é um tipo ensimesmado que sempre falou pouco. Quando tinha 19 anos, se falava duas palavras era muito. Agora já fala mais, melhorou um pouco mas não chega a ter a personalidade de Maradona. Ainda é introspectivo, analisa Caioli.

Em uma foto na infância, ao lado da avó, Leo estampa um sorriso, já sem um dentinho. Ele devia ter cinco anos. Seu rosto ainda não adquiriu o ar adulto e o brilho do olhar se sobressai ao lado do nariz de traços ainda suaves. Adulto, Messi mudou algo em seu semblante. A seriedade de sua face é mais presente. E o nariz ficou mais encorpado entre os tímidos olhos pequenos. Pode-se dizer que o ar sério caminha por sua feição em nuances de tristeza.

A cada jogo, ele parece carregar a missão de dar razão ao que sua avó dizia sobre seu potencial. A ternura e a confiança gratuitas que ela depositava no neto foram um impulso determinante para ele seguir em frente.

Messi se sente grato e apegado também ao Barcelona, clube com o qual, após um período de dificuldades, já que não podia atuar em campeonatos nacionais nas categorias de base, se identificou. No entanto, mantém suas raízes argentinas.

Fã de chimarrão, Leo sempre que pode volta à sua cidade natal e tem uma vida muito restrita à família. Aliás, se casou com uma menina que conheceu ainda antes da adolescência, Antonella Roccuzzo, irmã de seu melhor amigo nos tempos de Newell´s Old Boys, Lucas Scaglia. E, antes de seus filhos, Thiago (3 anos) e Mateo (10 meses), nascerem, dizia que os momentos mais felizes de sua vida foram quando seus sobrinhos vieram ao mundo.

Leo sempre repetiu que mesmo a milhares de quilômetros seu desejo era jogar durante toda a carreira com a Alviceleste (camisa da Argentina). A relação dele com seu país é muito particular, justamente pelo fato de nunca ter jogado profissionalmente em um clube argentino.

Essa é a diferença dele em relação à maioria dos jogadores que começaram a jogar na Argentina e, antes de se aventurarem pelo exterior, pelo menos estrearam em uma agremiação local, conforme diz Caioli, ressaltando que tal fato traz a falsa impressão de que ele adquiriu hábitos estrangeiros.

— Messi cresceu na Europa, a partir da adolescência, em Barcelona e muitas vezes desiludiu torcedores. Todos ouviam e viam falar maravilhas dele com a camisa do Barça e com a da seleção ficava a impressão de não verem as mesmas maravilhas. Então o acusavam a ser mais catalão, diziam que não sente a camiseta. Ao contrário, ele sempre sentiu a camiseta e há pouco tempo revelou que seu sonho é terminar a carreira em uma equipe Argentina. É muito argentino, depois de tantos anos segue falando com sotaque rioplatense, rosalino, não sabe nada de catalão.

Ídolo de um país

O anúncio de Messi de que não jogaria mais na seleção talvez tenha sido uma reação antecipada à enxurrada de críticas que ele estava acostumado a receber. Um tempero a mais, insuficiente para determinar a decisão, foi a contrariedade do jogador em relação à organização da AFA (Associação Argentina de Futebol), que não teria fornecido a infraestrutura adequada para a equipe na Copa América. Porém, após o anúncio, em tom lúgubre, o que se viu foi uma atitude inversa da população. Redes sociais e milhões de pessoas se mobilizaram e iniciaram uma campanha para que ele permanecesse na seleção.

A hashtag #NoteVayasLeo (“Não se vá, Leo”) se tornou uma das que mais foram acessadas nas redes sociais, com pedidos para que Messi permanecesse. Houve até quem implorasse por isso. O presidente do país, Maurício Macri, e o ídolo Maradona, que dias antes havia criticado o que considerava falta de liderança de Messi, aderiram à campanha. E pediram em público para Leo prosseguir.

Na verdade Maradona, provavelmente, havia destilado sua mágoa, por ter ficado ressentindo com o craque argentino quando ele foi demitido do comando da seleção nacional, em 2010. Maradona, que durante a permanência como técnico tratava Messi com muito carinho, considerava que o jogador deveria ter partido em sua defesa, o que não ocorreu de forma veemente.

Mas o luto e os obstáculos da vida Messi aprendeu a superar amparado no tempo. A travessia do Atlântico rumo a uma nova vida foi acompanhada por uma espécie de sussurro de sua vó, com palavras de amor e incentivo que o impediram de desistir enquanto interagia com o horizonte alaranjado e gótico de uma Barcelona fria, no início.

A primeira vez que Messi saiu sozinho de seu bairro em Rosário, aliás, foi aos 12 anos, pouco antes de deixar o país. Com o amigo de escola, Diego Vallejox, ele saiu sorrateiramente de casa, superando as fronteiras das ruas conhecidas para ir visitar o túmulo de Dona Célia.

Na nova vida de sucesso e conquistas, desconhecida por Dona Célia, um título pela Argentina também seria como coroar tudo que a avó fez por ele. Para poder voltar no tempo e, num passe de mágica, levá-la a conhecer sua mansão em forma de bola, a assistir a uma partida sua, para vê-lo sair ovacionado e requisitado por uma legião de fãs, Messi pagaria qualquer quantia (maior até do que a multa de R$ 16,7 milhões, estipulada pela Justiça espanhola, que ele terá de pagar por sonegação ao Fisco, com direito a recorrer da sentença).

Mas como trazer Dona Célia de volta não é possível, cada gol de Messi, sem exceção, é comemorado com ele apontando os indicadores e o olhar em direção ao céu, em homenagem a ela.

— Penso nela demais e dedico meus gols a ela. Gostaria que estivesse aqui, mas ela me deixou antes de poder ver meu triunfo. Isto é o que mais me deixa chateado − disse o craque ao Mundo Deportivo em 2009.

E o céu, justamente, é alviceleste. Como se, junto com suas memórias, por onde quer que Messi atuasse, acima dele tremulasse com o vento a bandeira azul e branca da Argentina. Para Messi, sua avó é a Argentina. É a mente que não perdia a força do sentimento, a levá-la por um labirinto colorido, em que antevia o pequeno Leo deslizar com a bola e vencer os pampas, montanhas e oceanos, enquanto o sol argentino dela ia se apagando. O Barcelona não era nada mais do que um clube distante para Dona Célia, assim como Jesus Cristo não teve ciência do catolicismo.

E como Leo sempre soube reconhecer o carinho da gente, alimentado pela sua origem, o astro Messi deverá voltar atrás em sua decisão. Dentro dele, a seleção não será enterrada, como Dona Célia não foi. A genialidade de Messi continuará sendo estimulada por ela que, mesmo com Alzheimer, foi a chama inicial de sua carreira. E o ensinou, acima de tudo, a não se esquecer.

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