As receitas que traduzem Paola Carosella
Cultura,Pessoas

As receitas que traduzem Paola Carosella

Em seu primeiro livro, chef argentina conta sua história a partir de memórias afetivas e receitas significativas de seu restaurante; Calle2 publica duas delas com exclusividade

em 23/11/2016 • 11h32
compartilhe:  

Quem é Paola Carosella? A chef de cozinha de todas as terças na TV ou a cozinheira-chefe de todas as sextas do seu restaurante Arturito? A filha única de uma família de imigrantes italianos na Argentina que começou a desenvolver sua vocação ainda criança, enquanto esperava a mãe voltar do trabalho? Ou a mãe da pequena Francesca, que aos cinco anos de idade já a ajuda nas tarefas domésticas?

Seria ela a mulher que se impôs em cozinhas completamente dominadas por homens em Buenos Aires, Paris, Los Angeles e Londres? A empresária que já perdeu e ganhou sócios, mas encontrou seu parceiro de negócios e com ele toca uma rede de lojas de empanadas e um restaurante de cozinha mediterrânea? Ou seria a ativista que defende o uso de alimentos orgânicos, a criação saudável de animais e a consciência sobre o ato de cozinhar? Afinal, quem é Paola Carosella?

Se você respondeu todas as alternativas anteriores, acertou. Paola é tudo isso e muito mais. É um universo inteiro de força, inteligência e coragem, que dosado com afeto, cuidado e senso de justiça rende porções de mulher, mãe, filha, cozinheira, chef, empresária e estrela da TV. E agora Paola também é escritora, já que recentemente lançou um livro em que intercala suas memórias com mais de 90 receitas do menu executivo de sexta-feira do Arturito, dia que ela reserva para ser aquilo que mais acredita ser: cozinheira.

No dia do lançamento do livro em São Paulo (SP), no início de outubro, Paola recebeu a Calle2 para falar sobre essa nova experiência. “Escrever um livro e ter quem queira lê-lo já é uma felicidade enorme. E saber que as pessoas vieram até aqui para eu assinar o livro e para me conhecer me faz sentir uma enorme gratidão”, disse, referindo-se a fila de mais de 100 fãs que a aguardavam no andar de baixo da livraria. Antes de sentar-se à mesa para autografar a mais nova criação, ganhar presentes e dar muitos, mas muitos abraços, Paola nos revelou quais receitas do livro que têm significado especial para ela.

“Tem as que são de coisas que eu gosto muito, como as empanadas, obviamente. Essa está linda, porque conta uma história que aconteceu há muito tempo e mostra como fazemos besteira quando somos jovens, mas como depois as coisas dão certo. Eu também gosto muito daquela sobre como cozinhar polvo, da galinha d’angola (com beterrabas), da receita (de peito de boi) da Isabel, que é uma pessoa importante para mim, com a farofa do Lucas e a taioba de Parelheiros. Cada uma tem um significado, e estão todos no livro”, conta.

‎‎

Muito provavelmente a receita mais famosa e desejada de Paola são as empanadas salteñas. Em São Paulo, a cozinheira já abriu três lojas e uma fábrica de empanadas. Lá, produz oito tipos diferentes, entre elas a salteña, original de Salta, região argentina próxima à fronteira com a Bolívia. No La Guapa, ela é feita com carne, azeitonas, ovo caipira e batata cozida, mas no livro Paola explica que pode haver variações. “A receita leva carne e batata. E pode ou não levar ovo, mas sempre terá cebolinha, ou cebolla de verdeo, como se chama lá. Leva páprica doce. E pode ou não levar uvas-passas, que lá são pequenas. Depois de prontas, as salteñas são geralmente servidas em uma cesta. E, diferentemente do que se pensa, acompanhadas de vinho branco”, escreve.

Também no livro, Paola conta uma história sobre uma situação embaraçosa que viveu quando era jovem e iniciava sua carreira em um restaurante de Buenos Aires. Certa noite, jantando em um dos restaurantes badalados da capital argentina, a jovem chef teve a oportunidade de dividir mesa com o escritor, humorista e crítico enogastronômico Miguel Brascó, de quem ela não sabia nada.

Paola conta: “Na mesa, conversávamos sobre empanadas. Eu, sentada do lado do Bernard (Claus, seu namorado à época) e sentada sobre os meus irreverentes 19 anos, ouvia. Foi quando, do nada, Brascó emitiu a seguinte máxima: “A empanada é todo um conceito”. Então, quando ouvi Brascó dizer isso, eu ri. E a mesa inteira me olhou. Devo ter ficado a cor de um pimentão vermelho, bem vermelho. Quis desaparecer. Mas foi impossível. Tive de conviver com aquilo.”

Anos depois, Paola escreveu uma carta a ele, agradecendo pelo conhecimento transmitido via jornais e livros. “Brascó não se lembrava do papel de tola que eu fizera no passado”, escreve a chef. “O fato é que ele tinha razão. A empanada é todo um conceito. Complexo. Que tem a ver com história, com migrações, com colonizações. Com invasões, com plantações, com agricultura, com política, com pessoas…”, completa.

Outra característica do livro “Todas as Sextas” é que ele mistura receitas simples com complexas, como o polvo à feira (veja receita abaixo). Paola conta que aprendeu a deixar o polvo mole com o chef Francis Mallmann, quando trabalhava em Punta del Leste, no Uruguai. Segundo ela, polvo era um assunto desesperador naquela cozinha, onde todo dia um dos funcionários arriscava uma forma de melhorar o preparo, todas sem sucesso.

Até que um dia uma das cozinheiras interpelou Mallmann quando ele passava veloz pela cozinha e ouviu a seguinte resposta: “Joga uma rolha na paneeeela!”, disse ele. “A partir desse dia, passamos a jogar loucamente rolhas na panela, sem saber por quê, e o polvo continuava duro como antes”, conta Paola, que explica: “Não é a rolha que deixa o polvo macio e sim a forma como se cozinha.” Segundo ela, a temperatura do cozimento é que define a maciez da carne.

RECEITA DE EMPANADAS SALTEÑAS 

Massa para empanadas

Rende 24 discos de empanadas.

  • 10 g de sal grosso
  • 220 g de banha de porco
  • 500 g de farinha de trigo

Na Argentina, a massa de empanadas se faz com gordura de boi, o que chamamos de pella. Aqui, tanto no Arturito como no La Guapa, a massa é preparada com banha de porco.

Em uma panela, amorne ¾ de xícara de água e o sal por uns minutos, o suficiente para dissolver o sal. A seguir, desligue o fogo, acrescente a banha e deixe-a derreter. Só o calor da água será suficiente.

Peneire a farinha sobre uma tigela. Faça um furo no centro e acrescente a mistura de água, sal e gordura ainda quente. Esse é um detalhe importante. Se deixar a mistura esfriar, não fica igual, não…

Amasse. Se estiver muito quente, utilize uma colher de pau até poder amassar com as mãos. Sove e forme uma massa lisa. Não precisa amassar demais.

Embrulhe a massa em um pano e guarde na geladeira por pelo menos 3 horas. Ou até mesmo a noite toda. É importante que a massa descanse para ficar menos elástica, o que facilita o trabalho na hora de abrir os discos.

Abra a massa com rolo de macarrão, até ficar com 3mm de altura. Se necessário, utilize um pouco de farinha para não grudar. Quando bem-feita e descansada, a massa é muito agradável de trabalhar e geralmente “pede” pouca farinha.

Uma vez aberta, corte discos de aproximadamente 12cm de diâmetro. Você pode empilhar e guardar os discos na geladeira até a hora de rechear. As aparas resultantes do primeiro corte podem ser amassadas novamente, abertas e cortadas em discos.

Já as aparas que resultam dessa segunda rodada, Paola não usa para empanadas: ela faz um biscoito delicioso, que é um dos seus vícios. Mistura as aparas com sementes de erva-doce, abre com rolo, corta de qualquer forma – em tiras, em discos, em triângulos – e assa em forno bem quente em assadeiras sem borda ou com borda bem baixa, em placas limpas. Assim que saem do forno, polvilha com açúcar de confeiteiro. Não dá para parar de comer.

Para o recheio

Rende 12 empanadas, porque as empanadas se fazem às dúzias.

  • 2 batatas descascadas, cortadas em cubos pequenos
  • 400 g de acém ou coxão duro moído
  • 400 g de cebola branca
  • 150 g de banha de porco
  • sal
  • 1 folha de louro
  • 1 colher de chá de pimenta seca moída ou pimenta fresca picada
  • 1 ½ colher de sopa de cominho picado
  • 1 ½ colher de sopa de páprica doce
  • pimenta-do-reino
  • 7 talos de cebolinhas picados
  • 4 ovos de galinha de vida digna cozidos por 8 minutos, cortados em cubinhos

Para finalizar

  • 12 discos de empanada de 12 cm
  • 1 gema e 1 ½ xícara de leite (ou água), para pincelar
  • açúcar branco para polvilhar

Em uma panela pequena, coloque 2 copos de água que você beberia e cozinhe as batatas até ficarem tenras, mas sem que percam a forma. Escorra e reserve as batatas e guarde a água.

Escolha uma panela que seja mais larga do que alta para fazer o recheio. Corte a carne na ponta da faca ou peça-a já moída. Paola confessa que gosta das empanadas com carne moída. Pique a cebola em pedaços bem pequenos, tão pequenos quanto a carne. Reserve as duas separadamente.

Na panela, aqueça a banha e acrescente a cebola e uma pitada de sal. Cozinhe até a cebola ficar transparente. Junte os temperos: o louro, a pimenta, o cominho em pó, a páprica e a pimenta-do-reino. Misture e cozinhe por alguns minutos em fogo brando.

Tenha por perto a água do cozimento das batatas bem quente. Se precisar, aqueça-as novamente. Coloque a carne na panela com as cebolas, os temperos e a banha. Conte 1 minuto e desligue o fogo. Acrescente imediatamente 2 conchas de água do cozimento das batatas, fervendo, e misture bem.

Experimente e adicione mais sal, se necessário. Espalhe o recheio em uma assadeira retangular de 40 cm por 25 cm, com uns 3 cm de altura para que o líquido fique no nível da carne e da cebola (ou uns 3mm acima). Mantenha na geladeira de um dia para o outro. Se não for possível, pelo menos por umas 5 horas.

Os sucos que ficam na superfície terão a aparência de uma manteiga de cor avermelhada. Isso é bom. E por que o detalhe do nível e do tamanho da assadeira é tão importante? Porque na hora de montar uma empanada, quando se pega com a colher uma porção de recheio, é importante ter a proporção de carne e cebola e emulsão – senão, a salteña fica seca.

Para terminar o recheio, disponha uma camada de batata cozida sobre essa manteiga avermelhada. Sobre a batata coloque a cebolinha picada. Depois da cebolinha, o ovo cozido e picado.

Para montar as empanadas

Para montar a empanada, coloque 12 discos na bancada da cozinha. Se necessário, polvilhe a bancada com farinha. No entanto, a massa de empanada bem-feita e fria raramente precisa de farinha. Coloque uma generosa colher de recheio sobre cada um dos discos. Cuide para que cada colherada tenha um pouco de cada um dos ingredientes: a carne e a cebola, a batata, o ovo e a cebolinha. Feche os discos com o repulgue tradicional de salteña.

Repulgue é a palavra espanhola para definir o jeito como se fecha uma empanada. É tão importante a empanada na vida dos argentinos que temos um vocabulário especial para elas − e isso tem a ver com o conceito de Miguel Brascó. Saber repulgar uma empanada de olhos fechados − ou falando com as comadres ou pensando em vai saber o quê − é algo que as boas empanadeiras fazem. Repulgar é como costurar uma empanada, juntando as duas bordas de massa em um movimento singular, único e delicado, que sobrepõe uma massa dobrada à outra. Existem muitas formas de fazer repulgues – mais redondinhos, com pontas, da esquerda para a direita, da direita para a esquerda. Para os menos habilidosos com as mãos, apertar a massa com um garfo também é válido.

Agora é preciso assar. Preaqueça o forno a 180 ºC. Coloque as empanadas em uma assadeira ligeiramente untada com azeite. Pincele a superfície das empanadas com a mistura de gema e leite ou gema e água. Polvilhe com açúcar se quiser. Por último, espete as empanadas uma ou duas vezes com um garfo, para liberar o vapor e evitar que a massa se abra durante o cozimento.

O tempo para assar é de 12 a 18 minutos. Dependerá bastante do forno. O importante é a massa estar dourada por cima, por baixo e nas bordas. Bem douradinha. Queimadinha.

RECEITA DE POLVO À FEIRA

Como cozinhar polvo

Rende 8 tentáculos.

  • 1 polvo de aproximadamente 2 kg
  • 1 folha pequena de louro verde e fresco
  • 1 cabeça de alho inteira cortada ao meio ou separada em dentes com pele
  • 3 colheres de azeite de oliva extravirgem
  • 1 colher de chá de pimenta-do-reino branca ou preta em grãos
  • 1 cebola roxa (ou branca) descascada e cortada em gomos ou rodelas

Coloque o polvo em uma bacia com água filtrada e limpe-o. Acaricie os tentáculos com cuidado, retirando possíveis pedrinhas, conchinhas, grãos de areia. Lave a boca e a cabeça por dentro. Para esta receita, use uma panela nobre de no máximo 30 cm de diâmetro e no mínimo 25 cm de altura.

Segure o polvo pela cabeça, acomode os oito tentáculos na panela e, por último, o resto do corpo. Junte os demais ingredientes. A quantidade de água desta receita é adequada ao tamanho da panela indicado. Se for maior, acrescente água suficiente para cobrir o polvo. Normalmente, usa-se de 2,2 a 2,5 litros de água.

Cubra o polvo com um pirex invertido, para que se mantenha submerso e cozinhe por igual, e leve ao forno médio até ferver. Abaixe o fogo e mantenha em fervor baixíssimo, de modo a não movimentar a água nem o polvo, por um tempo que pode variar entre 1 hora e 30 minutos e 2 horas e 30 minutos. Ou mais. Esse fervor baixíssimo, ou simmering, é baixinho e contínuo. Formam-se pequenas bolhas na borda da panela que se mantêm constantemente, mas não chegam a ser fortes o suficiente para movimentar a água ou o conteúdo.

É muito importante manter a delicada pele do polvo intacta, porque ela agrega não apenas sabor, mas também elegância. Servir um polvo com a pele machucada ou rasgada é uma tristeza. As “roupas” do polvo são belas e merecem ser honradas. Um fervor muito forte, que provoque movimentos bruscos dentro da panela, faz com que os tentáculos se choquem, e disso resulta um polvo danificado.

O polvo estará no ponto perfeito quando se mostrar tenro ao ser espetado com uma faquinha ou garfo na parte mais “gorda” de um tentáculo, próxima a cabeça. Quando se atinge esse ponto, ao levantar com cuidado o polvo pela cabeça com uma pinça ou escumadeira, os tentáculos estarão relaxados e cairão ao redor da cabeça, mas ainda manterão certa estrutura. Isso é bom sinal. Quer dizer que o polvo cozinhou devagarinho, não passou do ponto, está macio, mas ainda preserva sua estrutura intacta. Ou seja, quando um tentáculo for cortado, não parecerá um frango desfiado. Estará macio e suculento.

É preciso deixá-lo esfriar na própria água perfumada de seu cozimento para que reabsorva parte dos líquidos. Isso ajuda a recuperar a suculência e o sabor. Retire o polvo com uma escumadeira e uma pinça, cuidadosamente, segurando o animal pela cabeça. Se não for consumir o polvo na hora, guarde-o na geladeira, mergulhado na própria água em que cozinhou, até o momento de servir. Só coloque na geladeira após atingir a temperatura ambiente.

Polvo

  • 1 polvo cozido
  • sal marinho
  • azeite de oliva extravirgem, de excelente qualidade
  • páprica doce perfumada

Para servir

  • batatas cozidas, algumas
  • aïoli

Para Paola, esta é a melhor forma de comer polvo.

Coloque o polvo cozido, ainda morno, sobre uma placa. Com uma boa tesoura, corte os tentáculos em pedaços de mais ou menos 2 cm. Acomode-as em um prato de barro ou de madeira bem bonito, singelo. Prove um pedacinho do polvo para saber se é preciso adicionar sal. Se precisar, tempere com sal marinho primeiro. A seguir, regue com bastante azeite e polvilhe a páprica doce defumada.

Sirva o polvo em temperatura ambiente. Com batatas cozidas. Se gostar, acompanhe com aïoli.

Fonte: Receitas extraídas do livro “Todas as Sextas”, de Paola Carosella e Jason Lowe, com autorização da Editora Melhoramentos, responsável pela publicação da obra.

FOTOS (capa e livro): Jason Lowe
LANÇAMENTO EM SÃO PAULO: Mário Bock

Comentários

Comentário