Carnaval boliviano mistura dança, oração e álcool
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Carnaval mistura dança, oração e folhas de coca

Em Oruro, na Bolívia, escolas de samba são 'las comparsas' e o Rei Momo é a Virgem del Socavón

em 09/02/2016 • 23h57
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Cerca de 35 mil dançarinos e 10 mil músicos se reúnem uma vez ao ano em Oruro, no altiplano boliviano, para bailar em homenagem à Virgen del Socavón, a padroeira local. Outros milhares se dirigem à cidade para assistir ao espetáculo. Para muitos, é uma verdadeira peregrinação, uma promessa religiosa. Ainda assim, o clima é de festa, com farto consumo de álcool e de outras drogas.

Em uma inevitável comparação com os desfiles do carnaval brasileiro, os trajes não deixam a desejar. São suntuosos, multicromáticos e criativos. Porém, em vez do samba, o Carnaval de Oruro é palco para as diabladas, morenadas, llameradas, tinkus   danças folclóricas que têm influências que vêm desde civilizações pré-incaicas até a colonização espanhola (veja explicação abaixo). Não por acaso, a festa foi considerada pela Unesco como Obra Prima do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.

Mais que uma celebração que precede a quaresma, o Carnaval na região altiplânica, a 3.700 metros de altitude, está ligado à época de chuvas e ao período de colheita, em uma festa chamada Anata Andina. A cidade de Oruro é o centro desses festejos há centenas de anos, desde que o povo Uru ocupava a região. Os urus veneravam as montanhas ao redor da cidade – cada uma representava um animal (o sapo, o lagarto, a serpente, além do condor e de Wakallusta, o destruidor de ídolos. Esses símbolos ainda hoje aparecem nas vestimentas do carnaval orureño).

A região também foi parte do Império Tihuanacu, que existiu até o século 12, posteriormente dominada pelos Aymarás, depois incorporada pelo Império Inca e mais tarde colonizada pelos espanhóis, sendo refundada em 1606. O resultado é uma mistura de culturas sem igual. (A divindade Wari, por exemplo, que era associada ao fogo, foi transformada em diabo pelos espanhóis e mais tarde reinterpretada pelo povo local como El Tío, senhor das minas e do subterrâneo. O conceito do feminino, presente na ideia da Pachamama, a mãe terra da cultura Inca, acabou virando a Virgen del Socavón, uma versão da Virgem da Candelária, imposta em 1789 pela igreja católica.)

Hoje Oruro é a principal cidade de uma região mineira e a sexta maior da Bolívia, com quase 300 mil habitantes. A maior parte das construções é de alvenaria, sem acabamento. O centro histórico conserva algumas características coloniais, como a Plaza de Armas e a sede do governo. Oruro ainda tem uma estação ferroviária e um intenso comércio de rua.

O Carnaval se tornou uma importante fonte de renda para a cidade. O preço para assistir ao desfile no conforto de um assento varia de 150 a 3.000 pesos bolivianos (de R$ 85 a R$ 1.680), dependendo da localização. As vendas se aquecem principalmente no setor alimentício e de bebidas, além dos adereços carnavalescos. Há quem diga que metade da cidade está vendendo para a outra metade. Por 1.200 pesos bolivianos (R$ 675) é possível desfilar em uma comparsa (equivalente às nossas escolas de samba), com direito à fantasia, participação em festas fechadas e bebida.

Sábado é o grande dia de desfile. Mais de 50 comparsas se dividem em seis grupos, que entram na avenida principal às 7h da manhã e percorrem mais de três quilômetros ao longo de quase quatro horas. Cada comparsa ou conjunto baila uma dança típica, intercalados por bandas, cholas e cholitas.

Esses grupos dançam até a entrada da Igreja do Socavão, onde há uma antiga imagem da virgem. Chegando lá, todos os bailarinos se ajoelham e fazem uma prece, terminando a parte religiosa das festividades. No domingo de Carnaval, a festa se repete, mas dessa vez o álcool é liberado entre os dançarinos e há menos controle sobre quem entra na avenida.

Desde o Último Convite (desfile que acontece no domingo anterior ao Carnaval), a quantidade de turista que chega a Oruro vai aumentando consideravelmente, até o sábado, quando a lotação de praticamente todos os hotéis da cidade chega a 100%. Além da festa oficial, sempre há gente bebendo nas ruas e em casas noturnas. Em geral, o boliviano tem uma capacidade quase sobre-humana de ingerir álcool.

Depois do domingo de Carnaval, a cidade começa a voltar lentamente para sua pacata rotina. Na segunda-feira ainda acontecem festas nas sedes das comparsas e na terça se realizam ch’allas, rituais de agradecimento e pedido às divindades andinas, que consiste na queima de álcool, folhas de coca, cigarros e comidas. Como no Brasil, a quarta-feira de cinzas é dia de descanso. Os anjos e demônios que bailaram nas avenidas voltam para seus lugares de origem e a vida segue no altiplano boliviano.

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A SIMBOLOGIA DAS DANÇAS

‎Diablada – é a dança mais famosa, tida como uma interpretação da dualidade entre bem e mal presente na cosmovisão andina, mas que também pode ser encarada como uma interpretação da vitória do bem sobre o mal na religião católica. A diablada em geral é liderada por um dançarino vestido de arcanjo, seguido por um grupo com trajes de demônios e diabletes, além de representações dos sete pecados capitais.

Morenada (ou dança dos morenos)  faz referência ao período colonial. Os principais personagens que compõe a morenada são o caporal (uma espécie de capataz negro), a tropa de morenos e os reis morenos. Essa dança traz um aspecto complexo da cultura indígena, que via o escravo negro como um invasor tão pérfido quanto o colonizador europeu. Por isso, os trajes em geral buscam satirizar a presença africana na região andina.

Tinkus são grupos mais tradicionais, com origem pré-incaica. Essa dança folclórica vem de um ritual violento típico da região de Potosí, no qual os participantes lutam uma espécie de arte marcial em oferenda à Pachamama. Muitas vezes o perdedor morre, ou ao menos deve derramar quantidades consideráveis de sangue. No Carnaval, esse ritual é encenado, utilizando vestimentas tradicionais, com capacetes feitos de couro, e uma dança que representa os movimentos da luta.

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