A segunda revolução cubana 3
Sociedade

A segunda revolução cubana

Resultado da aproximação com os EUA, governo cubano amplia acesso à internet; fenômeno causa furor e gera novo emprego informal, o 'cambista de acesso'

em 09/02/2016 • 23h09
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Quando, numa tarde de domingo de agosto de 2015, um conhecido distante contou a Alecsandro Urrea sobre um novo e lucrativo trabalho, a vida já não lhe despertava ânimo. Perto de completar 30 anos, falhara em tudo o que tinha tentado até então: desde o complexo tráfico de vegetais para os principais restaurantes da cidade até um curto período de tempo como taxista, uma das profissões mais rentáveis para os cubanos, mas que não havia sido melhor do que os tempos em que, como roupeiro de um hotel, roubava dólares esquecidos nos quartos por turistas endinheirados.

O colega, descoberto em um encontro casual na rua, anunciou-lhe a função que poderia exercer já na segunda-feira pela manhã: vender – em caráter privado e longe dos olhos das autoridades – cartões de acesso à internet que a companhia de comunicações cubana havia começado a disponibilizar semanas antes. “Eu não sabia nem como funcionava internet, o que era wi-fi, como se acessava o sinal, nada”, admitiu. “Nunca ganhei tanto dinheiro na vida, hermano”.

Alecsandro, ao contrário dos mais de cinco milhões de habitantes ativos de Cuba, não possui qualquer registro estatal, crachá de entrada e saída, uniforme, salário fixo ou horário determinado para começar a trabalhar. Costuma surgir na praça da Basílica de Santiago de Cuba (a segunda maior cidade da ilha) depois da sesta, quando o sol está em seu auge e os turistas, por consequência, se impacientam na fila disposta na calçada da Etecsa, a companhia estatal que comercializa cartões de acesso à internet.

O calor é um dos seus principais colaboradores: cabe a ele convencer os interessados no cartão que, por um peso convertível a mais (cerca de € 1), podem adquiri-lo sem se empaparem de suor nem esperarem até 40 minutos por um guichê aberto. Oficialmente, o cartão com direito a uma hora de acesso à internet é vendido a 2 pesos convertíveis (CUCs), aproximadamente € 2 ou, na cotação de fevereiro, cerca de R$ 10. Nas mãos de Alecsandro, custa 3 CUCs, ou seja, quase R$ 14.

A tática é simples: no período da manhã ou no fim do dia, antes que o atendimento da Etecsa se encerre, Alecsandro compra cinco cartões, o máximo que uma pessoa pode adquirir. Paga por eles, obviamente, o valor oficial. Nos horários em que os turistas chegam à praça para falarem com seus familiares e amigos pela web, depois do almoço, no início da noite ou até começo da madrugada, e que, por consequência, a companhia já não está em funcionamento, ele e o conhecido, agora amigo de trabalho, são os únicos com cartões nas mãos para vender.

Se o estoque acaba durante o dia, ou colocam “laranjas” na fila para comprar mais ou, dependendo de quem estiver no guichê, vão eles próprios completar os bolsos com os bilhetes. Alecsandro assegura que, nos dias bons, repassa de 10 a 15 cartões. Sobre cada um, fatura 1 CUC, equivalente a um lucro diário de 15 CUCs. Em uma comparação rápida, percebe-se a disparidade do negócio: um médico cubano contratado pelo Estado recebe, por mês, aproximadamente entre 50 e 60 CUCs ao mês, quantia que Alecsandro, com seus cartões, ganha em cinco dias de trabalho. Por mês, chegam a tirar 500 CUCs: quatro vezes o salário de um professor.

O novo emprego de Alecsandro está embutido em uma mudança estrutural complexa do governo cubano para popularizar o acesso à web no país. Até a meados de 2013, havia duas formas de se conectar à rede mundial de computadores estando em Cuba: ou pagando 10 CUCs (cerca de R$ 45) por uma hora de acesso em algum hotel do país, algo quase impossível para um cubano de renda comum, ou sendo parte de um grupo destacado pelo governo para conectar-se com fins científicos ou militares. Neste segundo caso estavam imbricados médicos, pesquisadores e oficiais do exército, além, é claro, de membros da alta patente do Estado – a este grupo, apenas endereços com o domínio .cu eram permitidos.

Em Havana, o governo chegou a construir salas de acesso popular por 5 CUCS a hora (cerca de R$ 22) no início de 2010, numa espécie de embrião do projeto iniciado no ano passado. De todas as formas, os usuários reclamavam da lentidão da conexão e das constantes quedas do sinal. “Eu ficava dois meses juntando o dinheiro para usar a internet por uma hora no Hotel Inglaterra [um dos principais de Havana]. Como a conexão era péssima, desse período eu conseguia aproveitar algo entre 30 e 35 minutos. O resto era perdido no entra e sai”, revela Yasser Fernández, engenheiro que hoje ganha a vida da mesma forma que Alecsandro.

Como em quase todos os aspectos da existência cubana, há dois argumentos para a ausência de internet na ilha: um dado pelo governo e outro pelos estadunidenses. O lado cubano afirma que os sucessivos bloqueios impostos pelos Estados Unidos impediram o país de colocar em funcionamento uma estrutura adequada ao acesso e que, mais do que isso, como possuidor da maior parte dos provedores de informática e de internet do mundo, o “vizinho inimigo” jamais permitiu que os cubanos tivessem conexões seguras e estáveis.

“O bloqueio a Cuba, ainda que alguns não queiram considerar, limitou o acesso a financiamentos, tecnologia, sistema, infraestrutura, softwares e aplicações. O reconhecimento do seu fracasso como política por parte do presidente Barack Obama e o anúncio de investimentos no setor de telecomunicações para que o povo cubano pudesse ter acesso às mesmas é um reconhecimento disso”, afirma Omar Salomón, engenheiro de telecomunicações da Etecsa, em artigo publicado recentemente no site de notícias Cubadebate.

O lado estadunidense, por sua vez, diz que os irmãos Castro censuraram o acesso à internet com a intenção de bloquear o alcance da população a informações oriundas do exterior. Em 2011, a organização internacional Repórteres Sem Fronteiras colocou Cuba na lista de países considerados “inimigos da internet”, argumento que os estadunidenses parecem ser tomado para si quando o assunto é internet na ilha caribenha. “A maioria dos internautas cubanos tenta apenas ler seus e-mails ou respondê-los. Eles não têm tempo para navegar na internet ou acessar sites. Durante anos, o regime culpou o embargo americano por falta de uma boa conexão na ilha”, diz um trecho do relatório do Repórteres Sem Fronteiras.

Em outubro, durante uma conferência em Nova York, o subsecretário dos Estados Unidos para o Hemisfério Ocidental, Alex Lee, revelou que a aproximação entre os governos dos dois países só foi possível, entre outras coisas, pela aceitação, por parte do presidente de Cuba, Raúl Castro, de facilitar o acesso à internet em Cuba. “A meta de Barack Obama é que Raúl estabeleça acesso total”, disse. Antes mesmo dos contatos diplomáticos de dezembro de 2014, o presidente estadunidense e gigantes da internet de seu país, como Google e Facebook, já haviam tentado aproximar-se de Cuba com olhos voltados para o mercado em ascensão na ilha caribenha.

Em julho de 2015, seja pela pressão internacional, pelo acordo com Barack Obama ou pela inauguração de um cabo de fibra óptica que custou US$ 70 milhões e que liga Cuba a Venezuela pelo fundo do Mar do Caribe, Raúl Castro anunciou que a Etecsa iria disponibilizar internet em 35 locais públicos das principais cidades cubanas a 2 CUCs a hora. Semanas depois, o governo notou o tamanho da mudança: em La Rampa, uma extensa linha entre o Hotel Nacional e o Cine Yara, no Malecón, em Havana, o número de pessoas conectadas em celulares ou notebooks chega a impedir a passagem de pedestres e obstruir uma faixa da avenida em frente ao mar.

Em Santiago de Cuba, nos finais de semana, os jovens preferem ocupar os mínimos espaços do Parque Céspedes, onde há o melhor sinal de internet da cidade, a passarem a noite nos diversos bares de reggaeton. Em Baracoa, no extremo oriente da ilha, os tradicionais músicos dos restaurantes abandonaram seus empregos para tocarem na única praça da cidade, onde após às 21h se encontram turistas, moradores e vendedores de bugigangas para, entre outras coisas, se conectarem.

O fenômeno, então, fez surgir os cambistas do acesso, profissão sugerida e abraçada por Alecsandro desde agosto, um mês depois que o governo instalou os primeiros pontos de wi-fi. “Tenho uma irmã que fugiu para o Canadá em 1996, em um barco clandestino que saiu das imediações de Havana. Falava com ela por meios de cartas enviadas pela Western Union a cada dois, três meses. Desde julho, falo com ela todos os dias via FaceTime”, conta Yasser, o ex-engenheiro e agora também cambista. “É uma coisa complexa: de repente, jogaram 12 milhões de pessoas no século XXI. A gente ainda nem sabe o que fazer com isso”, conclui, antes de me pedir para ser seu amigo no Facebook.

‎Leia este artigo em espanhol no site Pressenza

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