Martin Caparrós e sua luta contra a fome no mundo
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Martín Caparrós e sua luta contra a fome no mundo

Escritor e jornalista argentino conversa com a Calle2 sobre seus trabalhos recentes e analisa o jornalismo atual

em 04/04/2017 • 10h45
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Enquanto Martín Caparrós é devorado por uma quantidade indecifrável de mosquitos no calor árido do Níger, na África Ocidental, seus olhos tentam entender como a pele fina de Aisha ainda resiste ao contato com os ossos do cotovelo sem se romper. O que os une naquele momento, além do chão de terra batida e do desencontro intelectual causado pela estranheza de cada palavra dita, é o fato de que ambos não conseguem entender por que tantas pessoas passam fome no mundo. Aisha acredita que Deus ‒ o seu Deus ‒ é o senhor de todas as razões, organizador de sua vida, detentor de seu futuro. Resume sua existência, e sua fome, à vontade de um ser superior que, para ela, é responsável pela quantidade de milho que ela e sua família consomem,  ou não, em um dia.

Caparrós, ao contrário, precisou viajar dezenas de países, conversar com centenas de pessoas, ouvir um punhado de histórias para escrever “El Hambre” (“A Fome”), uma explicação jornalística e literária de como a escassez de comida em países do Outro Mundo, como ele descreve, é um problema coletivo e solucionável. “A fome é o problema mais grave que poderíamos solucionar em pouco tempo. Só precisamos querer. Que muitos queiram”, diz Martín Caparrós, 60 anos, de Madrid, por e-mail, à Calle2.

Desde que publicou “A Fome”, em meados de 2014, o escritor e jornalista argentino já publicou outros dois livros, sem traduções disponíveis para o português até o momento: “La Crónica”, em abril do ano passado, em que analisa o jornalismo atual e o gênero que dá nome a obra, um dos mais utilizados desde que começou a escrever ainda em Buenos Aires; e “Etcheverría”, em que fala sobre a importância do escritor argentino Esteban Etcheverría (1805-1851) que, para ele, moldou a cultura da sociedade argentina.

Confira a seguir entrevista com o escritor e jornalista, que ganhou os prêmios Planeta Latinoamérica e Rey de España:

Por que escrever sobre a fome?

A fome é o problema mais grave que poderíamos solucionar em pouco tempo. Só precisamos querer. Que muitos queiram. Me parece que qualquer esforço que se possa fazer para conseguir isso – e difundir o tema é um esforço – vale a pena.

Eu tenho a impressão de que “A Fome” poderia ter mais de duas mil páginas, com outras histórias, outros lugares, outras dores. Como você decidiu que era a hora de terminar o livro?

Quando o livro ameaçava chegar a 800 páginas e eu mesmo ameaçava deixar de comer, entendi que já era a hora de parar. Claro que havia mais coisas para contar – incluindo um capítulo sobre o Brasil e o plano “Fome Zero”, que tinha previsto e planejado para estar no livro – mas em algum momento eu tive que cortar e resignar-me ao fato de que os problemas têm mais arestas que um livro é capaz de contar.

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Como visitar a morte dos outros tantas vezes sem ficar louco ou depressivo?

Te parece que não sou?

É verdade que escrevi muito sobre a morte: em minhas crônicas, meus livros. É provavelmente o tema que mais aparece mesmo.

Talvez tenha a ver com o meu passado, militando na Argentina dos anos 70, onde isso estava tão presente. Ou com qualquer outra coisa.

Em uma entrevista recente a um canal de televisão argentino, você disse que Esteban Etcheverría deu uma identidade cultural ao argentino através da literatura, em um momento de grande influência europeia. Jorge Luis Borges teve um papel similar? 

Não, são dois momentos muito distintos. Quando Etcheverría começou a escrever, Buenos Aires era um povoado onde nunca se havia publicado o livro de um poeta local, e ele foi o primeiro. Para isso, ele tomou como modelo o que havia nessa época na literatura francesa, inglesa e alemã. Borges, um século mais tarde, viveu em uma sociedade multicultural, feita de imigrantes de todo o mundo, bastante educada. O que ele fez foi apropriar-se de todas essas tradições, mesclando-as, misturando, e entendendo que ser argentino é a possibilidade de ser de todas ou de nenhuma parte.

Depois de escrever “La Crónica” (“A Crônica”), você entende que o jornalismo está melhor ou pior desde que começou a carreira em Buenos Aires?

Eu diria que nem melhor, nem pior, mas muito diferente.

Agora, pelo avanço tecnológico, é infinitamente mais fácil fazer jornalismo que há 40 anos; agora, pelos mesmos avanços tecnológicos, é mais fácil fazer um mau jornalismo.

A tentação está no seguinte: é mais fácil buscar algo na internet do que sair a buscar algo na rua. É mais fácil dizer a primeira impressão, do que checar; é mais fácil contentar-se com o “click’’, do que buscar leitores de verdade. Isso não significa que essas transformações sejam ruins. Ao contrário, abrem enormes possibilidades. Algumas pessoas aproveitam, outras não.

Você já disse em algumas entrevistas que o jornalismo na América Latina está em crise e que estão surgindo novos meios de comunicação, especialmente na internet. Essa crise é financeira, de qualidade ou ambas?

 A crise dos grandes meios de comunicação é produto dessas transformações. É assustador para eles, que já não sabem como ganhar tanto dinheiro como uma empresa de comunicação, então dizem que o jornalismo está em crise. O que está em crise, na verdade, é a forma de circulação da notícia como no século passado. A crise, como sempre, é um problema para alguns, uma oportunidade para outros. Só que, ao contrário de outras vezes, esta crise é descrita e definida por aqueles que a sofrem: os grandes meios que hegemonizaram o espaço jornalístico nas últimas décadas. Eles falam de seus problemas, mas não falam dos novos meios que estão surgindo em decorrência dessas mudanças. Alguns deles estão fazendo boa parte do que há de melhor no jornalismo atualmente na América Latina: “El Faro”, em El Salvador, “La Silla Vacía”, na Colômbia, “Pública”, no Brasil e vários outros.

As críticas aos grandes meios de comunicação acontecem também pelo estímulo aos “leitores que não leem”?

As críticas têm a ver com o fato de que muitos desses meios tradicionais entraram na lógica do rating [classificação de risco, se refere ao mecanismo de classificação da qualidade de crédito de uma empresa], enchem suas páginas com notícias frívolas ou morbosas que supostamente os levam aos “clicks”. Te explicam ‒ literalmente ‒ como fritar um ovo sem quebrar a gema, e isso traz mais público, e depois te explicam que o público quer essas coisas, esse tipo de notícia. Por isso insisto que, ultimamente, teríamos que fazer jornalismo “contra o público”. Não dar o que supostamente pedem, mas o que consideramos que vale a pena ser contado.

Ao ver você falando sobre a Argentina e sobre o presidente Mauricio Macri, me parece que há um certo cansaço em falar sobre isso, sobre os problemas do país. É cansativo ser um escritor e jornalista argentino? 

Eu não diria que estou cansado de falar dos problemas da Argentina. Estou cansado, sim, de ver esses problemas se repetirem, tão parecidos entre eles, através do tempo, como se não pudéssemos aprender nada. E sim, muitos de nós temos a sensação de que a Argentina é um país cansativo. Rico em surpresas, em sensações, interessante, falido, dirigido por uma gente inepta, que, com a sua permanência no poder, desmente essa ideia tão bem propagandeada de que os argentinos são mais ou menos inteligentes e educados. Se somos assim, como podemos aceitar os governos que temos, os processos de degradação que sofremos nas últimas décadas?

O que você sente quando tem de ir de Madrid a Buenos Aires?

Isso não é uma coisa que tenho feito com tanta frequência. Ultimamente, vou a Buenos Aires duas vezes por ano, do mesmo jeito que vou a Colômbia, ao México, à França, à Itália. Mas é claro que ir a Buenos Aires me provoca uma excitação, uma sensação diferente, ainda que eu não viva nela.

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