A ‘Machu Picchu’ colombiana
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A ‘Machu Picchu’ colombiana

No meio da Serra Nevada de Santa Marta, os índios Tairona, extintos no século 16, deixaram uma cidade sagrada, construída no século 7 e redescoberta apenas em 1976

em 04/01/2016 • 20h00
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No caminho para a cidade perdida dos índios Tairona, a mesma trilha é utilizada há tanto tempo por seres humanos e animais de carga que se desgastou. Com a ajuda da água da chuva, virou uma espécie de mini cânion, cercado por duas paredes de terra vermelha com dois metros de altura. Quando me vi preso ali no meio, sem poder avançar – pois o All-Star não dá conta de caminhar sobre a lama que escorria ladeira abaixo junto com a chuva, nem regressar, já que a civilização havia ficado para trás alguns quilômetros, e uma fila de gringos aguardava ansiosamente a passagem –, percebi que não estava preparado para o que estava por vir.

Era somente o começo do primeiro dia de caminhada pela Serra Nevada de Santa Marta, a cadeia costeira de montanhas mais alta do mundo, chegando a 5.775 metros de altura a apenas 42 quilômetros do mar do Caribe. Faltavam cerca de 20 quilômetros para chegar à Teyuna, como é chamada a antiga cidade sagrada do grupo indígena extinto no século 16. Uma espécie de Machu Picchu caribenha.

Isso sem contar o caminho de volta, totalizando 50 quilômetros de caminhada, subindo e descendo montanha, cruzando rios, beirando penhascos, passando por aldeias e se embrenhando na floresta. A jornada começou às 9h da manhã, em Santa Marta, capital do departamento de Magdalena e de onde diariamente parte o tour, que tem preço fixo de 600 mil pesos colombianos (cerca de R$ 700). Uma van leva por duas horas até o povoado de Machete Pelado, de onde parte a trilha.

O grupo era formado por 28 pessoas, sendo apenas três brasileiros (eu, minha namorada e uma gaúcha que viajava sozinha). O restante vinha da Europa e Estados Unidos, sempre muito bem preparados, com botas especiais, roupas impermeáveis e raios laser que purificam a água.

O começo da caminhada engana bem, com um percurso plano e tranquilo. 50 km em cinco dias não era nada assustador. Isso até cruzar pela primeira de tantas outras vezes o rio Buritaca. Logo começou a subida, e a chuva, e a lama, e o desespero.

Era como enfrentar um toboágua em sentido contrário. Enquanto todos colecionavam capotes monumentais, a briga era para tentar manter alguma peça de roupa seca depois dos 7,6 km do primeiro dia de caminhada. Não deu. Pelo menos no acampamento nos aguardava um jantar caprichado e uma rede para passar a noite, que, devido a situação, parecia melhor que um hotel cinco estrelas.

Os monótonos pastos e fazendas que formam a paisagem no primeiro trecho são menos interessantes que há alguns anos. Onde agora se vê algumas cabeças de gados perdidas eram extensas plantações de coca. Uma parada alternativa no caminho era conhecer uma fábrica de pasta base de cocaína. Isso até 1998 e a chegada da guerra as drogas. Com apoio do governo dos Estados Unidos, o então presidente Álvaro Uribe ordenou um banho de herbicida naquele pedaço de montanha, dizimando todas as plantações, inclusive as de coca.

O veneno matou outras plantas e contaminou solo e água. Para os fazendeiros, sem fonte de renda, restou lucrar com os gringos que vira e mexe cruzavam suas terras. São deles os primeiros pontos de parada. Já para os povos descendentes dos Tairona que habitam a região desde quando tudo ainda era floresta, a violência dos irmãos menores se somou ao histórico de agressões sofrida por sua família: a Serra Nevada de Santa Marta.

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foto por: Felipe Floresti
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Ainda estava escuro quando iniciamos o segundo dia de caminhada. E não foi fácil se livrar das cobertas, já que a chuva que varou a madrugada prometia nos acompanhar pelos próximos quilômetros. Com expectativa de oito horas de caminhada, sendo que o dia anterior a previsão de quatro horas se transformou em seis. Era desânimo por todo canto.

Tudo começou a melhorar quando a chuva deu uma trégua e finalmente pudemos reservar algum tempo para contemplar o visual das montanhas, que a essa altura já tinha deixado as fazendas para trás. A preservada floresta que acompanha a trilha está dentro da reserva dos índios Kogis, Arhuacos, Asarios e Kankuamos, sendo os três primeiros mais comuns.

Eu já havia cruzado com alguns deles desde quando cheguei a Santa Marta. Além de serem os mais numerosos, é mais fácil reconhecer os Kogis. Estão sempre com longas roupas de algodão branco, cabelos compridos, e duas bolsas feitas de fibra de fique, uma planta semelhante ao agave da tequila, cruzando o corpo.

Em uma carregam os seus poucos objetos pessoais, enquanto em outra fica uma das principais tradições do povo: a folha da coca. Mas diferente da tradição de outros cantos da América do Sul de marcar as folhas, nesse canto da Colômbia o ritual é mais complexo. Para isso também carregam pendurado ao pescoço o poporo: uma pequena cabaça cheia de uma cal branca extraída de conchas que trazem da praia. Com uma vareta de madeira pegam a cal e passam sobre as folhas (se colocar na boca, queima) que estão alojadas da boca. A mistura, com ajuda da saliva, vai liberando os mesmos alcaloides da cocaína, mas de forma lenta e menos intensa.

A sensação de quem experimenta é a de um café expresso duplo. Mas são os punhados e mais punhados de folha ao longo do dia que os possibilitam enfrentar os longos caminhos pela Serra Nevada, aliviando a fome, a sede e o cansaço, e garantindo uma dose extra de energia e dentes podres. De uso sagrado, o primeiro poporo é dado ao indígena pelo mamo, líder do povo, assim que completa 18 anos, marcando o início da vida adulta.

O dano maior vem de drogas mais modernas e lícitas. Em meio a uma trilha encontramos um Kogui caído e desacordado. A preocupação só foi embora com a chegada do guia, que nos explicou que aquilo era excesso de álcool e ele só estava deixando a bebedeira passar. Mais tarde, já de pé, foi ele que nos deu uma palestra contando um pouco de suas tradições – em troca de uma latinha de cerveja. Já as crianças, menos acostumadas a descer até as cidades próximas, esperam pelos turistas na expectativa de conseguir alguma coisa com muito açúcar.

A caminhada passa ao lado das aldeias, que ficam quase sempre vazias. Seminômades, vivem da caça, pequeno cultivo de alimentos espalhados pelas florestas e criação de porcos, que vivem em liberdade. Dessa forma é permitido aos turistas conhecerem de perto as casas do pequeno povoado.

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foto por: Felipe Floresti
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O sol ainda esquentava ao final do segundo dia de caminhada. Tempo para um banho no rio Buritaca e descansar, já que a manhã seguinte a Cidade Perdida finalmente nos aguardava.

Após rápido café da manhã partimos para enfim atingir o mundo dos Tairona. Depois de enfrentar a correnteza do rio Buritaca, ao qual atravessamos com ajuda de cordas, nos deparamos com 1.200 irregulares e cansativos degraus de pedra que dão acesso às ruínas. Esse caminho fez parte do cotidiano de pelo menos duas mil pessoas durante o auge da maior cidade dos Tairona, construída no século 7. Foram dez séculos vivendo por ali, até a chegada dos conquistadores espanhóis à Colômbia. Apesar de nunca terem estado em Teyuna, trouxeram uma série de doenças para as quais os índios não possuíam resistência, culminando no extermínio do povo em 1650. Quem conseguiu se refugiou em pontos mais remotos da montanha, dando origem às outras etnias.

Foram os guaqueros, como são chamados os caçadores de relíquias indígenas, que redescobriram a cidade em 1976, destruindo o que o tempo e o abandono não tinham cuidado de estragar. Eles sabiam da fama dos Tairona na manipulação de ouro e pedras preciosas, com imagens zoomórficas de serpentes (representando a morte), sapo (fertilidade) e jaguar (boas energias).

Assim como conheciam as tradições do povo. Quando morriam, eram enterrados nos arredores da casa de sua família com comida e uma corda amarrada ligando até fora da sepultura. Era o começo de uma jornada de nove mundos (referente aos nove meses de gestação). O rompimento da corda significava que a viagem havia terminado. Em seguida o corpo era desenterrado, os restos colocados em uma urna com todos seus pertences, e em seguida novamente enterrado.

A Cidade Perdida foi então revirada e seus tesouros roubados. Somente em 1981 foi aberta como parque arqueológico aos visitantes, após extenso trabalho em que 70% foi reconstruída. Uma clareira de 35 hectares em meio às montanhas da Serra Nevada, ocupada por uma série de terraços, escadas e muros de pedra. As estruturas serviam de suporte para casas, centros de cerimônia e outros espaços da vida da comunidade. Duas réplicas das moradias foram construídas, sendo muito semelhantes com as que até hoje são utilizadas pelos índios Kogi.

Rituais religiosos e outras cerimônias ainda são realizadas em Teyuna. Para os indígenas do Caribe colombiano, a Serra Nevada de Santa Marta é o centro do mundo, sendo seus dois picos mais altos, o Simón Bolívar e Cristóbal Colón, a 5.775 metros acima do nível do mar, seus pais. As águas são suas mães. Os homens de fora são os irmãos menores, enquanto eles são os irmãos maiores, responsáveis por manter o equilíbrio planetário, com rituais e oferendas de pagamento para tudo que o homem explora da natureza.

De forma menos solene, reina no topo da Cidade Perdida uma base do exército. A presença desses simpáticos e isolados soldados se fez necessária a partir de 2003, quando oito estrangeiros foram sequestrados pelo Exército de Libertação Nacional (ELN). Para evitar que casos como esse se repitam, os soldados montam guarda dia e noite na região.

Os 25 quilômetros de retorno até Machete Pelado foram consideravelmente mais fáceis. Dividido em duas sessões de quatro e sete horas de caminhadas, contamos com o benefício da gravidade para nos empurrar ladeira abaixo, isso sem falar no tempo seco que possibilitou sorrisos entre os passos.

Já no carro que leva de volta à Santa Marta, a sensação é de alívio, já que o cansaço praticamente desaparece com o entusiasmo da sensação de dever cumprido. De recordação, além das fotos, a sabedoria de quem mergulhou em um mundo tão diferente do que estamos acostumados e uma certeza: comprar calçados adequados antes da próxima caminhada.

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