Mulheres, trans, vitoriosas
Sociedade

Mulheres, trans, vitoriosas

Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, Calle2 conta a história de três trans que estão se dando bem na vida (apesar do preconceito)

em 08/03/2016 • 00h00
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A professora de geografia Sayonara Naider Bonfim Nogueira, 41, já foi cerceada por usar o banheiro feminino da escola. Helena Freitas, 26, ‘engravidou’ o seu marido, também transexual, mas só conseguiu registar o filho com o seu nome de batismo que, na verdade, não representa a sua orientação de gênero. A advogada Robeyónce Lima, 27, enfrenta resistência da família por suas escolhas.

Porém, virar mãe, tornar-se educadora e ser a primeira trans a passar na prova da OAB (Organização dos Advogados do Brasil) em Pernambuco são realizações de sonhos que ajudam essas mulheres a se empoderarem – e a sair das duras estatísticas do preconceito.

Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, a Calle2 traz a inspiradora história de três transexuais que romperam a barreira da marginalidade e do anonimato e elevaram suas condições de trans para níveis sociais além das esquinas e prostíbulos, onde estão cerca de 90% das travestis e transexuais do país, de acordo com a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).

“O Estado tem uma dívida social comigo. Enquanto uma cidadã sujeita a direitos e a deveres, sempre tive meus direitos ceifados, mas os deveres cobrados. Mesmo acreditando que possam existir políticas públicas a nosso favor, ainda tenho medo do que nos aguarda, já que a escola continua sendo um motor da exclusão”, analisa a professora Naider.

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‘Engravidar meu marido foi bem estranho’

Helena Freitas, 26 anos, operadora de telemarketing e mãe do Gregório (Porto Alegre)

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‎“Sou muito feliz por ser mãe. Honestamente, tem ocasiões que dá vontade de pedir demissão do meu trabalho, mas nunca vou abrir mão do cargo de ser mãe. Tem dias que durmo só quatro horas, mas não delego a ninguém minhas funções. O Gregório, meu filho, foi a melhor coisa que me aconteceu.

Engravidar meu marido foi estranho no começo [Anderson também é trans – nasceu mulher, mas hoje é homem]. A minha ficha demorou um pouco para cair. Mas depois seguimos normalmente, como um casal de homem e mulher, só que no meu caso quem estava grávido era o homem.

Foi engraçado ver um homem grávido, mas eu nunca ri na frente do Anderson. Ele é muito bravo e não gosta de brincadeiras... e também estava muito sensível.

Eu curti muito a gravidez. Fiz um chá de bebê sem a participação do Anderson. Mas também tive meus receios, fiquei com medo de tudo, de perder o emprego, medo da separação e, principalmente, de faltar alguma coisa para o meu filho. Durante o parto, os médicos achavam que éramos irmãs. Ficamos o tempo todo de mãos dadas. Só uma enfermeira se deu conta do que estava acontecendo e passou a me chamar de ‘mãezinha’.

A briga para registrar o Gregório foi muito constrangedora. O rapaz do cartório disse que minha identidade social não é de verdade e perguntou onde eu a havia conseguido. A maioria das pessoas não conhece a identidade de nome social. O Gregório está registrado com meu nome civil.

Em qualquer lugar vem o questionamento de que não somos uma família normal, que eu não sou a mãe. Para mim isso é preconceito. Somos prova viva de que o amor se constrói entre seres humanos. Somos um casal transgênero e temos uma família.

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‘A escola continua sendo um motor de exclusão’

Sayonara Naider Bonfim Nogueira, 41 anos, professora (Uberlândia)

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“Me formei em Geografia, em 2000, pela Universidade Federal de Uberlândia. No início, tínhamos que pegar aulas como temporários, portanto, passava por diferentes escolas durante o ano, substituindo professores efetivos que estavam de licença, e isso me causava uma angústia muito grande. Muitas vezes, cheguei a esconder o cabelo por dentro da blusa, a vestir roupas sobrepostas para ir atrás de um emprego. Nos dias quentes era quando eu mais sofria.

Nessa época não existia nenhuma lei sobre o nome social no trabalho [alguns Estados exigem que instituições públicas usem o nome social, ao invés do nome civil], o que só passou a acontecer em 2011. Só que não adianta você criar uma portaria de nome social se os agentes públicos não tiverem uma capacitação sobre a questão, o que acaba criando mais transtornos ainda, como vários que passei. Contudo, desde 2015, eu consegui a retificação do registro civil, o que levou a um aumento da minha autoestima.

O que faz uma mulher não é ser meiga, não é ter cabelo grande, não é ser genitora, não é ser sentimental, não é ser submissa ou ter sido ensinada a ser oprimida. Ser mulher é ter crescido e ter sido socializada como mulher.

O protagonismo de uma professora trans na sala de aula faz toda a diferença na vida dos estudantes, por isso estou sempre atenta à importância desse papel, uma vez que estou ali para formar cidadãos livres, conscientes e críticos acerca da realidade que eles vivem.

Me admiro por conseguir sobreviver cercada por tantos preconceitos e por acreditar que um dia existirão leis no país que atenderão às nossas demandas.

Em relação ao universo escolar, sempre tive o respeito dos meus alunos e de seus familiares, contudo, em relação à instituição, já sofri todo tipo de constrangimento que uma pessoa pode sofrer. Já fui chamada pela direção para ser advertida por usar o banheiro feminino, já fui agredida verbalmente por colegas de trabalho, que diziam que eu nunca seria mulher. Já fizeram uma verdadeira caça às bruxas comigo.

O Estado tem uma dívida social comigo. Enquanto uma cidadã sujeita a direitos e a deveres, sempre tive meus direitos ceifados, mas os deveres cobrados. Mesmo acreditando que possam existir políticas públicas a nosso favor, ainda tenho medo do que nos aguarda, já que a escola continua sendo um motor da exclusão.”

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‘Estou deixando de ser vergonha para ser orgulho’

Robeyónce Lima, 27 anos, estagiária na Justiça Federal (Recife)

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“Sou a primeira trans a passar na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) em Pernambuco. Fiquei assustada com a repercussão e sinto um pouco de falta da minha privacidade, mas estou disposta a abrir mão dela pela pauta da transexualidade.

Eu sempre andei com pessoas do movimento LGBT na universidade, mas, mesmo na companhia dos gays, eu me sentia diferente. Não gostava das roupas e de me chamarem pelo gênero masculino. Eu achava que era gay, mas, mesmo assim, eu destoava entre eles.

Foi há dois anos que assumi minha transexualidade e as palestras e debates que participei na faculdade, com movimento estudantil, foram decisivas para assumir quem eu sou. Eu vivia retraída com medo dos comentários. Mas hoje, a hora mais feliz do meu dia é quando boto batom nos meus lábios, coloco meus brincos e pinto minhas unhas.

A minha família ainda é algo delicado. É uma família tradicional, criada em uma sociedade machista e discriminatória. Eles apenas reproduzem o que ouvem. Sinto um pouco de dificuldade de me impor para minha família. Eles ainda me chamam pelo nome civil, mas sempre corrijo. Eles acham que mudar meu nome é uma forma de me desvincular da família, cortar os laços, mas deixei até o sobrenome para eles entenderem que não é isso. Só que eles teimam em pensar dessa forma.

A aprovação na OAB está me ajudando a me empoderar. A repercussão positiva vai me ajudar a me firmar como uma pessoa do gênero feminino na família. Estou deixando de ser vergonha para ser orgulho. Ainda está cedo para colher os frutos dessa mudança dentro da minha casa, mas estou sentindo uma certa diferença, os olhares estão diferentes, o modo de falar está diferente. Estamos voltando a nos aproximar.”

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