Análise

Guatemala e a comédia dos políticos famosos

Jimmy Morales, eleito com 70% dos votos, representa o voto ‘antipolítico’ e remete ao 'fenômeno Tiririca-Russomano'

em 24/11/2015 • 18h00
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No próximo dia 14 de janeiro, a Cidade da Guatemala assistirá a posse do candidato da Frente de Convergencia Nacional (FCN), o cômico Jimmy Morales. Eleito com quase 70% dos votos válidos no segundo turno, Jimmy surgiu como intruso no horizonte de terra arrasada – por escândalos de corrupção– da política guatemalteca. E isso talvez tenha lhe servido como principal arma na disputa presidencial. Os cidadãos do país viram em Jimmy, o comediante que semanalmente conta causos e piadas nos televisores do país, o candidato menos pior. Há quem classifique o voto em Jimmy como um voto “antipolítico”.

Em situação semelhante, duas personalidades da televisão aberta pintam como favoritas para a prefeitura de São Paulo: Celso Russomano (PRB), disparado com 34% da preferência, e José Luiz Datena (PP), com 13% – tecnicamente empatado com Marta Suplicy (PMDB) e Haddad (PT), segundo o Datafolha de novembro de 2015. Nos últimos anos, Russomano e Datena contabilizaram infindáveis horas no ar; defendendo direitos do consumidor ou apresentando a crônica policial da maior cidade do país. De fácil comparação, Jimmy Morales evoca o também comediante Tiririca, reeleito deputado federal por São Paulo com mais de 1 milhão de votos no ano passado.

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Diego Corrêa, cientista político e pesquisador do Núcleo de Estudos Comparados e Internacionais da USP, analisa que “se os eleitores não se sentem representados pelos partidos, podem ser levados a apoiar lideranças carismáticas com vínculos partidários fracos ou inexistentes”. Assim, pode-se dizer que o sucesso de personalidades como Jimmy, Russomano ou Tiririca se baseia nos mesmos fatores que costumam levar populistas ao poder. Corrêa aponta em comum “essa aura do populista de estar acima do jogo partidário tradicional, que tem um forte apelo de criar lealdades em contextos de grande insatisfação popular”.

“A América Latina tem, por tradição política, cultural, o hábito de buscar dirigentes carismáticos, os caudilhos. Ao longo da história esse fator às vezes resultou em administrações positivas e outras, negativas.”

A frase acima é de um dos escritores brasileiros que mais enfatizam a história latino-americana, Eric Nepomuceno, à Calle2. A referência ao caudilhismo, distante da figura militarista de força autoritária, encontra eco no culto à personalidade. Em seu ponto de vista, “o cenário desse vazio político costuma ser cíclico, não só aqui (no continente). Quando existem situações de insatisfação generalizada, quando parte substancial da população está extenuada, abre-se espaço para esse tipo de movimento deplorável”.

As realidades políticas de Brasil e Guatemala são mais similares do que pensamos e se estendem pelas Américas. “Isto ocorre porque todos os países latino-americanos adotam o presidencialismo e a maioria adota o sistema eleitoral de representação proporcional de lista aberta para a escolha dos deputados. São instituições que, comparativamente, estimulam o personalismo na política e tornam mais difícil o enraizamento dos partidos na sociedade”, explica Diego Corrêa.

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O cenário para o inesperado triunfo de Jimmy moldou-se nos recentes escândalos que envolviam a alta cúpula do Executivo. Ministério Público e Comissão Internacional Contra a Impunidade na Guatemala (CICIG) – patrocinada pela ONU – desataram os laços que encobriam a estrutura mafiosa responsável pelo desvio de até 50% dos impostos por importação do país. Em pouco tempo, passou-se do secretário da vice ao presidente, o general Otto Pérez Molina, apontados de estarem à frente da fraude alfandegária milionária

Mesmo pressionado, Molina não abdicou de sua imunidade parlamentar e apimentou o caldeirão de indignação. Desde o 25 de abril deste ano, sábado após sábado, a classe média urbana do país passou a reunir-se no Parque de la Constitución e na Praça Mayor, na capital, em protesto. Bandeiras azuis celeste e brancas, somadas às camisas da seleção de futebol, encheram as ruas com patriotismo estéril e uma hashtag: “#JusticiaYa”. Houve quem chamasse o movimento, cada vez maior e plural, com até 100 mil pessoas, de “Primavera del Descontento”. Na terça-feira, 3 de setembro, o Congresso revogou a imunidade do general Otto Pérez Molina, forçando a sua renúncia; horas depois, teve a prisão decretada por suborno, associação ilícita e fraude. Para o domingo, dia 6, estavam marcadas eleições para vereadores, deputados e presidente.

O jornalista mexicano Jan Martínez Ahrens acompanhou a onda de insatisfação de perto, cobriu o pleito in loco para o periódico El País e descreve em suas matérias o vazio político deixado pelo movimento: “Derrubado o chefe de Estado, essa massa heterogênea perdeu o seu principal ponto de união. E a acefalia que tinha dado tãos bons frutos começou a jogar contra. Sem líderes ou aparelhos, os indignados ficaram de fora do jogo eleitoral”. O descrédito e a ojeriza à classe política tornaram-se sintomas da sociedade que perdeu a esperança nos representantes habituais.

Numa disputa entre 14 presidenciáveis, a balança pré-“Primavera” pendia para a polarização entre a centro-esquerdista Sandra Torres – 1ª dama do país de 2008 a 2012 – e o favorito à época Manuel Baldizón, do direitista Libertad Democrática Renovada (LIDER). Porém, antes de mais nada, ambos integravam o establishment político da Guatemala, o que por si só configurava o maior empecilho para qualquer candidato. “A gestão do descontentamento caiu nas mãos do único elemento visível da antipolítica: Morales”, esmiúça Ahrens. “Jimmy é o imenso triunfo da antipolítica”.

De origem humilde e fortes valores religiosos, o cômico formado em teologia e especializado em economia caiu como uma luva para o FCN – partido fundado por ex-militares radicais, envolvidos nas diversas ditaduras que dominaram a Guatemala até 1985.

Abertamente contra o aborto, o casamento homoafetivo e a legalização da maconha, Jimmy tem dificuldade em se reconhecer um conservador. Seu lema de campanha, “nem ladrão, nem corrupto”, ajuda a traduzir o sentimento em torno do pleito que lhe deu a presidência – a ausência de propostas concretas também.

“Uma vitória em negativo”, como resumiu Jan Martinez. O novo presidente prefere a denominação “anticlasse política”.

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Ainda que encontrássemos um paralelo à altura na TV brasileira, “Moralejas” – programa que Jimmy protagoniza com o seu irmão mais velho, Sammy, todos os domingos, às 20h30 – seria difícil ficar num só exemplo. Cenários e produção de esquetes lembram os tempos semi-amadores do grupo “Hermes & Renato”, com piadas exageradas e forçadas (a la “A Praça É Nossa”), risadas falsas como em “Chaves”, e pitadas de humor preconceituosas – com direito ao uso da prática chamada ‘blackface’ (outrora uma vertente do humor, hoje considerada abertamente racista, em que brancos se pintam para parecerem negros e reforçar o estereótipo negativo). O fato é que “Black Pitaya” e suas outras personagens estampam as telas da TV aberta há 15 anos ininterruptos.

Gloria Alvarez, cientista política que recentemente esteve no Brasil, onde deu entrevistas e participou de palestras, caracteriza a Guatemala como “um país bastante caudilhista, onde as pessoas se sentiam inferiorizadas; sempre abaixavam a cabeça para o governo”. Alvarez é guatemalteca e se declara libertarianista – conceito de direita relativamente novo na política, em que liberdade econômica (livre mercado) se alia às liberdades individuais, outrora bandeira de progressistas. Ela vai adiante, classificando o voto em Jimmy como voto de protesto contra o ex-preferido Manuel Baldizón, descrito como um milionário excêntrico populista (e que acabou fora mesmo do 2º turno). Um “voto antipopulista”, acima de tudo, em sua visão.

Eric Nepomuceno prega cautela quanto a terminação, “Acho que devemos ter muito cuidado ao usarmos a palavra ‘populismo’. Ela costuma ser esgrimida pelos conservadores e pelos reacionários cada vez que surge algum governo com projetos de mudança social e em defesa dos abandonados de sempre”. Eric já trabalhou como correspondente na Argentina, além de traduzir grandes nomes da literatura sul-americana, como Gabriel García Márquez.

O conceito de populismo tem sofrido alterações e disputas – ou empurrões – para diferentes lados no espectro político dos últimos anos. Suas raízes datam do século XIX, de sentido anti-intelectual, quando na Rússia era usado para designar quem defendia aprender com o povo antes de se propor a dirigi-lo. A terminologia permaneceu na geladeira até a década de 1950, quando o sociólogo Edward Shills a empregou para descrever movimentos que inflavam as massas contra as elites – como um guarda-chuvas capaz de cobrir tanto o nazismo quanto o bolchevismo, antagônicos. Enfim foi identificada mais nas análises sobre os caudilhistas do início do século passado, sobretudo seus representantes latino-americanos: Vargas (no Brasil), Perón (na Argentina), Alessandri (Chile) e Cárdenas (México).

De fato, o grupo de líderes acima descrito procurou expandir direitos sociais como forma de pavimentar sua estadia no poder, tutelando as massas desses países no sentido de ajudar na transição para uma sociedade industrial urbana. Um movimento reformista, como descreve o historiador e professor da UNESP Alberto Aggio: “É a partir desse contexto que o confronto aberto de classes cede seu lugar a uma integração determinada das massas no interior dos sistemas políticos nacionais”.

Apolíticos e populistas, ainda que tenham vantagem em aspectos semelhantes, não são idênticos.

“Não podemos confundir candidatos populistas com candidatos apolíticos. Ambos tendem a criar lealdades eleitorais com base no carisma, mas os primeiros tendem a ter agenda, os segundos, não”, evidencia Diego Corrêa. “Eles são carismáticos, possuem fracos vínculos partidários, mas não têm uma agenda social clara.”

No quadro específico guatemalteco, o pitoresco de um presidente comediante, a gestão da insatisfação dos indignados ou até o personalismo político, em última instância, podem ter contribuído para que relações mais profundas fossem pouco exploradas nas eleições. Representantes do FCN, partido de Morales, estão envolvidos em escândalos de confronto e assassinatos de indígenas — como o tenente-coronel Edgar Justino Ovalle Maldonado, acusado de participar de 77 massacres no distrito de Quiché, onde predomina a etnia Ixil, de origem maia, entre 1981 e 82. Simbolicamente ou não, foi ele quem convidou publicamente Jimmy para o FCN em 2012, um sinal de que o governo que vem por aí pode não ser nada cômico.

Jimmy Morales em ação como comediante na TV

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