‘Estamos dando um passo atrás’, diz Letícia Sabatella
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‘Estamos dando um passo atrás’, diz Letícia Sabatella

Atriz critica governo Temer mas defende que ainda há tempo para reformar o Congresso e empoderar o cidadão; confira entrevista exclusiva à Calle2

em 31/05/2016 • 01h00
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A voz suave, calma e serena contrasta com o espírito guerreiro e ativista de Letícia Sabatella, que está sempre envolvida em alguma causa, seja ela ambiental ou política. Em entrevista concedida um dia antes da recriação do Ministério da Cultura (MinC) pelo governo interino de Michel Temer, a atriz deixou clara sua posição em relação ao cenário nacional ao escolher o local de nosso encontro: o edifício Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, onde manifestantes continuam ocupando dois andares contra o governo do presidente em exercício Michel Temer.

Já avançava a noite quando a atriz e cantora avisou que estava saindo de casa para prestigiar a ocupação. O relógio marcava mais de 22h quando conseguimos nos encontrar no pilotis do edifício, lotado, onde estava montado o palco. Ali, horas antes, havia cantado Caetano Veloso. Letícia estava protegida em uma pequena área cercada atrás do tablado, com acesso restrito, por questões de segurança. Sempre simpática, atendia aos pedidos dos fãs, que do outro lado de grade de proteção pediam selfies.

Depois de reservar um tempo para gravar um vídeo em apoio à causa para a Mídia Ninja e cantar em espanhol acompanhada de um amigo ao violão, a atriz foi chamada para discursar no palco. “Cultura é a riqueza que nos inspira, que sai de dentro, transforma, que revoluciona a História, e é nosso caminho de transformação”. Era um pouco antes da meia-noite quando Letícia concedeu a entrevista à Calle2. Na conversa, ela explica porque considera um golpe o impeachment da presidente eleita Dilma Rousseff, comenta seu encontro com o Papa Francisco, fala sobre a Rede Globo e não poupa críticas ao governo Temer.

Como você se sente, agora, após o afastamento da presidente?

É um momento extremamente difícil, doloroso, mas que tem sua beleza. Ao mesmo tempo em que tem muita reação contrária, também é muito forte e bonito o que vem a favor, o que tem de agregador. O calor e o amor. As pessoas se reconhecem e se encontram, até pessoas que estavam veementemente a favor do golpe e do impeachment. De repente, elas começam a se questionar, a conversar e o diálogo começa a acontecer. Ainda existem pessoas que estão insistindo em não perder aquele ponto de vista arraigado, mesmo diante dos fatos estarem se revelando. O impeachment é só a ponta de um iceberg, mas se olhar o todo, a base, é possível ver o que significa de catastrófico para a população, para a sociedade brasileira e, principalmente, para os mais pobres. As retiradas de direitos vão se revelando à medida que vamos chegando perto.

Gostaria que você comentasse sobre o fato de ter defendido, publicamente, em seu Facebook, o ator Marcelo Serrado, que tinha ido na passeata pró-impeachment e depois foi ridicularizado nas redes sociais quando decidiram acabar com o MinC.

Fiquei ao lado dele porque sei que o que está movimentando a massa e as pessoas é uma grande fonte de desinformação. Eu mesma já acreditei em tantas coisas e que depois vão se revelando… Sofri bastante com essa agressividade doentia [Letícia recebeu mensagens de ódio nas redes sociais, por conta de sua posição política, e sua página no Facebook chegou a ser bloqueada]. Não é um questionamento saudável, nem embasado, mas em cima de mentira, de calúnia. Me acusaram “de ter pego R$ 1,5 milhão da Lei Rouanet”, de ser “vendida”. Existem blogues nocivos, que criam memes ou posts cheios de mentiras. E as pessoas, que não leem mais nada a fundo, veem aquilo e replicam. Vejo uma sombra coletiva tomando conta, um ódio a petistas foi instaurado. E isso não se voltou para realmente acabar com a corrupção. O que a gente está vendo é que aumentou o número de corruptos com mais poder. A gente tinha um governo ocupando a presidência que permitiu que os políticos fossem punidos dentro do próprio partido.

Quais foram, na sua avaliação, os erros do PT?

O PT se sujou com as regras que governam esse país e fez uma distribuição de renda dentro do mesmo modelo de desenvolvimento. Empoderou os mesmos de sempre: os bancos e o agronegócio. É um esquema que também vem das coligações, da dificuldade que se tem de formar maioria no Congresso. É claro que têm muitas coisas para serem mudadas. O que a gente vê é que nosso país está aprendendo. E toda vez que alça um caminho de ser menos colônia de algum império, ele sofre um grande boicote imperialista. Isso tudo foi muito planejado, programado. Não ganhou no voto? Então vai na marra. O que a gente está vendo é que foi eleito um projeto de governo que está sendo deturpado e mudado, de forma radical, com a justificativa da crise.

Houve erros do PT sim, mas nada poderia justificar a derrocada que estamos tendo. Estamos tirando de novo daqueles que não podemos tirar. Tudo para alinhar com uma política norte-americana, que nunca permitiu uma resistência na América Latina e em outros países.
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Queria saber como foi a sua reunião com o Papa Francisco.

Fui a pedido dos movimentos populares que têm um diálogo aberto com o Papa. Eles formaram uma comissão de oito pessoas, mas o próprio Papa pediu para que, na audiência, fossem apenas duas. Ele queria um encontro em que pudesse ter um olhar mais direto nos olhos. Fomos para esse serviço.

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Como foi a conversa? Como você foi recebida?

Foi uma conversa de muito acolhimento. Ele nos escutou com muita atenção. Foi extremamente compreensivo e tem muita consciência do que está acontecendo como um todo.

Depois dessa conversa, o Papa fez uma declaração em apoio ao Brasil, pedindo paz, harmonia e diálogo. Você acha que é possível ter diálogo agora?

É necessário acabar com a polarização. Uma coisa que coloquei para ele foi essa sombra, esse ódio e a dificuldade de diálogo entre as pessoas. Agora, realmente, é muito difícil dialogar nos termos desse golpe, com o governo do Temer, que parece não estar sendo aceitável para grande maioria. Conversamos sobre a necessidade de as pessoas saírem um pouco de suas razões exacerbadas. 

Assim como o Dalai Lama, o Papa Francisco está conseguindo encarnar essa imagem da tolerância. Se conseguiu diálogo entre os Estados Unidos e Cuba, que dirá entre “coxinhas” e “petralhas”?! Quem sabe é possível? Tenho fé que a sombra de ódio é como uma gripe forte que passa num surto. Uma epidemia.
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Você já se disse favorável à ideia de que o Brasil está sofrendo um golpe. Mas queria que você explicasse por que acredita nisso.

Conversando com pessoas isentas sobre a questão jurídica, não há um crime de enriquecimento ilícito ou um crime administrativo significativo que justifique o que está acontecendo. Vejo também o que se armou para construir esse golpe: a vingança do Eduardo Cunha [ex-presidente da Câmara dos Deputados]. Além disso, estão dizendo que é a solução para crise, para os problemas do Brasil, mas é um governo que não atende a maioria, o povo, e sim uma minoria. Vejo que é golpe também porque, diante de uma crise mundial, se fomentou um bode expiatório e um partido. “A maior corrupção de todos os tempos”, “o único partido corrupto”, “o único político que deve ser preso”. Agiram para ocupar o lugar, tomar o poder e não para resolver o problema da corrupção. Não seria golpe se, de fato, estivessem fazendo a reforma política necessária. Sou oposição ao governo [petista] desde a época da transposição do Rio São Francisco. Sou fortemente oposição na questão indígena, na questão agrária, da política energética…

Mas você saiu em defesa do governo…

Não saí em defesa do governo. Saí em defesa da legalidade, da minha cidadania. Defendo as coisas boas que foram feitas nesse governo − elas mudaram país. Acho que um espaço foi ocupado ao se mexer na desigualdade e ascender socialmente 40 milhões de pessoas. Tirou alguns privilégios, democratizou um pouco. Não sei o quanto disso seria perene. Por isso, acho o Bolsa Família importante, tem que ter. Mas seria importante ter um modelo de desenvolvimento que não gerasse a miséria e a necessidade do Bolsa Família. Nisso eu questiono o governo [do PT]. Onde a gente mudou o modelo de desenvolvimento?

Nesse momento de crise, vejo uma oportunidade de a gente reformar o Congresso, reformar o cenário e empoderar o cidadão. Acho que ainda há tempo.

Mas, quando se estabelece uma eleição indireta para presidente, que impõe um plano de governo que não foi eleito − sendo que ele [Temer] tem menos de 2% de índice de aceitação e de popularidade − é golpe. E foi essa pessoa quem impediu a reforma política, né? Estamos dando um passo atrás. Estamos vendo a retirada dos direitos dos mais pobres, estamos tirando as políticas assistenciais, que nos permitiram ter um pouco mais de paz. Pensar em políticas de distribuição de bens, de reforma agrária, é muito necessário.

Temos uma dívida histórica e não podemos pensar só no momento presente. Somos o país que mais demorou para abolir a escravidão e que ainda tem escravos para sustentar esse sistema. Se não acabarmos com isso, não vamos ter um país desenvolvido. Acredito ainda na idoneidade da Dilma, como alguém que acredita no caminho que ela percorreu. Acredito que ela investiu em questões que ela considerou que iam empoderar, como as cotas para a universidade.

A maior justificativa para a destituição de Dilma é a crise econômica. Você não acha que o afastamento tem a ver com a crise econômica?

Uma crise pode fazer com que as pessoas se unam mais para tentar resolvê-la, para passarem por ela e lidarem com ela. Mas também pode fomentar a situação mostrada na frase “farinha pouca, meu pirão primeiro”, para defender o seu lucro.

Não acha que foi a crise econômica que fomentou essa distância entre as pessoas, principalmente, essa revolta social?

Quando falta comida, você vai ver muitas coisas se romperem. Mas, com crise ou sem crise, nada justifica uma tomada de poder como a que aconteceu agora e a diminuição de direitos de todos os cidadãos. Vamos conseguir passar a crise, porque temos recursos, matrizes energéticas, temos como superá-la. Mas transformar essa crise em um estado de sítio, para que um grupo mais ligado à elite tome de volta a cadeira cativa? Não é uma boa solução.

E como estamos no edifício Gustavo Capanema, não poderia deixar de perguntar: o que você acha do fim do Ministério da Cultura [entrevista concedida um dia antes da recriação do MinC]?

A Cultura é extremamente reveladora da nossa alma. Quando conheci a tribo Krahô, ela era absurdamente isolada da cidade vizinha, Itacajá (TO). Eles eram mal vistos e não eram reconhecidos pela riqueza cultural, milenar e ancestral que têm. Eu, como atriz que trabalhava na televisão, tinha espaço e me senti na obrigação de fazer algo por eles. Decidi fazer um documentário [Hotxuá, dirigido por Sabatella]. Tudo ali é cultura, uma cultura utilitária. A pintura que fazem no corpo, com urucum e jenipapo, serve tanto de protetor solar como para espantar mosquito. A cabaça em que servem a água, a maneira como é feita a casa… A cultura é o motor de uma sociedade. E quando a gente vê um governo interino diminuir a importância disso, ele está simbolicamente e efetivamente dizendo: “Ser essencialmente brasileiro, impregnado da cultura brasileira, não é mais importante.” E, dessa forma, ficamos sujeitos a consumir o que vem de fora, a sermos dominados culturalmente.

Diante da pressão dos artistas, o ministro da Educação, Mendonça Filho, prometeu mais recursos para a nova Secretaria. O que você acha dessa atitude?

Acho que qualquer mitigação agora é muito perigosa, diante de tantos outros setores que estão perdendo direitos também.

Não me sinto nem um pouco à vontade em defender somente o Ministério da Cultura. Me sinto à vontade em defender o país, a democracia, a cidadania, o combate à corrupção, a transparência e os movimentos populares que existem.

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Qual o papel dos artistas na militância política?

É função sagrada do ator lidar com esse inconsciente coletivo. Todo ator tem que ir atrás de onde o povo está. A arte tem uma função de transcendência sobre o ser humano, de si mesmo, do opressivo. É uma ferramenta de superação de dificuldades. O ator e a arte são absolutamente necessários para enfrentar uma crise. Qualquer movimento de resistência precisa disso para suportar a dificuldade que é você estar ao relento, comendo e dormindo pouco. Não existe isso de você separar o artista de uma ação cidadã.

A Globo é acusada pela esquerda de ser uma das maiores apoiadoras do golpe nesse momento. Como funcionária, como vê o papel da emissora?

Do ponto de vista pessoal, o que posso dizer? Joio e trigo estão misturados dentro de mim. Participei de projetos muito transformadores na Globo, muito importantes para minha formação. Passou um documentário maravilhoso do Estevão Ciavatta, “Amazônia S.A”, no Fantástico. Foi o trabalho de maior qualidade que já vi sobre o tema. Falava de políticos, do sistema, do desmatamento, dava voz a pessoas que não teriam voz na grande mídia… Me surpreendo com o que tem ali dentro. É um espaço maravilhoso de transformação.

Tendo a reiterar isso: existem joio e trigo em toda parte. E a honestidade tem que estar dentro da gente, para podermos ver e tomar como base as informações que são mais verdadeiras. As pessoas não estão se informando só pela Globo. Elas estão acreditando em qualquer coisa.

Não assisto muito televisão para poder falar. A internet e a leitura ocupam mais meu espaço de informação, gosto da TV como entretenimento. Às vezes, ligo a TV e vejo uma informação em um caminho correto e outras que vão por caminhos que eu não corroboro, no mesmo canal. A própria Folha de S. Paulo tem diversos colunistas. Um fala uma coisa e outro fala outra. Há pensamentos divergentes dentro do próprio jornal. Acho que o ódio maior vem de pessoas que veem memes e leem blogs.

Procuro me informar em uma linha ideológica diferente da minha. Sou desconfiada. Desconfiar é uma essência necessária. É ir atrás. Por má fé ou por engano, quem conta um conto, pode sempre aumentar um ponto. É muito legal ir na fonte.

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Tem tido também muita notícia falsa na internet, dos dois lados. Você acha que isso propaga ódio na rede?

Sim, dos dois lados. Eu percebi menos do lado da esquerda, mas percebi. Percebi pessoas querendo construir uma realidade que ainda não existia, mas tentando antecipar algo que não aconteceu. Mas vi muito e de forma avassaladora a intolerância de quem apoia esse impeachment. Muita ignorância, sabe?

E você tem alguma outra bandeira política agora?

Sim, tem um projeto muito bacana que participei. O Cidades Sustentáveis, com as prefeituras. Faz parte da agenda 2015 da ONU e algo que acho muito bacana. É o caminho que empodera a cidadania. As pessoas têm como base preceitos de desenvolvimentos sustentáveis universais. De demandas de nosso tempo, do nosso planeta. São ferramentas para cobrar das prefeituras um compromisso com esse desenvolvimento sustentável, que vai desde desmatamento zero ao combate à fome.

Queria que você falasse um pouco sobre a sua carreira, sobre a Antônia, sua personagem em “Liberdade, Liberdade”. Ela era contra a militância do Tiradentes.

É! Ela achava balela esse idealismo dele. Cara frouxo, não cuida da filha! Ela era pragmática. Ele era idealista.

Mas ela era muito guerreira também.

É, ela era uma jaguatirica, uma selvagem. Achei bem legal de emprestar isso ao personagem, que imprimiu algo da personalidade da mãe na Joaquina [protagonista da novela, vivida por Mel Maia, na primeira fase da história]. Essa filha vir de uma mulher arretada, mãe solteira, combativa, que tem que colocar comida na mesa, sem Bolsa Família [risos]. E ela que ainda tirava os dentes também de quem pedisse. Trabalho pesado. Ela era o pragmatismo em pessoa.

Ela se parece com você de alguma forma?

Ela é o tipo de pessoa que admiro profundamente, mas sou sonhadora.

Você é mais o Tiradentes?

Sou bastante o Tiradentes. Mas também sou apaixonada por essas mulheres que ralam. Mesmo que esse poder que ela tenha seja inconsciente. Essa mulher que tem a vida em função de trabalhar e sustentar o filho. De algum modo, vivi isso também. Dar conta de trabalhar em três turnos para fazer o que eu queria e garantir a saúde da minha filha.

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Mesmo após a longa entrevista, de mais de uma hora de duração, nitidamente cansada, a atriz quis conhecer onde estavam dormindo os ocupantes do histórico edifício Gustavo Capanema, no segundo andar – piso em que se encontra um painel do pintor Cândido Portinari e um tapete desenhado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, ambos devidamente protegidos por uma fita de isolamento. Conversou com alguns poucos manifestantes que estavam acordados, fez uma contribuição e, na volta para casa, ainda deu uma carona para a repórter que lhes escreve.

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