‘Jeitinho brasileiro' nas Olimpíadas expõe nossa pior face 1
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‘Jeitinho brasileiro’ nas Olimpíadas expõe nossa pior face

A preparação para os Jogos do Rio mostra a verdade cruel do país-sede: questão social deixada de lado, burocracia, falta de planejamento e gastos acima do previsto

em 17/06/2016 • 01h30
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Os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos podem representar um legado para o país e principalmente para a cidade-sede. Esse legado pode ser esportivo (trabalho mais próximo junto às escolas, atletas nacionais de alto rendimento disputando medalhas nas principais competições pelo mundo), econômico (investimento em locais para treinos, gestão qualificada) e, o mais importante, estrutural (desenvolvimento no sistema de transporte, parques públicos). Enfim, opções não faltam – Seul, Barcelona e Pequim são bons exemplos.

Mas também existe a ‘herança maldita’, como a que convive até hoje Atenas e a Grécia: especialistas dizem que a atual crise econômica do país começou com os gastos bilionários para a realização dos Jogos em 2004.

Já o Rio de Janeiro mostra a terceira via que uma Olimpíada pode apresentar: a verdade cruel do país-sede. O sistema político que mais empaca do que descomplica, que mais burocratiza em vez de simplificar. E o aspecto social completamente deixado de lado.

Na Copa do Mundo tivemos um belo aperitivo disso tudo – estádios subutilizados (elefantes brancos), obras de mobilidade urbana relegadas, atrasos e gastos acima do previsto. É claro que a festa dos brasileiros há dois anos ajudou a encobrir boa parte desses problemas, mas por que acreditar que em 2016, no Rio, tudo seria diferente?

Escolhida em 2009 como palco dos Jogos, a cidade maravilhosa já passou por incidentes distintos: estádio do Engenhão interditado por parte do teto que cedeu e  Maracanã fechado para novas reformas (já passou por duas grandes para o Pan-Americano de 2007 e a Copa do Mundo); construção que desabou semanas após sua inauguração; lagoa que não despoluirá em tempo das competições; violência contra atletas que a conheciam; desapropriações à força de famílias que moravam havia décadas na região do Parque Olímpico.

Seul, Barcelona e Pequim são exemplos dos bons legados deixados pelos Jogos Olímpicos; por outro lado, há quem diga que a atual crise grega começou com os gastos bilionários com os eventos de Atenas em 2004. O Rio de Janeiro representa uma terceira via, revelando a verdade cruel do país-sede

E ainda teve a epidemia do Zika vírus, o que colocou uma pulga (ou um mosquito) atrás da orelha de vários esportistas, temerosos de virem ao Brasil.

Afinal, o que tudo isso mostrou? Mostrou o verdadeiro Brasil.

Aqui, nada se previne, tudo se redime. E com demora. Com “jeitinho”.

Sabe-se que o Zika, por exemplo, tem maior incidência no verão brasileiro. Durante os Jogos, no inverno, a situação fica totalmente sob controle. Mas o atraso em explicar tudo fez com que um grupo de cientistas pedisse o adiamento ou até mesmo a mudança das Olimpíadas para outra cidade.

As obras, como sempre, são feitas a toque de caixa. Sim, os locais de competições estão quase todos entregues, mas e para chegar até eles? Trens, veículos leves sob trilhos, avenidas, ciclovias… Onde estão?

A lagoa Rodrigo de Freitas está altamente poluída, e os governos federal, estadual e municipal se digladiaram para empurrar a culpa. Meta? Que meta? Atletas disseram ter ficado doentes? Não é possível…

Mas tem o lado dos Jogos Olímpicos, assim como de qualquer outro evento, que sempre fica encostado: o social. Gosto de ver o que a Anistia Internacional tem a dizer sobre tal problema. A ONG produz relatórios extensos e completos sobre como os trabalhadores são tratados durante as obras, se as reformas não estão retirando forçadamente pessoas de suas casas ou se as forças policiais tratam com dignidade a população.

E mais uma vez a violência é o tema de um artigo da Anistia para um evento no Brasil. Assim como há dois anos na Copa do Mundo, erros policiais, falhas na segurança pública e abuso de força podem comprometer o legado das Olimpíadas do Rio de Janeiro.

“Em 2009, quando o Rio foi escolhido para sediar os Jogos Olímpicos, as autoridades se comprometeram a melhorar a segurança. Porém, entre estes sete anos, 2.500 pessoas foram mortas pela polícia somente na cidade e poucos casos conseguiram Justiça. (…) A ideia de ‘atirar primeiro, perguntar depois’ coloca a cidade do Rio de Janeiro entre aquelas onde a polícia mais mata no planeta”, é o que diz parte do relatório.

'Em 2009, quando o Rio foi escolhido para sediar os Jogos Olímpicos, as autoridades se comprometeram a melhorar a segurança. Porém, entre estes sete anos, 2.500 pessoas foram mortas pela polícia somente na cidade e poucos casos conseguiram Justiça'

Em outro documento, chamado “Rio 2016: a violência não faz parte desse jogo!”, existe um abaixo-assinado contra as ações de segurança preparadas para a Olimpíada. “Há um número considerável de casos documentados de execuções e outros abusos cometidos pela polícia na cidade do Rio de Janeiro. Não queremos que isso se repita a pretexto dos jogos. Entre em ação e diga às autoridades que elas são responsáveis”, diz a Anistia.

Mas fiquemos tranquilos, que entre os dias 5 e 21 de agosto a festa dos povos acontecerá sem transtornos. O Exército estará nas ruas, os estádios e ginásios ficarão lotados, e faremos os Jogos como nunca antes foi visto.

Pode ser que daqui oito anos o Brasil se torne uma potência esportiva ou o Rio de Janeiro esteja aproveitando um legado estrutural sem precedentes? Sim, claro.

A oportunidade, porém, escorreu pelas mãos dos que ditam os rumos do país.

Isso te surpreende?

A mim, nem um pouco.

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