Exportação latino-americana mantém padrão colonial
Análise

Dependência de commodities aumenta desigualdade

Estudos mostram que há  uma relação inversa entre a variedade econômica e desigualdade de renda; para especialistas, governos de esquerda e de direita falharam na retomada do crescimento com base industrial

em 01/11/2016 • 10h07
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As commodities e seus derivados foram a classe de produtos que mais cresceu nas cestas de exportação da América Latina nos últimos 20 anos, não apenas em volume e valor total como também em participação. Essa tendência se caracteriza como uma reprimarização da economia, ou seja, uma perda de complexidade.

Ainda que o cenário não possa ser generalizado para todos os países da região, a grande maioria possui uma cesta de produtos que se parece cada vez mais com a das colônias entre os séculos 16 e 19, quando os principais itens de exportação desta área do globo eram madeira e minerais preciosos, complementados depois pela cana-de-açúcar, café, cacau e carne.

Pesquisas recentes demonstram que sem uma economia complexa e diversificada, é quase impossível superar as desigualdades, em especial a de renda.

Entre as 10 principais classes de produtos de exportação de cada país latino (pelo padrão HS4), praticamente todas são de commodities. Há exceções, como no próprio Brasil, que ainda mantém máquinas e veículos entre os principais itens da cesta, ou a Argentina, cuja indústria automotiva foi responsável pela entrada de US$ 6 bilhões em 2015, equivalente a 10% do valor das exportações, configurando-se como segundo item mais importante.

O México é um caso à parte, com exportações predominantemente de itens manufaturados como veículos (23%), eletrônicos (21%) e maquinário (15%). Porém, é sabido que boa parte da indústria mexicana se caracteriza por fábricas “maquiladoras”, especializadas apenas na montagem final dos produtos, aproveitando-se da mão de obra barata. Já a Venezuela talvez seja o exemplo mais grave de dependência em uma commodity, com o petróleo responsável por 90% de toda a receita com exportações.

De acordo com dados de 2015 do International Trade Centre (Centro de Comércio Internacional), no Brasil as sementes oleaginosas – em especial a soja – e seus derivados lideraram o ranking, abarcando 11% do valor das exportações, seguidas dos minerais, com 9%.

No resto da América Latina o cenário não é muito diferente. Vegetais e forragem animal lideram as exportações argentinas com 19%; no Equador é o petróleo cru, com 36%; no Peru são os minerais com 30% e no Chile o cobre, com 27% da cesta. O petróleo ainda aparece como principal item no Paraguai e na Colômbia, responsável por 25% e 52% do valor das exportações, respectivamente.

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A título de comparação, nos Estados Unidos, maquinário, reatores nucleares e similares são os principais produtos da cesta de exportações (13%); na China são equipamentos eletrônicos (26%) e na Alemanha são veículos (18%).

“Vejo um forte paralelo com a divisão internacional do trabalho que observamos durante o período colonial até os anos 1930”, afirma Clément Doleac, pesquisador associado do Conselho para Assuntos do Hemisfério (COHA).

“Acredito que, historicamente, o Terceiro Mundo tem sido economicamente explorado pelos países do Norte e a teoria da dependência continua extremamente realista, se você excluir a China, que é a principal exceção”.

Relembrando o clássico livro de Eduardo Galeano, “Veias Abertas da América Latina”, o pesquisador questiona: “Seria o papel da United Fruit Company no século 20 é tão diferente da Monsanto hoje?”

A perda de complexidade das economias latino-americanas não é fenômeno recente. Esse movimento começou nos anos 1980, com a adoção de políticas macroeconômicas contracionistas após a crise inflacionária que assolou a região. Há quem afirme que essa crise foi parcialmente causada pelas políticas de substituições de importações que foram adotadas nas décadas anteriores, porém, é inegável que sua dimensão se deve às medidas pró-cíclicas adotadas na época e à evolução do mercado internacional, que ainda corroborou com o processo de desindustrialização.

Enquanto os países latinos se endividavam ainda mais com credores internacionais e adotavam políticas liberais, os países do norte protegiam seus produtores. Em artigo de 1987, a atual presidente do BNDES, Maria Silvia Bastos Marques, e Paulo Nogueira Batista Jr, atual diretor-executivo do FMI, afirmavam que “o protecionismo dos países industrializados representa um obstáculo poderoso à solução do problema da dívida externa latino-americana”.

Estimava-se em US$ 106 bilhões a transferência de recursos financeiros realizada pela América Latina entre 1982 e 1985. Segundo os autores, o impacto profundamente negativo desta transferência foi magnificado pelo lento crescimento do comércio mundial e por uma acentuada deterioração nos termos de troca.

Os anos 1990 viram a estabilização da economia latina em meio à onda de privatizações. Mesmo com a chegada de governos tidos como de esquerda ou progressistas no início dos anos 2000, o movimento de reprimarização continuou em boa parte da região. Pode-se dizer que o incentivo foi até maior, com o superciclo das commodities impulsionado pelo crescimento chinês. Porém, ocorreu uma mudança considerável na aplicação do dinheiro proveniente das exportações, que passou a ser utilizado na construção de um ainda incipiente estado de bem-estar social.

Para Clément Doleac, “é uma escolha de política pública investir o dinheiro em bem-estar e em consumo local”. Essa decisão promoveu o crescimento na Bolívia, Equador, Venezuela, Argentina e Brasil. “Esses países cresceram por causa de um aumento da classe média, não por causa do boom das commodities. Quando você estimula o bem-estar social, está dando, em termos práticos, mais dinheiro para os pobres, o que incrementa o consumo e gera crescimento”, afirma.

Ainda assim, os esforços não foram suficientes para incentivar a industrialização.

'Os governos da guinada à esquerda falharam, na minha opinião, em retomar um regime de crescimento com uma base industrial', avalia Doleac.

Para ele, há duas maneiras pelas quais esse objetivo poderia ter sido atingido. Uma é aquela adotada pelo México, ao receber empresas manufatureiras estrangeiras e incrementar lentamente o capital humano, buscando aumentar os setores altamente especializados. “Até agora essa é uma derrota de 20 anos, desde que integraram o NAFTA, uma vez que são uma das economias que cresce mais lentamente na região”, concluiu.

A outra maneira seria implementar políticas de substituição de importações, similares àquelas que foram amplamente adotadas na América Latina a partir de 1930 e depois mais intensamente entre os anos 1960 e 1970. Isso significaria jogar com as tarifas de importação e exportação, fazer investimentos maciços na indústria local ou promover joint ventures e desenvolver a educação e o capital humano.

Por mais que a política de substituição de importações tenha sido bem-sucedida em promover o crescimento da indústria e do Produto Interno Bruto de muitos países, ela também acarretou problemas macroeconômicos como a falta de competitividade no mercado externo e  endividamento dos governos para financiar grandes obras. Além disso, hoje a dinâmica da economia global é muito mais instável.

De acordo com o professor Dani Rodrik da Universidade de Harvard, as mudanças estruturais na economia global estão fazendo os países atingirem o “pico” da industrialização em níveis cada vez mais baixos de renda, em parte porque a demanda tem se voltado cada vez mais para serviços e com a crescente automação, a industrialização gera cada vez menos empregos diretos. Assim, a tradicional “escada para o desenvolvimento” por meio da manufatura, que proporcionaria aumento de produtividade e mais postos de trabalho bem remunerados, estaria comprometida.

Por outro lado, há fortes indícios de que os países exportadores de produtos complexos têm menos desigualdade de renda do que os países que exportam produtos mais simples. Além disso, o aumento da complexidade econômica tende a vir acompanhado por reduções na desigualdade de renda.

Essa é a conclusão do estudo “Linkando Complexidade Econômica, Instituições e Desigualdade de Renda”, publicado por Cesar Hidalgo e colegas no Observatório da Complexidade Econômica, do Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT).

Utilizando métodos de econometria e ciência de redes, os autores do trabalho afirmam que há uma correlação forte e robusta entre o índice de complexidade econômica e desigualdade de renda. Ainda assim, eles ponderam que as estruturas produtivas não são os únicos determinantes da desigualdade de renda, pois há outros fatores relacionados, como educação e solidez das instituições.

Para Doleac “focar em commodites é uma barreira ao desenvolvimento social a longo prazo, uma vez que a mineração e o uso de combustíveis fósseis e derivados são extremamente prejudiciais ao meio ambiente”.

Para ele, a única maneira de se desenvolver com prosperidade é estabelecer o salário mínimo com alto poder de compra, ter forte segurança social e democracia, garantindo que trabalhadores tenha palavra na decisão de políticas relacionadas ao desenvolvimento econômico, assim como em seus locais de trabalho.

“Não importa o regime de industrialização escolhido, não é possível aceitar políticas públicas baseadas no livre mercado ou na inexistência de um mercado: é preciso haver um equilíbrio entre os dois, combinados. Com graus de regulação e controle público, é possível alcançar resultados melhores”, conclui. Ainda assim, ele acredita que é possível reduzir a desigualdade em países não industrializados, como é possível haver pobreza e desigualdade em países altamente industrializados como Estados Unidos ou China.

Questionado sobre as recentes mudanças de governo nos países latinos, como Argentina e Brasil,  o pesquisador é enfático: “Governos neoliberais e de direita não fizeram um bom trabalho ao  industrializar seus países nas décadas de 1980 e 1990. Se você abrir amplamente as economias sul-americanas, terá um foco direto em commodities e trabalhos de baixa remuneração que geram pouco valor (low-paid low-value) de empresas que remetem os lucros para fora do país. Não é possível prosperar dessa maneira. Esses governos são tão focados na ideia de se integrar a economia mundial que não deixam outra opção”.

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