Cecilia Roth: musa, feminista e politicamente engajada 1
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Cecilia Roth: musa, feminista e engajada

A atriz argentina, musa de Almodóvar, concedeu uma entrevista exclusiva para a Calle2, onde fala de carreira, integração latino-americana, feminismo e política

em 11/09/2016 • 23h59
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Difícil estar frente a frente com a atriz Cecilia Roth e não pensar em Manuela, sua personagem em “Tudo Sobre a Minha Mãe”, que perde o filho num atropelamento e cruza a Espanha atrás do pai, um transexual e portador de HIV. Roth ganhou um prêmio Goya de melhor atuação no clássico filme do espanhol Pedro Almodóvar e, desde então, 17 anos depois, continua colecionando estatuetas e se consagrando com uma das melhores atrizes argentinas da atualidade.

A ‘musa de Almodóvar’ veio ao Brasil no início do mês para receber o prêmio Kikito de Cristal no Festival de Cinema de Gramado (RS). Foi a primeira vez que uma mulher ganhou esse troféu pelo conjunto de sua obra desde que ele foi criado, em 2007. Um dia após a cerimônia de premiação, Roth recebeu a Calle2 no hotel onde estava hospedada para a entrevista exclusiva que você lerá a seguir.

Sem maquiagem e de calça jeans, a atriz de 60 anos mostrou-se amável e simpática. Cumprimentou-me com um beijo e um abraço e empolgou-se tanto ao falar sobre política e crise latino-americana que a conversa rendeu o dobro do previsto.

Como Manuela, Roth é uma mulher forte – feminista, politicamente engajada e destemida. Nesta conversa, a atriz, que também tem nacionalidade espanhola, fala não apenas sobre a sua carreira, mas também sobre a necessidade de a América Latina criar uma “academia de cinema”, sobre o governo de Maurício Macri (“não acredito nele agora, porque tudo o que falou na campanha não aconteceu”) e sobre o impeachment de Dilma Rousseff (“é lamentável”).

Atualmente, Cecilia vive em Buenos Aires com o filho adolescente Martín, adotado por ela e pelo ex-marido, o cantor Fito Paéz. Em 1976, fugindo de um golpe militar na Argentina, mudou-se com a família para a Espanha, onde ficou por cerca de uma década. Hoje, acumula dois prêmios Goya de melhor atriz: além de “Tudo Sobre Minha Mãe”, também faturou com o excelente filme “Martín (Hache)”, de 1997.

Este ano, já com mais de 40 filmes no currículo, Cecilia passou a integrar o corpo de votantes do Oscar, que reúne outros importantes nomes argentinos, como os diretores Juan José Campanella (de “O Segredo dos Seus Olhos”) e Damián Szifron (“Relatos Selvagens”).

Você já disse que é muito amiga de Almodóvar. Ainda tem contato com ele? Planejam mais algum filme juntos?

Somos amigos, temos contato frequente, nos queremos bem há muitos anos, desde quando eu era muito jovem e ele também. Com o Pedro, como com nenhum diretor, podemos fantasiar que existe um projeto possível em algum momento. Acredito que os diretores − e Pedro em particular − não escrevem para uma pessoa, em geral vão escrevendo várias histórias de cada vez. O último filme que fiz com ele, “Os Amantes Passageiros”, não sabia do que se tratava. Quando ele me convida, já digo que sim, claro! Não precisa saber muito [do roteiro] com o Pedro ou o [Adolfo] Aristarain. Sempre tenho vontade de trabalhar com eles. Com os dois, particularmente, tenho uma relação pessoal que vai além da profissional. Gosto muito de fazer comédias, mas lamentavelmente sempre me chamam para dramas, tragédias.

“Tudo Sobre Minha Mãe” foi uma das minhas maiores experiências, que modificou a minha vida tanto profissional quanto pessoalmente. Mas voltar a fazer uma comédia com ele [Almodóvar, em “Os Amantes Passageiros”] foi maravilhoso. Acho que não entenderam bem a ideia do Pedro, agora um homem com muitos anos vividos e muitos filmes realizados, de homenagear tudo aquilo que ele foi nos anos 1980, aquela coisa improvisada, fresca, natural, que custava muito pouco dinheiro.

Você está estreando um novo filme, “Migas de Pan” [“Migalhas de Pão”, em tradução livre] e fez a versão hispânica da série “Supermax”, da Globo. Pode falar um pouco sobre esses dois trabalhos?

O filme é baseado em um fato real, mas não é documentário, é ficção. É sobre um grupo de mulheres que foram sequestradas e ficaram desaparecidas. Passaram mais ou menos dez anos no cárcere. Em uma coletiva de imprensa, em 2012, quando elas saíram, falaram das torturas e dos abusos sexuais diários que sofreram – entre os agressores, havia inclusive médicos. Acabamos de estrear em Montevidéu, porque é uma coprodução de Uruguai e Espanha, dirigida pela uruguaia Manane Rodríguez, casada com um produtor espanhol que também trabalha no filme. Na Espanha, deve ser lançado em outubro [no Brasil, está previsto ainda para este ano].

Sobre “Supermax”, o diretor argentino Daniel Burman, que é um amigo muito próximo, com quem eu já havia trabalhado, me chamou para fazer essa série. A ideia era ter uma versão brasileira e outra hispano-americana. A história é a mesma, mas na Argentina há menos o [tema] sobrenatural e mais o psicanalítico. Aceitei o convite antes mesmo de ler o roteiro, porque confio muito no Daniel e gosto do cinema dele.

Foi um trabalho difícil, tanto pelo conteúdo quanto pelo fato de ser a primeira vez que a Globo fez uma coprodução com outros países, em espanhol. Para nós que viemos de outros tipos e formas de produção, foi um pouco mais difícil a maneira de produzir a série, porque a Globo tem um jeito muito particular, e adaptar-se a isso não foi fácil.

É um lugar muito fechado que abarca muitas coisas. Impressiona-me que tenham quatro novelas diferentes por dia. Quando fomos gravar lá, estavam realizando 33 produções! É uma sorte que possam fazer isso. Na série, queríamos fazer um trabalho profundo. Espero e acredito que o resultado de “Supermax” será muito interessante. O tom é diferente aqui e lá, então não sinto tanto que seja uma franquia. Daniel fala de seu próprio universo, contando possivelmente a mesma história. A minha personagem [Pamela] está em eterna solidão.

Há algum diretor estrangeiro com quem você ainda gostaria de trabalhar?

Não gosto de dizer essas coisas, admiro muitos diretores. Me encantaria trabalhar com [o chileno] Pablo Larraín e com vários outros. Gostei muitíssimo de “O Clube”, é um filme maravilhoso, e agora ele fez um sobre [o poeta Pablo] Neruda, em que estão Luis Gnecco, um ator chileno excelente com quem já trabalhei, uma atriz argentina ótima que se chama Mercedes Morán e o mexicano Gael García Bernal. É um diretor que trabalha com atores de fala hispana de qualquer lugar. Também já vi vários filmes brasileiros, sobretudo do Walter Salles [diretor de “Central do Brasil”], e adoraria trabalhar no Brasil, conhecer e receber roteiros. Em geral, tenho mais curiosidade em gente que não conheço do que em que conheço. Mas não sei com quem gostaria de trabalhar, prefiro me surpreender com alguém.

Neste ano, tivemos 12 filmes latino-americanos inscritos no Oscar, um recorde. E foi a primeira vez que o Paraguai indicou um longa. A lista final dos nomeados teve o colombiano “O Abraço da Serpente”, que também ganhou prêmio em Cannes em 2015. Como você vê o desenvolvimento do cinema latino? E como é ser uma mulher latina na Academia do Oscar?

Não sei se há um crescimento latino, mas sim o que os americanos fazem permanentemente que é ser politicamente corretos. Isso inclui fazer com que — como no ano passado não teve nenhum afro-americano na Academia, além de poucas mulheres — eles decidissem ampliá-la com atores e diretores hispanos, afro-americanos e europeus que não pertenciam à organização. Minha função é a que tem qualquer acadêmico, que é assistir aos filmes indicados e votar no que eu mais gostar.

Você foi a primeira mulher a ganhar um Kikito de Cristal no Festival de Cinema de Gramado. Na coletiva de imprensa, você disse que o evento deve agora às mulheres os próximos troféus que não ganhamos antes. Você se considera feminista?

Ser feminista é lutar para que a mulher tenha as mesmas possibilidades que tem um homem no mesmo trabalho, com os mesmos estudos, com a mesma capacidade. Uma mulher ainda tem menos possibilidade de acessar qualquer trabalho do que um homem. E isso eu considero injusto. Quando digo que sou feminista, trata-se disso. Agora, com todo o movimento do Ni Una a Menos [marcha de protesto à violência contra a mulher que ocorreu em várias cidades da Argentina, do Chile e do Uruguai em 2015], está muito claro o tema de gênero. Acredito que haja muito poucos assassinatos cometidos por mulheres contra homens, ou muito poucos estupros, mas o que ocorre é que tudo isso ainda não se converteu em uma política de Estado. E é necessária, não apenas movimentos ou grupos que trabalhem pela igualdade das mulheres. Já faz muitos anos que estamos falando disso e, agora, creio que somos filhas, ou netas, das primeiras feministas. Somos a terceira geração das sufragistas inglesas do fim do século 19 e início do 20. Por outro lado, faz muito pouco tempo.

Na Argentina, a mulher começou a votar no fim dos anos 1940, a partir de Evita Perón. Essa luta é para que tenhamos as mesmas possibilidades e oportunidades, não uma, mas todas as mulheres.

Ter sido a primeira a ganhar um Kikito de Cristal é muito gratificante, porque não é só um prêmio ou uma homenagem. Estamos num momento com a região latino-americana um pouco complicada, sobretudo na cultura, então devemos unir nossas vozes e desejos.

Falando de integração latino-americana, você já disse que somos países insulares, que estamos desconectados, principalmente o Brasil, por sua língua e cultura. Como vê isso hoje?

Depende de que região do Brasil estamos falando, porque a cultura do Sul é muito próxima à do Uruguai e à da Argentina. Acredito que a integração atual está maior, não somente em nível cultural, e temos mais a perder quando não há um trabalho comum, no sentido econômico também, de produção. Desde feiras de livros, como a de Guadalajara e a de Buenos Aires, feiras de artes, coproduções cinematográficas, necessitamos muitíssimo uns dos outros. Somos países pobres, ou países muito ricos com muita pobreza. O Brasil é um país riquíssimo, mas a riqueza pertence a poucos. Há desigualdade social e falta de inclusão. A inclusão é fundamental e implica também a inclusão da mulher e a possibilidade de distribuição econômica de outra maneira. Nestes últimos anos, isso ficou ainda mais notório.

A equipe do filme “O Silêncio do Céu”, uma coprodução de Brasil e Chile rodada no Uruguai, que competiu em Gramado este ano, disse que os latino-americanos estão mais interessados nos brasileiros do que nós neles. Você concorda?

É possível, mas acho que agora o Brasil está se abrindo um pouco mais. Nas primeiras vezes que vim para cá, a sensação que eu tinha era que vocês quase não precisavam [dos vizinhos], não só na questão econômica, mas porque aqui existe uma música maravilhosa, atores maravilhosos, um cinema maravilhoso, uma geografia maravilhosa… É um pouco como nos Estados Unidos, são quase continentes.

Acho que vocês não escutam música que não seja brasileira - além da norte-americana, que é outro império. Mas não ouvem música latina. Em toda a região, nós ouvimos muita música brasileira.

Você pode citar a [colombiana] Shakira, mas ela fez sucesso no mundo todo, e o Jorge Drexler se destacou demais nos países latinos, então seria estranho se isso não ocorresse aqui também. Além disso, ele é uruguaio – se fosse venezuelano ou colombiano, não seria tão popular [no Brasil]. Na Argentina, além do tango e de um folclore maravilhoso, temos um rock nacional extraordinário. Nos outros países latinos, escuta-se muita música argentina, mas no Brasil, não. Fito [Páez, seu ex-marido] se juntou muito com músicos brasileiros, mas isso não é habitual. Como Tom Jobim e Sinatra, não é algo habitual, porque vocês já são maravilhosos. Tem um disco do Caetano em espanhol, maravilhoso, mas é o Caetano.

Do que você gosta hoje nos cinemas latino-americano e brasileiro? O que lhe chama atenção entre as produções atuais?

Repito que me encantou “O Clube”, do Pablo Larraín, “O Abraço da Serpente” também.

Honestamente, tenho visto poucos filmes latinos porque não chegam à Argentina. Não temos uma Academia Hispano-Americana, não existe.

Tem europeia, em cada um dos países, em Hollywood, mas aqui, não. Existem prêmios, como o Platino [do Cinema Ibero-Americano], que abarca a Espanha e toda a América Latina, e também o Fénix, que é mexicano, mas não tem uma academia. Essas entidades, em geral, começam realizando prêmios, mas depois disso precisam espalhar os filmes. Vejo muito cinema espanhol e europeu em geral, porque pertenço a essas academias.

Parece-me fundamental ter uma Academia Latino-Americana ou Hispano-Americana. Lamento profundamente que os últimos filmes que vi [da região] tenham sido “O Clube” e “O Abraço da Serpente”, porque gosto de assistir na tela grande, não no computador ou na televisão. Vejo mais cinema argentino, especificamente, que latino-americano. Tenho que procurar na Netflix ou no YouTube. Deveriam passar mais produções entre nossos países, e não apenas em festivais. Também é triste ver como estão fechando salas de cinema, mas é a vida, os anos passam. Só que as imagens, as histórias, as narrativas não vão acabar nunca. O [Ricardo] Darín, por exemplo, que é muito meu amigo, é um ator diferente, extraordinário, tem uma luz especial, faça o personagem que fizer. Ele tem uma enorme capacidade de chegar até as pessoas.

Tivemos, no dia 31 de agosto, no Brasil, o oitavo impeachment de um presidente latino-americano desde 1990. Vivemos em uma democracia muito frágil. Como você vê a crise política e econômica na região?

A região viveu longos anos em que o Mercosul estava muitíssimo mais potente. Acredito que agora o bloco teria menos força que a Alca [Área de Livre Comércio das Américas], que teríamos compartilhado com os Estados Unidos. Existem divergências em relação à Venezuela, mas também deveria haver divergência sobre o que se passou no Brasil. É lamentável, ainda mais pelo vice-presidente de vocês. O presidente argentino Mauricio Macri certamente o apoia, mas é um dos poucos que aceitaram Temer. Não sei se no Brasil a palavra “temer” é o mesmo que significa na Argentina.

Eu filmava “Supermax” quando estavam resolvendo se haveria impeachment [de Dilma] ou não. Sinto que é um momento extremamente difícil, porque economicamente está cada vez mais duro para todos. Há uma frase de [Arturo] Jauretche, que foi um intelectual argentino, peronista, que morreu nos anos 1970, que diz que, “quando a classe média vai bem, vota mal, e quando vai mal vota bem”.

Em geral, lamentavelmente, estamos dominados por meios de comunicação hegemônicos. E os jornais dizem que não foi um golpe. A acusação contra Dilma, a meu entender, não justifica, em nenhum sentido, o que fizeram.

Que crime é esse de passar o dinheiro de uma coisa para outra? Logo se cobre, é o que se faz. Todas as pessoas com quem falo estão de acordo com isso. Então me pergunto: como está acontecendo isso? Sendo que há uma enorme maioria, acredito eu, que não apoia [o impeachment]. Creio que os meios de comunicação que vemos e escutamos veiculam, permanentemente, notícias totalmente falsas, ou modificadas, ou que ocultam coisas. Isso aqui e no mundo inteiro neste momento. São os meios que decidem, mandam, e não são um jornal, são multimeios, conglomerados cujos donos ninguém sabe direito quem são. Mas, em geral, os interesses estão mais claros.

Você acredita que Dilma pagou esse preço também por ser mulher?

Na Argentina, chamavam Cristina [Kirchner] de puta quando ela era presidente. Ser mulher [em um cargo de chefe de Estado] também dá a necessidade, lamentável, de colocar-se no lugar de uma fortaleza, o que pode parecer agressivo, mas que na verdade é uma defesa. Para uma mulher, é muito mais difícil se defender e ter um poder que qualquer presidente homem tem. Eu mesma critiquei muitas coisas do kirchnerismo, mas aplaudi tantas outras, como tem que acontecer numa democracia. Cristina não era minha chefa, havia coisas que me pareciam profundamente injustas, basicamente toda essa situação econômica.

De Temer, não se questiona nada. E parece, pelo que li e escutei de amigos, que ele tem vínculos com a corrupção.

Parece sério, não sei, tampouco sei de Dilma ou de Cristina. Mas para isso existe a Justiça. O problema é que a Justiça também é um poder político, e eles trabalham juntos. Eu não sou política, sou uma cidadã comum e atriz, basicamente. Dei entrevista a um programa de rádio, no qual falamos sobre política, e disse o que penso, tanto de um lado quanto de outro. E, de repente, me converteram num inimigo público, foi horrível. As redes sociais são uma coisa incrível, mas me disseram coisas tremendas [no mau sentido]. Macri prometeu em sua campanha que, em seis meses [a partir da posse, em 10 de dezembro de 2015], a situação [econômica] iria mudar. Ele ganhou com uma margem muito pequena, de apenas dois pontos de diferença. Muita gente votou nele porque não aguentava mais Cristina, é certo. Mas não acredito nele agora, porque tudo o que falou na campanha não aconteceu. Quero que a Argentina esteja bem, mas não estou de acordo ideologicamente com a política econômica que estão realizando e como, de alguma maneira, desmantelou-se a cultura. Mas nunca faria nada para que Macri não terminasse seu governo, tem que concluí-lo, sou democrata. Todos podemos – e devemos – opinar.

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