A migração brasileira por cursos de medicina baratos
Sociedade

A migração brasileira por cursos de medicina baratos

Com mensalidades de R$ 600 e sem vestibular, cursos na Bolívia e demais países latinos atraem brasileiros; saiba como revalidar o seu diploma após formado

em 07/07/2016 • 12h00
compartilhe:  

Alcançar um sonho às vezes significa ter que percorrer mais de 3.300 km. É o que o estudante mineiro de medicina Ênio Caçador, 33, fez ao ir estudar este ano em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia.

Todos os anos milhares de brasileiros migram para países como Paraguai, Bolívia e Argentina em busca de mensalidades mais baratas para cursos de medicina. Como Caçador, os grandes motivos são que faltam vagas, principalmente no Brasil, o que faz as mensalidades serem muito caras. Em contraposição, nesses três países podem ser encontrados cursos equivalentes a R$ 600 mensais em média.

Para Caçador, essa opção parecia a mais viável para atender uma vocação que já exercia. Ele é farmacêutico, pós-graduado em bioquímica e até já trabalhou num hospital de pronto atendimento público. Mas sua vontade era trabalhar com cirurgias, o que no Brasil não tinha como se concretizar devido aos vestibulares concorridos e às altas mensalidades (entre R$ 3.300 e R$ 9.900, segundo o Portal Escolas Médicas do Brasil).

Ele lembra que recorreu aos países vizinhos, sem saber falar espanhol fluente e tendo que aprender as realidades educacionais, de segurança e de custo de vida para se decidir por qual universidade escolher.

Sua opção foi a Udabol (Universidad de Aquino Bolivia), de Santa Cruz de la Sierra, cidade de 1,1 milhão de habitantes. “Avaliei a Argentina, mas na época ela passava por situação instável economicamente e muitas universidades têm um curso pré-graduação que atrasa um ano o curso. No Paraguai, na minha opinião, cidades como Ponta Porã e Pedro Juan Caballero são violentas demais. E na Bolívia pesquisei em La Paz, Cochabamba, Sucre e Santa Cruz. La Paz descartei por causa da altitude. Cochabamba tem um custo de vida barato, mas parece que falta água e faz frio durante boa parte do ano. Santa Cruz acabou sendo opção pelo clima ameno e por ter médicos formados já trabalhando no Brasil, além de aceitar matérias da minha formação anterior, o que diminui o tempo do curso”, comenta.

Não foi lhe exigido a proficiência na língua espanhola, mas todas as aulas são nesse idioma. “O curso de espanhol é uma disciplina obrigatória. Veteranos comentam que a medida que o curso avança o espanhol é muito cobrado de nós”.

Sobre a adaptação em outro país, ele diz que não houve grande problemas, já que em muitas disciplinas encontrou entre 50% e 70% de brasileiros. O resto se divide mais entre bolivianos, chilenos e peruanos. Quem fala castelhano se relaciona mais entre si. Por isso existem baladas brasileiras e baladas bolivianas.

O estudante paga uma mensalidade de 1.112 bolivianos, o que dá cerca de R$ 560 no câmbio de junho. “Gasto cerca de R$ 3 mil por mês com mensalidade e custo de vida”.

O estudante mora em uma pensão. Junto com ele estão outro brasileiro, uma africana e um peruano.

Sem vestibular

Segundo Gaby Pozzi, chefe de comunicação corporativa da Udabol, cerca de 400 estudantes de medicina se formam nos quatro campi da universidade por ano.

“São cinco anos de curso e mais um de estágio (nove meses em hospital e três meses de serviço social em áreas rurais). Os alunos ainda podem se especializar nos últimos anos em temas como pediatria, ginecologia, medicina interna e cirurgia”, diz.

Não há vestibular para ingressar. Pozzi explica que na Bolívia as universidades privadas são livres para aplicar ou não a prova. O estudante estrangeiro tem que apresentar passaporte, certidão de nascimento e documentos que atestem sua formação secundária.

A mensalidade mais barata não tem a ver, segundo Pozzi, com menor qualidade. Para ela, tem relação com a estabilidade da moeda nacional na Bolívia e com o custo de vida menor no país hermano. “Também é mais barata uma carreira como medicina por causa das políticas de Estado da Bolívia, que nos fornece incentivos”, diz.

O curso de medicina tem aproximadamente seis mil estudantes, sendo que cerca de 30% são de países como Brasil, Peru, Chile e Paraguai. Há classes com até 60 alunos.

Como trabalhar

Depois de terminar o curso é que começam as dificuldades, se o aluno estrangeiro quiser retornar a seu país para trabalhar.

No Brasil é preciso revalidar o diploma, independentemente do curso. Isso é determinado pelo Conselho Nacional de Educação. O caminho para revalidar o diploma de medicina é procurar uma universidade pública que faça o processo de revalidação e fazer avaliação curricular e provas. Outra opção é fazer a prova do Revalida.

De acordo com o Ministério da Educação, todas as universidades públicas são livres para oferecer esse procedimento de revalidação, desde que ofereçam o curso. Mas o ministério não possui a lista de nomes das instituições participantes. A Calle2 encontrou universidades de medicina como USP, Unicamp, Uerj, UFMG, UFMT e UFF que participam.

Segundo o ministério, cada instituição é livre para criar seu processo de revalidação, com prazos e exigências diferentes. A Comissão de Graduação da Faculdade de Medicina da USP, por exemplo, informou que o procedimento inclui análise de currículo (precisa ser equivalente no mínimo 70% ao da USP), prova teórica e prova de habilidades em sete áreas. A taxa de inscrição é de R$ 1.530 e R$ 90 para o registro.

Em 2014, sete processos de revalidação foram recebidos pela USP para o curso de medicina; em 2015 foram 10 processos. Todos indeferidos.

Os diplomas vieram da Alemanha (1), Bolívia (6), Chile (1), Colômbia (3), Cuba (1), México (1), Rússia (1), Republica Dominicana (1), Síria (1) e Venezuela (1).

Já o Revalida é o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituições de Educação Superior Estrangeiras. A prova é organizada pelo Ministério da Educação e pelo Inep (Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais).

O exame é realizado em duas etapas, sendo a primeira eliminatória, com provas objetivas, e a segunda prática, com provas de habilidades clínicas (cirurgia, medicina de família e comunidade, pediatria, ginecologia-obstetrícia e clínica médica). A taxa de inscrição da primeira prova do Revalida é de R$ 100 (R$ 300 para as demais).

Segundo o Inep, em 2015, 1.683 médicos foram aprovados no Revalida - o que representa 42% dos inscritos.

Ao todo, 54,7% desse total é de brasileiros que se formaram em medicina em outro país (confira abaixo as revalidações por origem do diploma). Depois de passar pelo Revalida, o profissional com diploma estrangeiro ainda precisa passar por uma análise curricular em alguma universidade pública. São exigidos documentos com tradução juramentada.

Outras vias

Não é simples conseguir a permissão para trabalhar no Brasil se o diploma de medicina é estrangeiro. Ênio Caçador afirma estar ciente disso e conhece amigos que usaram formas alternativas.

“Além do Revalida, hoje tem mais algumas portas de entrada, como o Programa Mais Médicos ou a transferência no meio do curso para universidades que aceitem alunos que estudam fora do país”, destaca o estudante.

Os interessados em se inscrever no Mais Médicos precisam participar de um edital público. Mas Caçador afirma que vai tentar outra alternativa, caso não passe no Revalida – fazer um curso de complementação de estudos. Algumas universidades no Brasil oferecem isso para o aluno que deseja se preparar para participar do processo de revalidação.

“No Mais Médicos não poderia montar uma clínica ou um consultório, por isso não é minha primeira opção”, explica.

O CFM (Conselho Federal de Medicina) já reclamou que no exterior a revalidação de diplomas médicos é mais rigorosa e criticou a possibilidade de universidades promoverem, por conta própria, a revalidação dos diplomas estrangeiros porque pode abrir brechas para fraudes.

O Inep informou que em 2014, existiam 242 cursos de medicina no país, com 26.804 vagas. Segundo o Ministério da Educação, há estudos para mais permissões de novos cursos de medicina, ainda sem prazo.

Para o estudante Caçador, existe certo preconceito, incluindo entre os profissionais. “Acho que o preconceito existe até que você mostre seu valor. Na área médica existe uma desconfiança geral entre profissionais. Tem que mostrar na prática sua competência para obter respeito. O próprio Revalida já é um método de distinção porque nenhuma faculdade do Brasil faz prova de validação pós-curso”, comenta.

Comentários

Comentário