A nova (e premiada) onda do cinema latino
Cultura

A ‘nova onda’ do cinema latino

Para o venezuelano Lorenzo Vigas, ganhador do Festival de Veneza com ‘Desde Allá, produção latina dos últimos anos se destaca por retratar temas importantes da região, como a violência

em 20/07/2016 • 01h30
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Ele é formado em biologia molecular, mas nunca exerceu a profissão. Aos 15 anos, apaixonado por cinema, juntou um grupo de amigos para fazer filmes caseiros. Depois de vários curtas, que começaram como um hobby, o venezuelano Lorenzo Vigas, de 48 anos, dirigiu em 2013 seu primeiro longa, “Desde Allá” (“De Longe te Observo”). Por esse drama social, que se concentra em um casal de homossexuais com grande diferença etária e social, o cineasta levou o Leão de Ouro (principal prêmio) do Festival de Veneza 2015, em setembro.

Na ocasião, ao agradecer a premiação, Vigas disse que seu país é “uma maravilhosa nação” e que “necessitamos falar mais uns com os outros”.

O filme, que estreia no Brasil nesta quinta-feira (21), também foi vaiado, e surgiram boatos de que o presidente do jurí, o diretor mexicano Alfonso Cuarón (ganhador do Oscar por ‘Gravidade’ em 2014), teria beneficiado a latinidade. “O presidente não toma a decisão sozinho, é um grupo de pessoas. E foi unânime. Cuarón chegou a rir desses comentários. Mas, por outro lado, é normal haver esse tipo de falatório, pois é um prêmio muito grande para um país que nunca ganhou nada e para um diretor que estreia seu primeiro filme. Foi uma reação do establishment do cinema”, afirma o venezuelano.

Em entrevista à Calle2, Vigas fala em uma “nova onda” do cinema latino. “Ela é nova, mas vem de muitos anos, nunca parou.”

‘Há dois fatores principais para a maior atenção dada hoje às nossas produções: a honestidade com que fazemos filmes e o esgotamento da cinematografia de outras regiões.’

Enquanto isso ocorre, segundo ele, o cinema latino avança com muita força temática e sinceridade a seus próprios assuntos, como a violência. “Aqui temos ótimos trabalhos há muitos anos”, destaca. Um exemplo é o colombiano “El Abrazo de la Serpiente”, indicado ao Oscar 2016.

Na opinião de Vigas, os filmes venezuelanos custam a chegar ao Brasil não por um problema de seu país, mas de toda a América Latina. “Lá também não chegam as produções brasileiras, com exceção de fenômenos como “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”. É algo raro, tem que ser blockbuster. E não é só por uma questão linguística – até porque conseguimos nos entender –, pois filmes argentinos também não vão para a Venezuela, por exemplo. Chega apenas o que sai de Hollywood. É um problema de integração cultural latino-americana, uma questão principalmente política. Estamos muito desconectados”, avalia.

O diretor diz que as políticas de integração que se tentaram implementar na região foram muito mal encaminhadas. “O cinema europeu, por exemplo, é visto em todos os países do continente. Aqui, não. Isso comercialmente falando, claro; não me refiro a festivais, porque aí é algo especial, à parte”, compara.

Autodidata, Vigas nunca estudou cinema formalmente, mas dedica-se exclusivamente à sétima arte desde 1998. “Me dei conta de que tinha uma necessidade de expressão muito grande, e tomei a decisão de fazer cinema”, revela.

Apesar de achar que “Desde Allá” merecia o Leão de Ouro, e que receber o troféu foi algo “incrível e mágico”, o cineasta diz que não esperava ganhá-lo. “Já estávamos felizes por participar da competição oficial. Foi muito emocionante”, lembra.

O filme só não foi o candidato venezuelano ao Oscar 2016 porque o país inscreveu a produção “Lo que Lleva el Río” (“Dauna: O que o Rio Leva”, de Mario Crespo)  antes do resultado de “Desde Allá” na Itália. “Senão, poderia ter sido meu filme o indicado, mas está tudo bem”, releva o diretor.

Dificuldade de expressão na Venezuela

Mergulhada em uma profunda crise política, econômica e social, a Venezuela tem quatro cidades entre as 20 mais violentas do mundo no ano passado, com uma taxa de homicídios que chega a quase 120 pessoas por 100 mil habitantes na capital, Caracas.

Como se não bastasse o medo de sair às ruas, Vigas diz que está cada vez mais difícil se expressar livremente em seu país. “Temos um governo que limita a expressão, que fechou canais de TV. A cada dia mais, os filmes que se fazem hoje no país são uma forte forma de expressão”, afirma.

O diretor conta que, assim como no Brasil, há muita pirataria na Venezuela, sobretudo por uma questão econômica. “Em um país com uma crise muito forte, as pessoas preferem ver os filmes em casa a pagar para entrar no cinema. Mas, mesmo assim, ultimamente há filmes que levaram muita gente às salas de exibição, como “Pelo Malo” (2013), “Azul y No Tan Rosa” (2012), “La Hora Zero” (2010) e “Hermano” (2010). Isso é positivo”, comemora.

Além disso, existe uma lei venezuelana que busca proteger as produções nacionais. “Ela diz que os filmes que estreiam não podem sair de cartaz tão rápido, têm que ficar pelo menos duas semanas em exibição”, revela.

Entre 2000 e 2009, a Venezuela produziu uma média de 10,7 longas por ano.

Houve um boom no país em 2008, quando foram produzidos 21 filmes, de acordo com o livro “Cine Latinoamericano: Producción y mercados en la primera década del siglo XXI” (2012). Nem todos os filmes produzidos, porém, chegaram a ser lançados.

Cinema não é novela, onde tudo é mastigado

Questionado sobre as lacunas que “Desde Allá” deixa na cabeça dos espectadores, com muitas hipóteses e possibilidades em aberto, Vigas diz acreditar que hoje as pessoas estão um pouco cansadas que tudo seja explicado nos mínimos detalhes.

“Gosto de fazer um cinema que deixe espaço para o público usar a imaginação, refletir e completar a história. Nossas emoções nunca são certeiras, estamos sempre as debatendo, mas gostamos que nos expliquem, em um filme, o que temos que sentir, saber e compreender. A vida não é assim”, compara.

O cineasta lembra que vivemos em um continente onde a telenovela tem um papel muito importante, e nela tudo é exaustivamente explicado.

Sobre o final do filme, Vigas diz que tem uma resposta, mas que é só dele, e não é mais importante que a de ninguém. “Cada espectador terá uma, a trama joga com a ambiguidade. Porque [depois de pronto] o filme já não é meu”, afirma. Para o cineasta, “Desde Allá” é uma história sobre consequências, e não sobre causas. “Por isso, não faz falta que nem tudo seja explicado. O protagonista se assusta diante da possibilidade de amor real, de ter uma relação normal com outra pessoa”, esclarece.

O próprio nome do filme vem do fato de o personagem Armando (vivido pelo ator Alfredo Castro) não conseguir se relacionar emocionalmente com os demais. “Tudo é desde lá, de longe, ‘não me toque’. Tem a ver com distância emocional. É uma relação de pai e filho, mas também sexual. É, sobretudo, uma interação entre duas pessoas que têm carências afetivas muito grandes e se encontram”, resume.

Trilogia da paternidade

“Desde Allá” é o segundo filme de uma trilogia de Vigas sobre a paternidade. O primeiro é um curta-metragem chamado “Los Elefantes Nunca Olvidan” (“Os Elefantes Nunca Esquecem”), que pode ser visto no YouTube. A terceira parte – que não é uma continuação, pois há apenas uma unidade temática entre eles – será outro longa, intitulado “La Caja” (“A Caixa”). “Finalizei o roteiro e vou filmar no México”, conta o diretor.

Filho do artista plástico venezuelano Oswaldo Vigas, que morreu em 2014, aos 87 anos, Lorenzo também fez um documentário de seis anos sobre o pai, cujo título é “El Vendedor de Orquídeas”. “Vai ficar pronto muito em breve. Fiz esse antes de ‘Desde Allá’, mas agora que o estou terminando”, diz.

Por que essa obsessão pela paternidade? “Faço filmes sobre o tema de uma forma terrível, mas a relação com meu pai foi muito boa, próxima, amorosa, afetiva. Acredito que me conectei com o arquétipo do pai latino-americano, o pai ausente, que nunca está. É uma conexão arquetípica, mais que pessoal. São milhões de pessoas que não conhecem seus pais. Essa questão me prendeu”, admite.

Vigas define o pai como um pintor importante, “um dos maiores da América Latina”. Entre abril e julho, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) exibiu a exposição “Oswaldo Vigas Antológica 1943-2013”, para permitir um encontro da capital paulista com esse grande artista venezuelano, praticamente desconhecido no nosso meio cultural. A retrospectiva, que já passou por Lima, Santiago e Bogotá, resgata o papel e importância de Vigas não só para o Brasil, mas para a América Latina e para o mundo.

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