Guayaquil: a urbanização latino-americana para gringo ver
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Guayaquil: urbanização para gringo ver?

De perigosa e suja, a capital econômica do Equador se transformou em um dos principais destinos turísticos da América do Sul após ser revitalizada, mas especialistas criticam mudanças

em 31/03/2017 • 14h45
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Executivos caminham apressados, ambulantes vendem de carregadores a saladas de frutas e o barulho dos motores impera. Assim é a Victor Emilo Estrada, uma típica e caótica avenida latino-americana localizada em Guayaquil, no Equador. A poucos metros dali, esse padrão muda repentinamente e a tranquilidade brota como um universo paralelo.

Basta cruzar a Ponte ZigZag, que leva esse nome por seu formato, e o ar parece mais leve, o buzinaço é substituído pelo som dos pássaros, os olhos se enchem com o verde dos mangues e borboletas passam arrancando sorrisos. O Malecón do Estero Salado faz parte da chamada “regeneração urbana” da “Perla do Pacífico”, título pelo qual é conhecida Guayaquil, a maior e mais populosa cidade do Equador.

A capital econômica do país é responsável por 25% do PIB nacional, superando a contribuição de Quito. Às margens do Rio Guayas, abriga o principal porto do Equador, participando em 70% das exportações e 83% das importações da nação. Na regeneração urbana, iniciada em 1992, partes do centro e o bairro de Udersa, um dos mais abastados da cidade, passaram por reformas. “Os cabos aéreos de energia se tornaram subterrâneos, criamos mais áreas para pedestres, reformamos parques e igrejas e estabelecemos pontos turísticos”, enumera o historiador e arquiteto Melvin Hoyos, secretário de cultura e promoção cívica de Guayaquil, que integra a Prefeitura desde o início do projeto.

A reforma chegou também ao Cerro Santa Ana (foto acima), uma favela com alto índice de criminalidade localizada no centro. Com a construção de uma escadaria que leva a um mirante no alto do morro, os turistas passaram a frequentar o local, que recebeu reforços de segurança. O comércio de produtos ao longo dos 444 degraus beneficia economicamente os moradores locais. Na atual fase da regeneração, as zonas periféricas passaram a receber hospitais, escolas, parques e bibliotecas.

Segundo Hoyos, Curitiba foi a principal inspiração para a iniciativa. Os projetos da revitalização de Guayaquil, por sua vez, teriam sido replicados em Cali, Medellín e Bogotá, na Colômbia, Santiago e Valparaíso, no Chile, e Lima, capital peruana. “Isso quer dizer que estamos no caminho certo”, aposta Hoyos.

As pesquisas e as urnas demonstram que a maioria dos habitantes está satisfeita com a cidade pós-revitalização. Em 2003, a ONU chegou a consagrar o projeto, premiando o município por suas inovações. Por outro lado, as críticas aumentam no âmbito acadêmico e entre alguns moradores. Eles vêem na revitalização a perda de identidade cultural e a falta de participação cidadã, fatores que se repetem em reformas urbanas por toda a América Latina.

A ideia da revitalização foi impulsionada por um pequeno grupo de arquitetos responsável pelo Malecón 2000, que veio a ser o carro-chefe da reforma. Douglas Dreher, um dos profissionais envolvidos na concepção da obra, conta que o projeto foi abraçado pelo prefeito da época, Febres Cordero, como a estrela de seu plano de reformar a cidade.

'O projeto jamais tentou resolver a desigualdade de Guayaquil. Mas nasceu para ser catalisador de um projeto de regeneração urbana que, se tivesse êxito, seria replicado em outras partes da cidade, partindo do centro histórico para chegar atualmente à periferia', afirma o arquiteto.

A Fundação Malecón 2000 foi encarregada de administrar o espaço por 100 anos com a finalidade de não deixar nenhum gasto de manutenção para a Prefeitura. Para isso, 20% do espaço é destinado à iniciativa privada. O aluguel cobrado dos estabelecimentos é reinvestido no espaço.

Localizado no centro e às margens do rio Guayas, o Malecón 2000 conta com 2,5 quilômetros repletos de lojas, cafés, bares, estátuas e uma impactante roda gigante que se ilumina durante a noite. A espécie de “orla” virou cartão postal da cidade.

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Assim que construído, era proibido beijar ou jogar bola no Malecón

“Este lugar parece feito para ser visto, é como estar em um cenário. Como quando se passa por um hotel, que está feito para ser uma casa, mas que não se sente como um lar”, relata Ange Barbosa, de 27 anos. “Não parece parte do Equador”, diz a colombiana que vive há dois anos no país.

Pesquisadora das consequências sociais de reformas urbanas em Guayaquil e em Barcelona, na Espanha, a arquiteta Gabriela Navas, explica o porquê de os próprios moradores se sentirem turistas quando caminham pelo local.

'O Malecón mantém a imagem de uma cidade limpa, sem conflitos, asséptica e ordenada para que seja consumida por turistas internacionais e pelos cidadãos que se transformam em meros visitantes de sua própria cidade. E às vezes nem isso, já que as classes desfavorecidas são alvo de controle policial neste lugar', diz Navas.

No início, era apito para todo lado no Malecón 2000. Os guardas advertiam quem jogava bola, levava animal de estimação ou interagia com o jardim. Nem beijar-se em público era permitido. Para completar, havia uma placa que anunciava o direito de admissão no espaço.

Hoyos diz que isso já é coisa do passado. “Se um guarda disser que você não pode beijar no Malecón, pode mandar ele para o inferno”, brinca. Mas admite que a disciplina segue tendo importância nas áreas regeneradas, onde é vetado o comércio informal, por exemplo.

O projeto também alterou a relação dos cidadãos com o rio, segundo a arquiteta mexicana Maria de Lourdes Aburto, professora da Escola Superior Politécnica do Litoral (Espol). “Agora você só vê o rio quando está dentro do Malecón. Isso se chama autocontido. Se estou do outro lado da calçada,  não o vejo mais, antes o via”, explica. “Existe uma barreira visual que impõe minha maneira de atuar com ele, onde devo sentar e para onde devo olhar”, critica a arquiteta. “As pessoas deveriam ser livres para perceber a cidade.”

O Malecón hoje tem grades, hora para fechar e não permite ingresso ao rio. Antes, a beira do rio era de livre acesso e, além do porto, havia prostituição, tráfico de drogas e outras práticas ilícitas, além de trabalho informal. Também tinha gente que se banhava nua e fazia rituais de cura sob as árvores, conta o arquiteto Douglas Dreher.

O que poderia ser interpretado como parte de uma manifestação cultural e popular, segundo Dreher não passa de “coisa de gente saída do hospício”. “Era preciso educar nosso povo”, justifica.

Para a arquiteta Navas, se trata de um discurso que estigmatiza os setores menos favorecidos da população nas áreas centrais para justificar sua expulsão e perseguição. A iniciativa não reconheceria os problemas sociais produtos das desigualdades impostas pelo sistema econômico, reforçando-as.

A especialista lembra que a regeneração é mais um exemplo latino-americano de gentrificação. Depois de concluído, atraiu empreendimentos imobiliários de alto padrão e expulsou os pobres para a periferia da cidade, distante não apenas da beleza, mas também dos serviços públicos.

Sem espaço para arte

“Há um grande conflito do espaço público em Guayaquil, que está muito encerrado e submetido à privatização”, critica o arquiteto Peter Ronquillo, segundo o qual não há liberdade de propor e executar projetos críticos nas áreas regeneradas. Para evitar problemas com os órgãos públicos, artistas se vêem obrigados a criar estratégias como a de alinhar a arte ao turismo, o setor econômico queridinho de Guayaquil. “Claro que não deveria ser assim, mas esta é a nossa realidade”, lamenta.

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A revitalização da cidade atraiu turistas, mas não resolveu a questão da desigualdade social

Com a falta de espaço e recursos públicos à arte na cidade, casas e hotéis viraram palco de eventos culturais, convertendo espaços privados em públicos. “Houve uma efervescência de lugares alternativos na cidade. Atualmente há pelo menos seis”, contabiliza Ronquillo, diretor da plataforma de arte e cultura “El Nodo”, que acontece toda sexta-feira na casa de um amigo.

Principal porta de entrada do país às Ilhas Galápagos através de voos diretos, Guayaquil deixou de ser uma cidade de passagem onde os turistas temiam ser assaltados para se tornar uma das capitais globais preferidas pelos estrangeiros na América do Sul e a cidade mais visitada do Equador após a regeneração.

Nos últimos anos, o governo municipal investiu pesado no turismo com a campanha “Guayaquil es mi Destino” enquanto a gestão nacional lançou “All you need is Ecuador” a nível mundial em 2015, com inserções no intervalo do Super Bowl, a grande final de futebol americano.

O custo da campanha foi de US$ 3,8 milhões e o total de gastos anuais com turismo foi de US$ 143 milhões, segundo dados do ministério da área. Em 2015, o turismo cresceu 13% no país com a arrecadação de US$ 1.691,8 milhão e a geração de 285 mil empregos diretos e indiretos. O setor é o terceiro não-petrolífero mais rentável do país.

Apesar da publicidade dada ao projeto e o saldo turístico positivo, a regeneração não resolveu o problema da desigualdade em Guayaquil. Números do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (INEC) de 2001 mostram que quase metade (48,7%) da população não têm atendidas suas necessidades básicas como acesso a água potável, saneamento básico, energia elétrica, telefone, saúde e educação.

Navas critica a falta de referências regionais no projeto de revitalização, que não teria investido em estudos exaustivos sobre o uso da cidade por seus cidadãos de modo a gerar ações que expressem a essência local e respeitam sua dinâmica. “A cidade existe antes de existir o projeto e não o contrário. Mas quando a cidade é pensada como um negócio, esta é uma questão irrelevante”, cutuca.

Já o arquiteto responsável pelo Malecón 2000 afirma que foram aplicadas enquetes à população durante o desenho do Malecón como se faz nas “pesquisas de mercado”. “Isso nos ajudou a construir o roteiro para esse drama”, brinca Dreher. Segundo ele, em um mundo globalizado não há nada de mal em se inspirar em modelos estrangeiros bem-sucedidos e esteticamente agradáveis. O projeto do Malecón 2000 foi desenvolvido pela Oxford Brookes University, da Inglaterra, e é criticado por alguns especialistas por usar uma linguagem estética de um turismo global genérico e elementos ecológicos como meros artifícios ornamentais.

Para os críticos, foram usados materiais que não condizem com o clima e a cultura da cidade. 'Há palmeiras que não são nativas por toda parte. Elas não ajudam em nada a amenizar o clima quente e servem como mero ornamento, na tentativa de copiar Miami', aponta a arquiteta mexicana Maria de Lourdes Aburto. Por essa e por outras, há quem chame Guayaquil de Guaiami.

É difícil encontrar quem foi a Machu Picchu, campeão de selfies no Facebook, e não se impressionou com a qualidade arquitetônica empreendida pelos incas no Peru, não é mesmo? Já no Equador, o legado dos povos quéchua não é tão publicizado. “O que aconteceu no Equador? Onde está sua cultura? Por que não a reconhecem?”, questiona a arquiteta mexicana.

Em um continente conhecido pela memória curta em relação a sua história social e política, o esquecimento é a chave também para esta questão. “Não recordar que existe um mangue e um rio permite que os destruam. A partir do momento em que o reconheço, sempre vou defendê-lo”, observa. “Por que permitiram essa barreira visual entre a cidade e o rio através do Malecón? Por que permitiram sua privatização?”. A resposta, de acordo com a especialista, é a perda de memória urbana.

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