Infidelidade partidária amplia crise de representatividade
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Infidelidade partidária amplia crise de representatividade

Temos o maior índice de troca-troca partidário na América Latina; só neste ano, 99 deputados mudaram de legenda – sinal de que falta ideologia e sobram interesses pessoais

em 28/06/2016 • 00h00
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“Essa coisa de ideologia ficou parada no tempo”, diz o advogado Marcílio Duarte de Lima enquanto observa, da janela principal do seu apartamento, a movimentação constante da avenida Santo Amaro, na zona sul de São Paulo. A conversa com a Calle2 e as bebericadas na taça de vinho são interrompidas pela ligação de um parlamentar que busca orientações para trocar de partido. Dizia-se insatisfeito na legenda pela qual havia sido eleito, mas também ciente das complicações de uma transferência perante o eleitorado. Naquela mesma tarde outros quatro congressistas procurariam Marcílio para conversar sobre relações com caciques eleitorais ou pedir apoio na formulação de novas legendas.

Não é para menos: Marcílio é, desde o fim dos anos 1980, conhecido entre a classe política pela sua capacidade de construir partidos políticos em períodos curtos e por valores considerados viáveis. Cobra até R$ 400 mil para reunir assinaturas, inaugurar comitês eleitorais e percorrer o país abrindo escritórios do germe partidário (veja aqui quais os requisitos para se criar um partido no Brasil). De 1989 até hoje, foram sete, como o PRTB, do ex-candidato à presidência, Levi Fidélix, e o Solidariedade, do deputado federal Paulinho da Força.

A fama, mais do que o orgulho que emprega para falar de si mesmo, lhe serve também para concluir o pensamento iniciado antes da interrupção da conversa pelo celular: “Como eu dizia, a questão da ideologia partidária vai ficar no rastro da evolução. Político que ficar preso a uma ideologia hoje não terá o que falar em um curto prazo no futuro. Então, pra que se prender?”

A visão de Marcílio pode ser encarada como que a que faz mais sentido para os parlamentares brasileiros que procuram-no diariamente. Na última legislatura (2011-2014), 151 deputados trocaram de partidos durante seus mandatos, o que representa a mudança de direção política de 29% da Câmara.

Só neste ano, segundo dados da BBC, 99 deputados mudaram de legenda, o maior número desde 2003, quando 107 congressistas partiram para novos redutos partidários.

O atual presidente da Câmara dos Deputados, Waldir Maranhão (PP-MA), por exemplo, já trocou de partidos cinco vezes na carreira política: esteve no PDT (1985 a 1986), duas vezes no PSB (1986 a 1988 e 2005 a 2007) e no PTB (1988 a 2005), antes de se fixar no PP, onde está desde 2007 (foto).

“A migração partidária teve consequências perversas para a representação. As trocas de legenda promoveram um afastamento entre a vontade do eleitor e a distribuição de cadeiras entre os partidos no parlamento, o que levou a uma crise de representatividade”, analisa Andréa Freitas, professora de Ciência Política da Unicamp.

Considerando algumas das principais democracias do mundo, o Brasil se destaca em relação à infidelidade partidária dos seus políticos. Isso se deve a dois fatores: em alguns países, como Estados Unidos e Alemanha, em que apenas dois grandes partidos se revezam no poder, há uma maior identificação do eleitorado e da classe administrativa com as duas ideologias opostas. Por outro lado, as taxas de reeleição de parlamentares, por consequência, são maiores nesses países (60% a 80% contra 40% do Brasil).

Nas palavras do cientista político e chefe da Assessoria Internacional da Câmara dos Deputados, Lucio Reiner, “a consolidação dos partidos políticos e a identificação dos eleitores com estes provocaram uma fidelidade partidária de fato que é recompensada por altas taxas de reeleição”.

Em países como a França, no entanto, em que vários partidos disputam o poder no cenário eleitoral, há uma forte tendência de um parlamentar manter-se na sua legenda por ver nela os princípios que defende. O Estado sequer regula o processo, deixando que as trocas sejam coordenadas pelos próprios partidos. Ainda assim, as migrações são menores porque os políticos franceses são mais ligados às ideias de suas filiações.

 

Infidelidade partidária no Brasil

O último debate sobre a infidelidade partidária no Brasil girou ao redor do questionamento sobre o “dono” do mandato de um político: se o candidato ou a legenda. A discussão chegou ao STF (Supremo Tribunal Federal), em 2007, que entendeu que o verdadeiro responsável pelo mandato de um político era o partido dele.

Entre 1964 e 1979, não apenas as trocas de legendas eram proibidas, mas um parlamentar sequer podia votar contrariamente ao seu líder partidário no Congresso. A situação modificou-se em 1979, quando o Congresso – outrora ocupado pelo Executivo – aprovou leis que permitiram a abertura de novos partidos e o trânsito entre eles sem restrições.

Em março de 2007, o TSE aprovou uma grande mudança na flexibilidade de migração de políticos entre partidos, ratificada pelo STF. Os políticos podiam mudar de legenda em quatro situações: fusão ou incorporação do partido; criação de nova sigla; mudança substancial ou desvio do programa partidário; ou discriminação pessoal do político eleito.

O entendimento dos tribunais também ia no sentido de que o mandato era do partido, não do político. Sendo assim, as legendas ganharam poder para pedirem a devolução de legislaturas que considerassem desviantes dos seus princípios ou que ficassem vagas com trocas partidárias.

Assim, se um parlamentar eleito por um partido decidisse trocar de filiação política após vencer um pleito, este partido poderia pedir de volta o mandato ao TSE, colocando um suplente seu no lugar do político “infiel”. Para o STF, mais do que isso, esse indivíduo teria como condenação imediata a perda do seu mandato.

Em abril daquele ano, o vereador Osdival Gomes, de Guarapuava (Paraná), perdeu seu mandato por ter trocado o PMDB pelo PP sem nenhuma motivação cabível entre as aprovadas pelos tribunais. Ficou conhecido por ser o primeiro político brasileiro cassado por infidelidade partidária.

As restrições impostas fizeram com que os políticos criassem brechas à lei para trocar de partidos. “Pipocaram deputados pedindo partidos novos porque era uma das únicas maneiras de migrar. Tive que estabelecer uma tabela de preços. Os honorários geralmente ficam entre R$ 300 e R$ 400 mil reais”, explica o advogado Marcílio Duarte.

O próprio Congresso abriu uma quinta brecha na Constituição em fevereiro deste ano, durante a discussão do impeachment, ao permitir que as trocas partidárias se dessem sem punições judiciais por 30 dias (entre 18 de fevereiro e 19 de março). A emenda, batizada de janela partidária, resultou em 90 migrações.

“Houve duas razões para os parlamentares aprovarem a emenda. Uma era essa oportunidade de poder concorrer à eleição municipal. A segunda foi procurar um partido que também desse liberdade para votar de acordo com sua consciência, com a orientação do seus eleitores [no processo de impeachment]. A crise teve influência”, afirmou o analista político do DIAP (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar), Antônio Queiroz, à BBC.

Infidelidade partidária na América Latina

A América Latina, ao contrário do Brasil, tem taxas pequenas de infidelidade partidária mesmo com poucas regras que limitem a troca de legendas.

Estudo feito pelos cientistas políticos Marcelo Almeida Filho e Ana Paula Vila Nova, da UFSCar, em 2014, mostra que o país com a maior taxa de migração partidária da América Latina depois do Brasil é a Argentina, em que 10,9% dos deputados mudaram de legendas considerando as duas últimas eleições. Como a maioria das nações latino-americanas, lá também não há uma legislação que restringe as trocas entre partidos.

Além do Brasil, apenas a Colômbia e o México controlam as trocas de partidos pelos políticos por meio de leis. No caso colombiano, um congressista pode ser punido se praticar “dupla militância” no parlamento, organizado em um modelo de bancadas. Os mexicanos, mais radicais, proíbem a reeleição de parlamentares por um prazo de seis anos. Nos demais países, a migração partidária é livre, apesar de constantes debates atuais no Chile e na própria Argentina.


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