Latinos adotam São Paulo para 'sair do armário'
Sociedade

Latinos adotam São Paulo para ‘sair do armário’

Nos últimos anos, a capital paulista tornou-se destino preferido de imigrantes que buscam na cidade a chance de exercer com liberdade sua sexualidade

em 17/06/2017 • 15h45
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Tomar a decisão de deixar o país de origem e cruzar as fronteiras para começar uma nova vida em um território diferente e, muitas vezes, desconhecido, não é uma tarefa fácil para a maioria das pessoas. Imagine, então, para quem, além do estigma de estrangeiro, carrega o peso de ter uma orientação sexual ou identidade de gênero que difere dos padrões heteronormativos ainda presentes em nossa sociedade.

Quando resolveu sair da Colômbia rumo ao Brasil em 2015, aos 24 anos, essa foi uma das preocupações de Juan Sebastián Arias. O jovem, formado em Comunicação Social, largou emprego e deixou para trás família e amigos para ter uma experiência internacional e aprender outro idioma. Nascido em Bogotá, capital e maior cidade do país, escolheu São Paulo como destino ˗ e não aleatoriamente.

“Tive muita sorte em crescer numa cidade como Bogotá e poder ser abertamente gay, mas esse não foi um caminho fácil. Foi um processo difícil e longo para convencer minha mãe de quem eu era. Acho isso um absurdo, convencer os outros sobre quem se é , mas essa luta eu venci. Mesmo morando na capital, nossa cultura é muito violenta e machista, então eu não me arriscava na rua e não tinha tanta liberdade quanto tenho aqui”, comenta.

Ainda que o Brasil precise avançar em algumas questões sociais e de direitos humanos, grandes cidades, como é o caso de São Paulo, são vistas por muitos latino-americanos como uma alternativa viável para uma vida mais aberta, longe de preconceitos.

Morando há pouco mais de um ano e meio na capital paulista, Juan confirma que o fato de São Paulo ser uma cidade mais acolhedora para os LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais, especialmente se comparada a outras regiões do Brasil, foi um dos fatores que o motivaram a embarcar no avião. “Este nunca foi um argumento explícito, mas com certeza foi uma das razões que me trouxeram até aqui. Acho que São Paulo oferece a possibilidade de ser quem se é não só em casa, mas também na rua, nos espaços públicos. Na América Latina, acho que é uma das cidades mais tolerantes com a diversidade, não somente sexual, mas cultural, de expressão de modo geral”.

Se a capital recebe a fama de tolerante, o país, na prática, revela-se justamente o contrário. De acordo com relatório do Grupo Gay da Bahia, em 2015, foram assassinadas 318 pessoas LGBTI no Brasil, número que representa uma morte a cada 27 horas. Deste total, 55 foram registradas em São Paulo, estado com maior número de mortos.

Em comparação, na Colômbia, de acordo com relatório das organizações Colômbia Diversa, Caribe Afirmativo e Santa María Fundacíon, no mesmo período, foram assassinadas 110 pessoas LGBTI, maior número registrado desde 2012. A diferença entre os países chega a quase 190%.

Em ambos, a falta de marcos legais capazes de punir atos discriminatórios contra a população LGBTI contribui para a dificuldade de realização de diagnósticos estatísticos precisos desta natureza. Portanto, há uma chance de os números indicarem apenas uma parte do total de crimes ocorridos no período ˗dada a possibilidade de que muitos assassinatos não são registrados como homo/lesbo/transfobia.

Os números alarmantes, no entanto, somente reforçam o que acontece todos os dias, em diferentes níveis, mesmo na capital. Apesar de nunca ter sido alvo direto de preconceito, Juan lembra as ocasiões em que a homofobia falou mais alto. “Ouço com frequência comentários homofóbicos, especialmente quando usam a palavra ‘viado’ como ofensa, por exemplo. Isso dói, porém nunca fui vítima diretamente. Mas já não posso falar o mesmo por ser estrangeiro e, precisamente, colombiano”, diz. “Muitas pessoas ainda ligam os colombianos à imagem do narcotráfico, a uma ideia falsa de que toda pessoa de lá tem uma ligação com Pablo Escobar e que usa cocaína. Esse é um estereótipo ainda comum que temos que enfrentar”.

Mesmo que lentamente, a Colômbia já conseguiu conquistas importantes para a população LGBTI. Em abril deste ano, o país foi o quarto da América Latina a aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo, depois da Argentina, Uruguai e Brasil.

A Corte Institucional também já havia aprovado a adoção de filhos por casais do mesmo sexo ˗ decisão que corre o risco de ser revogada, após aprovação do Senado para realizar um referendo, com o objetivo de modificar a Constituição de maneira que somente casais formados por um homem e uma mulher possam adotar.

Brasil e Colômbia não são os únicos países da América Latina que pecam pelos poucos avanços em questão de direitos humanos. Neste ano, a Anistia Internacional, em sua avaliação anual sobre esta questão, destacou, além destes, México e Venezuela como exemplos de retrocesso.

 Apesar da recente decisão do Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela de aprovar que famílias homoparentais possam ter filhos, seja por via assistida (inseminação artificial) ou adoção, igualando, assim, os direitos destas pessoas aos de uma família tradicional (formada por casal heterossexual), o país ainda deixa a desejar em outros aspectos.

Uma lei que criminalize a homofobia e a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, ainda parecem realidades distantes e inalcançáveis. Enquanto isso, de janeiro de 2009 a maio de 2015, ocorreram 72 assassinatos de pessoas LGBTI no país, de acordo com informe da organização ACCSI (Acción Cuidadora Contra el Sida ).

Pablo, venezuelano de 28 anos, morando há quatro no Brasil, lembra que, se dentro de casa a aceitação foi difícil, na rua, essa situação é ainda mais complicada. “Sempre sofri uma pressão psicológica muito grande para me encaixar no que minha família achava que era melhor para mim, até que eles entenderam que isso não iria acontecer. Eu nunca fui muito masculino, então, na Venezuela, eu tinha medo de ser eu mesmo e de me expressar na rua. Era muito reprimido e nunca me atrevi a dar um beijo em público, por exemplo. Demonstrações de afeto publicamente não faziam parte da minha vida, justamente pelo medo de represálias”, desabafa.

Essa realidade ficou no passado. Pablo escolheu São Paulo para dar continuidade em seus estudos, mesmo tendo a possibilidade de ir para outras capitais, justamente por considerá-la uma cidade em que poderia viver com mais segurança. “Namoro há dois anos um brasileiro e me sinto livre hoje para andar de mãos dadas e dar um beijo em público. Eu nunca fiquei tão à vontade em Caracas, no meu próprio país, quanto eu me sinto aqui”, afirma. Por um período de tempo, o preconceito, no entanto, fez-se presente. “No meu local de trabalho, já senti preconceito por ser estrangeiro e gay, por serem questões que ainda pesam nesse ambiente. Mas hoje em dia isso não acontece mais, pois já consegui quebrar essas barreiras. Sinto que as pessoas aprenderam a me respeitar, acima de qualquer coisa”, diz Pablo.

A realidade de Juan e Pablo no Brasil se assemelha a de muitos outros estrangeiros. Para se ter uma ideia, em dez anos, o número de imigrantes registrados pela Polícia Federal aumentou 160%. Em 2015, mais de 117 mil estrangeiros deram entrada no Brasil ˗ número quase três vezes maior com relação a 2006, quando o total era de 45.124. O Haiti continua sendo a principal nacionalidade dos imigrantes no Brasil, seguido por bolivianos, colombianos, argentinos e chineses. O ranking ainda inclui, na sequência, Portugal, Paraguai, Estados Unidos, Uruguai e Peru.

Com relação aos refugiados, os números cresceram em ordem ainda mais exponencial. De acordo com o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados), órgão ligado ao Ministério da Justiça, nos últimos cinco anos, as solicitações de refúgio no Brasil cresceram 2.868%. Passaram de 996, em 2010, para 28.670, em 2015. Até abril deste ano, haviam sido reconhecidos 8.863 refugiados, de 79 nacionalidades. O relatório mostra que os sírios são a maior comunidade no país, seguidos dos angolanos, colombianos, congoleses e palestinos.

Ainda em quantidade pequena, se comparada ao número total de refugiados, atualmente 18 pessoas já receberam refúgio no Brasil por terem sido perseguidas em virtude de orientação sexual e/ou identidade de gênero. Outras 23 solicitações com base nesse mesmo critério ainda estão pendentes de análise.

Tanto os imigrantes quanto os refugiados que chegam a São Paulo encontram na cidade diversos serviços de apoio. O Instituto de Reintegração do Refugiado, por exemplo, atua em áreas de integração do refugiado à sociedade brasileira, ensinando a língua portuguesa, ajudando na busca por trabalho e dando apoio psicológico e jurídico a essas pessoas.

“O Estado de São Paulo e a Prefeitura da cidade oferecem centros de apoio que atendem imigrantes e refugiados. Há a Casa do Migrante, por exemplo, que acolhe parte das pessoas que buscam refúgio, albergues e as próprias comunidades que se ajudam. No entanto, faltam políticas públicas eficientes para garantir mais dignidade para eles”, opina Sidarta Martins, diretor da instituição.

A situação para os imigrantes é mais favorável. Além da regulamentação da Política Municipal para População Imigrante, a cidade conta com o CRAI (Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes), órgão público municipal da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. No entanto, não há dados sistematizados com relação ao atendimento de imigrantes LGBTI no CRAI. “Isso não significa que não aconteçam atendimentos a esta população. A complexidade da questão pode explicar a inexistência de dados, já que essas pessoas evitam declarar sua orientação sexual por ser esse o motivo de saída de seu país de origem”, explicou a secretaria, por meio de sua assessoria de imprensa.

Por conta da abertura das unidades fixas e móveis dos Centros de Cidadania LGBTI e de outras políticas adotadas nos últimos quatro anos, como o Programa Transcidadania, que oferece bolsas a 200 transexuais para que elas possam se dedicar aos estudos, São Paulo ganhou, recentemente, o selo internacional Rainbow City, que reconhece cidades amigáveis para a população LGBTI.  Somente 29 cidades do mundo contam com este reconhecimento. São Paulo é a única da América do Sul ˗ ao lado da Cidade do México, quando se olha para toda a América Latina.

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