Carta à Liliane
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Carta à Liliane

Quando o racismo vivido na infância me impediu de acolher uma irmã

em 30/03/2016 • 01h56
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Oie, Liliane. Tudo bem? Acho que você não vai lembrar de mim, mas tenho algo urgente para compartilhar contigo. É que penso em você, esporadicamente, confesso, há cerca de 20 anos.

Estudamos juntas na escola Abraão de Moraes, aqui na Zona Leste, da primeira a terceira série. Nas lonjuras do tempo até essa nomenclatura mudou. Sabe o que segue intacta, Liliane? Aquela sensação de cumplicidade quando chego num ambiente, olho ao redor e descubro feliz que não sou a única pessoa negra ali.

Nunca troquei esse olhar contigo e lamento muito por isso. Eu era “a outra” menina negra da sua sala. Era aquela negra escondida numa tez menos retinta, de cabelos comportados embutidos numa trança. Aquela que pôde levar uma vida menos conturbada porque as pessoas estavam muito ocupadas se incomodando com a sua negritude.

Sabe qual foi sua afronta, Liliane? Enquanto minha mãe prendia meus cabelos em tranças, sua mãe deixava seus cabelos livres mesmo desgrenhados pela violência do alisamento. Ahhhh, como sua liberdade incomodava.  Logo começaram a te xingar e colocar apelidos a fim de detonar sua altivez.

Pi-o-lhen-ta, gritavam.

Emudecia. Nunca, nunquinha te xinguei, querida. Preciso que acredite. Mas nunca, nunca abri minha boca para te defender. Esse é o motivo da minha vergonha.

Essa carta, Liliane é para te pedir desculpas, quase 20 anos depois porque o medo do racismo me calou.

Lembro de como por vezes você tentava lançar o olhar de cumplicidade em minha direção. Desviava rápido. Não, não queria ser a piolhenta, não queria que me comparassem a você nem por um segundo.

Não podíamos ficar muito juntas, se não perceberiam que éramos iguais. Estávamos separadas apenas pelo ferro quente que passaram nos seus cabelos, pela miscigenação que clareou a minha pele e pelo racismo que cedo feriu nossas infâncias e abriu espaço entre nós.  Esse é o grande triunfo do racismo, perceberia mais tarde, ele separa a gente.

Bom, o tempo não dá segundas chances, isso aprendi cedo. Mas só têm duas situações no meu passado que me fazem querer voltar e a primeira é sobre você. Me levantaria ao seu lado e seríamos duas pretinhas contra o mundo.

O irônico, querida, é que depois fui estudar numa escola onde por muitos anos fui a única menina negra. Que falta você me fez, Liliane. Não te queria escudo, mas espada. Juntas travaríamos batalhas.

Infelizmente sei que a probabilidade do racismo ter ferido sua alma e fragmentado sua subjetividade é grande. Então, vou sonhar aqui, desejando forte, que sua dignidade tenha se mantido intacta e que você se reergueu inteira de toda a agressividade que uma mulher negra é submetida.

E esse texto é só para dizer que eu sinto muito. Espero que tenha encontrado no seu caminho muitos olhares cúmplices, como nunca te lancei, tenha encontrado muitas irmãs, como não pude ser. E mais do que isso, que tenha continuado seu caminho altivo, independente de qualquer “brincadeira” racista que ainda te lancem. Estamos juntas, mesmo que separadas.

Abraços fraternos.

Juliana

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