Farmácias uruguaias começam a vender maconha em junho 2
Sociedade

Farmácias uruguaias venderão maconha em junho

Previsão do governo uruguaio é que cada grama custe no máximo R$ 4,80; Calle2 entrevista deputado federal que liderou regulamentação da droga

em 23/02/2016 • 22h00
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A última etapa do processo de legalização da maconha no Uruguai está prevista para chegar ao consumidor final ainda no primeiro semestre de 2016. Em outubro do ano passado, o presidente da Junta Nacional de Drogas do Uruguai, Juan Andrés Roballo, anunciou o prazo de oito meses para que a cannabis seja comercializada diretamente nas farmácias registradas pelo governo, quase três anos depois da regulamentação da erva, ocorrida durante a gestão do então presidente José ‘Pepe’ Mujica, em 2013.

O anúncio ocorreu após o governo concluir o processo licitatório e conceder a permissão para duas empresas produzirem a maconha que será vendida nas farmácias – a expectativa é que até cinco companhias sejam licitadas. As vencedoras da primeira etapa são a Simbiosis (de capital uruguaio e argentino) e a Iccorp (de capital estrangeiro), cujos investimentos iniciais, segundo o IRCCA (Instituto de Regulação e Controle da Cannabis), foram de US$ 600 mil e US$ 800 mil, respectivamente.

O Uruguai é o primeiro país do mundo a legalizar e a regulamentar a venda, a produção e o consumo da erva. Será também o primeiro a oferecer a maconha em farmácias para uso recreativo (em alguns países, como Holanda, a venda é liberada, mas em coffees shops, e em alguns Estados americanos, é permitida a venda para uso medicinal).

Estima-se que, dos 3,5 milhões de uruguaios, 160 mil são consumidores de cannabis. Há registro de 3.000 cultivadores individuais, embora especula-se que o número real chegue a 10 mil. No país inteiro, são mais de 500 clubes de cultivo, mas apenas sete deles têm registro no IRCCA. Até o momento, o cultivo individual e os clubes de cultivo são as únicas formas de aceder à maconha legal (que podem plantar, mas não vender).

Quando a venda em farmácias estiver em atividade, cidadãos e residentes uruguaios acima de 18 anos poderão comprar até 40 gramas mensais, ou dez gramas semanais, da flor da maconha (parte da erva que pode ser consumida). A previsão do governo uruguaio é que cada grama custe no máximo US$ 1,20 (cerca de R$ 4,80) e renda três baseados, ou seja, o custo de cada cigarro seria de aproximadamente R$ 1,60.

Um dos parlamentares e líderes políticos mais ativos neste processo de regulamentação da maconha no Uruguai é Sebastián Sabini, jovem deputado federal de 34 anos que foi eleito pelo Movimento de Participação – partido de esquerda que integra a Frente Ampla, que venceu as últimas três eleições presidenciais no Uruguai, dando a vitória a Tabaré Vasquez e a Mujica.

Sabini recebeu a Calle2 em sua sala na Câmara dos Deputados e falou sobre as disputas políticas, os efeitos da legalização, o combate ao narcotráfico e o impacto da batalha contra as drogas para os pobres e para os países latino-americanos.

Contexto uruguaio
“O consumo não está penalizado. Ninguém deve ser preso por consumir drogas no Uruguai, o que é diferente dos outros países latino-americanos. Hoje, é ilegal comprar, mas já não é ilegal ter e consumir a droga. Como faziam os usuários para ter esse direito jurídico? Compravam. Ou seja, se for para consumo, tudo bem, mas se for para venda, será preso. Isso gera uma insegurança jurídica muito grande. Há quatro anos, um deputado da oposição apresentou um projeto para o autocultivo e também para aumentar as penas para o tráfico. Isso gerou forte reação na oposição e na população. Houve, então, uma aliança interpartidária para não aumentar as penas e para legalizar o autocultivo para uso medicinal e recreativo. Assim que o projeto foi apresentado, nos aproximamos de outros partidos para ter apoio consensual. Aí entra Pepe Mujica. Ele sempre disse que é um problema de segurança, não só de direito individual e que era preciso regular a venda também, que o Estado tem que controlar. Então ele enviou ao parlamento mais um projeto. Ao mesmo tempo, uma senhora e um trabalhador foram presos – cultivavam, respectivamente 30 e dez plantas em casa. Por isso, o movimento social passa a crescer e apoia a lei. O projeto final, que regularia o autocultivo, os clubes, o uso medicinal, o uso industrial e a venda perdeu apoio da oposição. Os deputados, em setembro de 2013, e os senadores, em novembro, aprovaram o texto final e desde de dezembro está vigente a lei. Hoje, a lei inclui registro de autocultivadores, habilitação de clubes, licença para primeiras investigações científicas e permissão para plantação industrial. O processo de seleção para plantar e vender em farmácias ainda está ocorrendo.”

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Vendas nas farmácias
“Temos dados de pesquisas que confirmam que o consumo está estável. Perguntamos aos cidadãos se comprariam na farmácia e a maioria, 80%, respondeu que sim, e só 20% disseram que recorreriam aos demais meios [autocultivo e clubes de cultivo]. Hoje, 100% da venda está na mão do tráfico. Então, a venda nas farmácias é o que deve competir de fato com o mercado negro. O modelo não está totalmente claro, só sabemos que será vendida a flor, já seca, embalada a vácuo, pronta para o consumo e em cinco tipos diferentes de potência (concentração de THC). Mas não está definido se serão vendidos cigarros ou gramas soltas. Suponho que, até o segundo trimestre de 2016, já esteja funcionando a venda na farmácia para uso recreativo. Serão até 40 gramas por mês, com registro nominal individual e só para pessoas adultas. Não poderá haver publicidade de produtos, como álcool e tabaco. Não temos aumento no consumo, o que é um indicador bom, mas precisamos esperar funcionar o sistema.”

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Empresas selecionadas
“Para uso medicinal e industrial, o poder executivo estabelece uma série de critérios e um dos mais importantes é mostrar a origem do capital de investimento para não permitir lavagem de dinheiro; além disso, o produtor não pode ter antecedentes criminais. Quem dá a licença [para produção] é o IRRCA (Instituto de Regulação e Controle da Cannabis).”

Mercado negro
“Como o acesso não está 100% regulado, quem não tem amigos cultivadores ou é não é sócio de clube ainda compra no mercado negro, mas esse espaço está diminuindo. Estamos mudando a lógica, já que os clubes atraem muita gente porque costumam ter um produto de melhor qualidade.”

Clubes de cultivo
“São associações sem fins lucrativos que têm, no máximo, 45 membros e até 99 plantas, segundo a lei. Eles têm que ter secretário de atas, comissão fiscal, diretivas e sede de funcionamento. Sócios pagam a cota, recebem a cannabis e têm que participar das atividades dos clubes – cada clube tem funcionamento próprio. Hoje, há sete clubes legalizados e mais uns dez em trâmite. É uma experiência muito nova e limitamos números de sócios porque tivemos o exemplo da Espanha [que permite clubes sociais de maconha], que teve movimentação financeira estranha e interesses nada comunitários, mas de lucros.”

Indústria e economia
“Quando se legalizou a venda [para uso medicinal] no Colorado (EUA), no meio da crise mundial [2008], foi usado o argumento da ordem econômica. É um mercado muito grande e o potencial econômico da nossa lei não é tão grande quanto deveria na questão da venda ao exterior. O litro de CBD concentrado [substância presente na Cannabis sativa que pode ter efeito benéfico em tratamento de ansiedade, Alzheimer e esquizofrenia, entre outros] tem valor gigante no mercado, todas as farmacêuticas de cannabis a querem, sobretudo as dos países ricos. Tanto que o cânhamo tem milhões de utilizações e a flor tem outras tantas utilidades medicinais. No mundo, os princípios ativos não estão proibidos, o que é meio ilógico, já que não se pode manusear o CBD ou as sementes. O Uruguai tem uma oportunidade muito grande. Todo mundo está nos olhando para ver como vai acontecer, mas, sim, é uma janela de oportunidade enorme e temos que aproveitá-la, muito mais em um contexto de crise. Contudo, ainda não temos expectativa de retorno financeiro, é muito cedo.”

Motivação pessoal
“Uma política proibicionista não é razoável sob nenhum ponto de vista: nem moral, nem econômico, nem político, nem cultural.

A proibição gera muito mais problemas que soluções: problemas de saúde, de segurança, de direitos. Temos que ser sensatos e respeitar os direitos humanos. Só se contam os mortos na área da saúde, mas não contamos os mortos decorrentes de prisões, de assassinatos, do narcotráfico.... A proibição é um rotundo fracasso. A guerra contra as drogas é uma guerra contra os pobres.

Do ponto de vista global, há um hemisfério Norte consumidor de drogas e um hemisfério Sul produtor. Em retribuição, o Norte vende armas ao Sul, e nossos países sofrem as consequências negativas. Isso gera sensação de impunidade. Brasil, México e Colômbia tiveram forte influência de bases norte-americanas, que deram apoio militar a países centro-americanos também. Temos que pensar na geopolítica das drogas, em como o Norte, especialmente os Estados Unidos, tem interferido na América Latina para capacitar exércitos e vender armas. Os que saem mais prejudicados somos nós, países do Sul. Na Colômbia, Paraguai e México, o dinheiro do narcotráfico banca campanha de políticos e até de presidentes. É uma indústria gigantesca, que prejudica especialmente os mais pobres – são eles que morrem ou que vão presos. Brancos e ricos não vão presos por porte, não são considerados traficantes e têm bons advogados. O mundo investe milhões e milhões de dólares para uma política [proibicionista] que não funciona, temos celas lotadas e nada é resolvido. Usaremos os recursos da regulamentação da cannabis no Uruguai para melhorar o sistema de educação e de saúde. Nos países que veem o problema desse modo, há menos consumo problemático e menos mercado negro. Temos que ver essas experiências exitosas, como Portugal e Holanda. É tema geopolítico ligado com noções de classes.”

Popularidade da lei
“A lei nunca teve aprovação da população maior que 36%. Mesmo assim, Mujica não só a apoiou como promoveu a medida, levando em conta a experiência do álcool e da lei seca. Ele entende que o problema não é a maconha, mas a máfia e o mercado negro, e como eles corrompem setores sociais, como a Justiça e a polícia, por meio de recursos financeiros. O problema mais grave não é a droga, mas o mercado ilegal. Era preciso regular. O Uruguai sempre foi liberal, o consumo em vias públicas sempre foi relativamente normal – ver gente fumando na praça era natural. Mesmo assim, não é uma lei popular no Uruguai, temos isso claro.”

Turismo cannábico
“O narcotráfico continuará sendo combatido como é até agora. Os turistas sempre souberam que o Uruguai é um pais liberal em relação a drogas e vinham comprar cannabis e cocaína aqui. Até por isso determinamos 40 gramas mensais como um limite. Comprar no Uruguai e levar ao Brasil é ilegal – no Brasil. Faz parte da jurisprudência internacional que algo seja legal em um país e não seja no outro, e o que tentamos é não entorpecer as relações internacionais e não causar problemas para Brasil e para Argentina. Por isso a limitação de quantidade.”

Relações com estrangeiros
“O sistema de imigração permite cruzar fronteiras facilmente, mas não é problema para nós. O porte é legal no Uruguai e na Argentina até certo ponto e em breve no Brasil deve ser também. O sistema é pensado para os uruguaios e residentes. Governos do Brasil e da Argentina estão tranquilos sobre isso, eles não promoveram nenhum tipo de pressão – se aconteceu, foi somente em nível executivo.”

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