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Fotografia

Crack, a peste contemporânea

O fotógrafo e artista plástico Zarella Neto, autor da “Nossa Senhora do Crack”, publica ensaio fotográfico inédito sobre os meses de convivência com usuários que frequentam a Cracolândia

em 12/01/2016 • 21h00
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O fotógrafo e artista plástico Zarella Neto, 38 anos, nasceu e cresceu na rua Dino Bueno, na Barra Funda, em São Paulo, região há anos dominada pelos zumbis contemporâneos vítimas do crack. É ali, a poucos metros da cracolândia, que Neto tem seu estúdio de fotografia. “Brincava no casarão da alameda Nothmann [que virou o “centro” do crack]. A irmã de um amigo fazia pasta de coca lá. Tinha um super cheiro de bicarbonato, a gente não entendia muito”.

Passou praticamente a vida inteira vizinho àquela realidade. Garoto do bairro, foi trabalhar como office-boy de luxo na Folha de S.Paulo. Ia a pé para o trabalho e com sua sensibilidade e consciência de classe ainda embrionária, não demorou muito para perceber a triste realidade de sua região.

Fã da fotografia, começou  ali, no laboratório da Folha, a dar seus primeiros passos em direção ao sonho de um dia virar um fotógrafo. Reconhecido por seu trabalho, Neto foi seis vezes vencedor do Festival de Cannes de Publicidade (ganhou dois prêmios máximos, de ouro, e quatro de bronze) e venceu também o prêmio El Ojo Iberoamericano em 2005. Mas nunca deixou o lado social de sua arte. Até que um dia teve uma ideia que lhe renderia seus dias de fama. “Vivendo onde vivi e vendo desgraça rolando, teve uma hora que eu não conseguia mais não lidar.”

Neto de imigrantes italianos, o fotógrafo sempre teve ligação com a fé e com símbolos religiosos. Ele então foi um dia ao bairro Liberdade, comprou uma imagem de Nossa Senhora de gesso, pintou à mão alguns detalhes em dourado e foi para a rua. Na esquina da rua Apa, fez sua instalação: uma parede azul ao fundo, uma iluminação especial (puxada de um gato do seu próprio estúdio), uma estrutura para segurar a Nossa Senhora e os dizeres, em dourado: “Nossa Senhora do Crack”.

“É quase promíscuo misturar fé com um grande problema social. Queria chamar atenção dos conservadores, de quem não vem para o Centro, de quem não vê o problema e de quem acha que drogado é criminoso e bandido”. E Neto conseguiu.

Imediatamente a instalação chamou a atenção de quem estava ali, zumbizando com as pupilas dilatadas e a mente agitada. “Todos [que estavam ali] já paravam e adoraram. Às 11h da noite passei em frente à instalação e estavam todos em volta.”

A Folha de S.Paulo publicou no dia seguinte uma foto da padroeira do crack. Era o start de uma corrida da imprensa ao local.

Na manhã seguinte, uma repórter da Globo estava diante da imagem. “Quando foi entrevistar os craqueiros, a repórter já foi cutucando e perguntando se os usuários não achavam aquilo um absurdo. Um cara falou que ia jogar uma pedra, e ela deu a ideia de arrancar a imagem. E filmaram e transmitiram no jornal Hoje”.

A instalação durou algumas poucas horas – mas a repercussão foi grande. Parte da igreja condenou a controversa imagem, mas o arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Pedro Scherer, ligou para Neto elogiando a instalação e publicou no Twitter sua aprovação à Nossa Senhora do Crack.

“Depois disso, me senti mal. Me senti em dívida com os usuários”. Sensível com temas sociais, Neto se infiltrou no grupo de vizinhos – queria fazer mais, conhecer mais, sensibilizar a população para o problema de outro jeito. Passou a conviver com os usuários, disfarçadamente. “Fui confundido com traficante várias vezes”. Usava sempre a lente grande angular na câmera, e nunca tirava fotos olhando no visor, mas sempre na altura do diafragma – porque dá proximidade, é discreto e menos invasivo.

“Foi uma lição de humildade muito grande. Comecei a ver como era sério o problema, e como jogavam para debaixo do tapete. São pessoas, são pessoas doentes. E precisam ser tratados como doentes. O convívio diário me fez ver que você não precisa ter medo dos nóia”.

foto por: Zarella Neto
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Ele foi a Brasília várias vezes para conhecer a realidade de lá – pagando tudo do próprio bolso. E inclusive participou de grupos e discussões de como lidar com os viciados em crack.

Parte do trabalho fotográfico feito por Neto foi publicado pelo jornal O Estado de São Paulo. Mas parte importante de seu trabalho permanece inédito – e a Calle2 publica aqui esse ensaio fotográfico pela primeira vez. Neto ainda se interessa pelo tema – uma de suas ideias é conhecer indígenas e a população rural que anda se enveredando pela peste contemporânea. Além de trabalhar com fotografia publicitária, Neto desenvolve projetos paralelos. Seu projeto mais recente é sobre a fé contemporânea no Brasil.

A instalação Nossa Senhora do Crack aconteceu em julho de 2011 e parece realmente ter mexido não apenas com a Igreja Católica, mas com o poder público. Em janeiro de 2012, a Polícia Militar fez uma intervenção na cracolândia, prendeu traficantes e destruiu os barracos dos usuários – que alguns meses depois foram reerguidos. Em 2013, o Governo do Estado lançou o programa Recomeço, que oferece internação, tratamento e emprego. E em 2014 a Prefeitura de SP criou o programa Braços Abertos, com oferta moradia, refeição, trabalho e tratamento aos usuários.

O problema, porém, persiste, e é por isso que a Calle2 retoma essa história. A peste negra urbana e contemporânea segue fazendo suas vítimas. A população segue jogando para debaixo do tapete. E o poder público continua sem saber como agir.

Como bem disse à época o arcebispo de São Paulo,  Dom Odilo Pedro Scherer: “O drama dos dependentes químicos não pode nos deixar indiferentes”.‎

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